JOÃO DE DEUS: UMA HESITAÇÃO DOS DIABOS
As manifestações do fantástico no conto “o albino”, de Heleno Godoy
As manifestações do fantástico no conto “o albino”, de Heleno Godoy
Introdução
A Narrativa Fantástica é uma modalidade narrativa em que o caráter do extraordinário vem à tona; o incrível é preponderante. Quando falamos em fantástico, logo de imediato nos vem à mente o extraordinário, o que foge à compreensão, algo que perpassa a qualquer explicação que se queira dar. Muitos estudiosos já buscaram definir o que vem a ser o fantástico, elaboraram teorias, mas, muitas vezes, essas teorias não foram suficientes para abarcar com precisão o assunto.
A literatura reflete quase sempre os anseios de seu criador em criar mundos, ambientes, personagens mágicos ou não, uma vez que o compromisso que tem é apenas com o ficcional. Para o artista tudo é possível. Lembremos Aristóteles, em sua Poética (1990, Canto IX, p.28), para distinguir a literatura de outros escritos, traça a seguinte diferença entre o poeta e o historiador:
(...) A obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade. (...) Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam acontecer.Sendo assim, a narrativa fantástica afasta-se desse preceito de verossimilhança clássica, já que algumas categorias do mundo real foram suprimidas, como diz Filipe Furtado no seu livro A Construção do Fantástico na Narrativa (1980,p.44):
(...) O fantástico propõe ao destinatário da enunciação um universo em que algumas categorias do real foram abolidas ou alteradas, passando a funcionar de uma forma insólita, aberrante, inimaginável.
Percebe-se que o fantástico afasta-se da lógica racional, do conceito puro de padrão de realidade e desemboca em algo que poderia se chamar de incrível, extraordinário. E é embasado nesses estudos, nos vários pontos de vista dos mais diversificados estudiosos dessa modalidade literária, que, nesse trabalho, levantam-se os elementos ficcionais do conto "O Albino", de Heleno Godoy.
João de Deus: uma hesitação dos diabos
Ao analisar-se o conto "O Albino", de Helena Godoy, inicialmente atenta-se para o nome deste, "O Albino", aquele que sofre de albinismo, ausência hereditária, total ou parcial do pigmento tanto da pele como dos pêlos e da íris. Um nome que irá refletir, como se verá no decorrer da análise, o traço diferenciador da personagem principal, o Que evidencia as ausências, as faltas e, por conseguinte, um deslocamento diante da realidade que o oprime.
É interessante observar, já no primeiro parágrafo, a caracterização do ambiente onde os acontecimentos se darão:
(...) O pai iria se lembrar, depois, que a lua tinha sido cheia, na noite de seu nascimento. As lembranças da mãe teriam como ponto de referências os latidos insistentes dos cães, que duraram horas. Ele duvidava, ela não queria pensar a respeito (p. 123).
As referências feitas à lua cheia e ao latido dos cães já remetem o leitor a um clima insólito, reforçado pela figura de um narrador privilegiado que, de uma posição bastante cômoda (parece instalar-se na consciência das personagens - no caso os pais), narra os acontecimentos a partir da lembrança destes e revela o que eles sentem, por meio do discurso indireto livre, como se pode comprovar:
(...) Se por quatro vezes ela havia ficado grávida e tivera seus filhos em partos normais, qual o motivo daquela diferença? (p. 123)
O narrador, assumindo essas características, revela o estado mental das personagens e o distanciamento dos acontecimentos no tempo, o que, para estabelecer o fantástico, é um recurso de muito valor, já que tanto mais distantes forem os acontecimentos, mais probabilidades eles terão de falsear a realidade, enfatizando o caráter ambíguo na narrativa. É preciso entender que esse distanciamento pode se dar tanto no tempo (passado ou futuro) como em lugares longínquos: países, cidades etc.
Ausências e Ambigüidades
Focalizada a história em um passado longínquo, caracterizado o ambiente onde tudo se passa, feita uma reflexão sobre o nome do conto godoyano, buscar-se-á os aspectos do fantástico por intermédio da personagem João de Deus, a sua importância para a construção desse gênero como elo entre leitor e narrativa, levando-se em conta o que diz Filipe Furtado (1980, p.85):
(...) uma das formas mais seguras de conduzir o destinatário da enunciação à incerteza quanto ao teor da ocorrência extranatural consiste em suscitar nele a identificação com a personagem que melhor reflita a percepção ambígua dessa ocorrência e a conseqüente perplexidade perante a coexistência das duas fenomenologias contraditórias que aparentemente a confrontam. (...) a finalidade básica das características atribuídas à personagem é sempre facilitar essa adesão a que se pretende levar o leitor real e que, embora visada por qualquer texto narrativo, desempenha um papel de particular relevo na ficção fantástica.
Refletindo as colocações de Filipe Furtado, é interessante atentar-se ao modo pelo qual a narrativa fantástica vai se instalando a partir da atuação da personagem João de Deus da sua inserção na narrativa, o que, de certa forma, a modificará como um todo, já que João de Deus é visto como alguém estranho ao grupo, diferente, e que, por esse motivo, de imediato chama a atenção para si. Imprime-se, partindo do seu nascimento, um certo roteiro para que o leitor mergulhe no emaranhado de um universo ambíguo, dividido entre o real e o sobrenatural. Observe-se a descrição do seu nascimento:
(...) Ela demorou a ter aquele menino, o quinto em cinco anos. (...) O dia já estava longe e o trabalho parado, quando a mulher deu um gemido forte e ele ouviu a voz da parteira "Virgem Maria!" sair num susto e grito (p. 124).
Vê-se aqui a referência temporal feita pelo narrador, a marcação desse tempo: a demora, a preparação para o estabelecimento de uma certa expectativa em relação ao porvir; eis que, de forma surpreendente, a inserção de algo incomum, num ambiente até então tranqüilo, modifica todo o curso da narrativa. Instaura-se na mente do leitor - em decorrência da perplexidade que o nascimento da criança causa um estado de apreensão ante os acontecimentos posteriores. Tal fato é reforçado no diálogo entre o pai do garoto e a parteira, logo após o seu nascimento:
(...) - Um menino doente, mas parece que vai ficar bem.
- Doente?
(...) - Até os cabelos. Todo branquinho. As mãos, os pés, as pernas, tudo (p. 124).
De imediato, cria-se um estado de hesitação pelo fato de o menino ser diferente: ausência do pigmento tanto da pele como dos pêlos. Instala-se, na cabeça das. pessoas, a dúvida sobre o estado de normalidade do garoto: é normal ou não? O que causará muita controvérsia em relação ao nome que será dado à criança:
(...) João de Deus, sugeriu, era um nome mais apropriado e conforme, e eles ainda estariam dedicando ao Senhor aquele menino diferente. (...) O menino era desvalido e seria desamparado se não lhe dessem muito carinho, se não tivessem para com ele paciência e cuidado (p. 125).
O nome do garoto é representativo para o estabelecimento do fantástico em "O Albino": João de Deus, um eufemismo utilizado pelo autor para a manutenção da ambigüidade, já que o nome é um contraponto ao que irá ser evidenciado com relação a uma série de acontecimentos insólitos, os quais são atribuídos ao garoto. Percebe-se isso no diálogo que se estabelece entre o pai e a mãe:
(...) - Você viu como chorou quando o padre fez o sinal da cruz?
- Gritou, chorar não chorou.
(...) - E quando jogou a água benta?
- Besteira, menino grita em batizado mesmo (p. 125).
Observando a conversa dos pais, nota-se a manutenção da ambigüidade; fica claro, nas insinuações da mãe, que o menino tem algo de sobrenatural. Além de sua aparência estranha, ele possui uma forte aversão a tudo o que é sagrado, o que de imediato é refutado pelo pai - refutação necessária para o restabelecimento da tranqüilidade -, garantindo o estado de hesitação por parte do leitor: é ou não é diferente? O garoto tem ou não tem aversão ao sagrado?
Mais à frente essa tranqüilidade esvai-se e dá lugar a uma certa tensão narrativa. A cidade vê-se tomada por uma série de acontecimentos insólitos - pessoas sendo atacadas, mordidas; animais aparecendo mortos sem nenhuma gota de sangue – ao passo que João de Deus vai ficando cada vez mais distante, indiferente, tendo por companhia somente os cães. Fatos que para a mãe intensificarão a sua desconfiança:
(...) João de Deus havia chegado tarde naquela tarde, muito depois dos irmãos. Pensou que ele havia perdido o ônibus. Viu sua roupa suja de manchas escuras, que passou a achar fossem de sangue. Já tinham aparecido nas roupas dele e ela não acreditava em acasos. Podiam ser provenientes de ferimentos, a pele dele era fraca, feria-se facilmente. Depois lembrou-se de o marido dizer, tempos antes, que as galinhas perdiam seus pintinhos, patinhos apareciam com pescoço estraçalhado, pequenos animais surgiam mortos no quintal ou eram encontrados agonizantes. Sangue por perto, no entanto, nenhum (p. 131 ).
Vê-se aqui as reflexões da mãe sobre as ausências do filho, a série de acontecimentos que se avolumam a cada dia. A cidade parece não ter nenhuma dúvida com relação às responsabilidades dos fatos, o que do ponto de vista da narrativa parece caminhar para um final onde tudo seja esclarecido, fato que vem ameaçar a manutenção do fantástico. Mas isso não ocorre, pois, mais uma vez, o discurso muda de tom com a interferência do pai. Observe-se o diálogo entre o pai do menino e o delegado:
(...) - Estão dizendo que foram os cachorros do meu filho?
- Pior, estão dizendo que foi seu filho.
- Isso não tem cabimento, delegado, meu filho não é doido.
- Quem sabe se não é? Quem sabe ele pensa que é mais do que um
doido? Quem sabe lá o que ele pensa? Será
que ele pensa que é um vampiro?
- Uma estupidez, isso não existe.
Vamos ver isso também. Não existe, mas
ele pode ser um.
- Não existe, mas pode ser. Como? E podem provar? O senhor tem provas? (p. 138)
Nessa perspectiva de dúvidas, de relatos inconsistentes, de uma não resolução para os conflitos é que a narrativa vai firmando-se como fantástica, o que é corroborado por Louis Vax (apud Furtado, 1980, p. 64):
(...) o fantástico vive sobretudo do seu adormecimento, da sua inanição perante o impensável, da sua impotência para, frente à subversão do real, recorrer a uma explicação plausível que a destrua.
Mais à frente tem-se uma tentativa de explicação para o que está ocorrendo, a partir das palavras do novo padre da cidade:
(...) O problema, para ele, não era de possessão demoníaca, como queriam algumas velhas piedosas, lideradas pela esposa do juiz, mas de desinformação. Nada daquilo era verdade, vampiros não existiam,afirma-lhe o padre, o diretor do colégio também, o promotor e o próprio Juiz (p. 139).
Todo o alvoroço provocado pelas pessoas da cidade e a explicação do padre - que tenta dissuadir a população da existência de lobisomem, vampiro etc - são imprescindíveis para o restabelecimento da ordem na cidade e, ao mesmo tempo, servem para confirmar o estado de dúvidas que se instaura na cabeça do destinatário.
À medida que as acusações avolumam-se contra João de Deus, sua mãe, entremeada de dúvidas, associa-as a alguns fatos ocorridos, e a permanência do fantástico vai confirmando-se na narrativa.
(...) João de Deus não podia depender deles. Ela não se conformava que seu filho fosse o que dizem, o que ele parecia ser, o que até ela está sendo levada a achar que ele fosse (p. 142).
A partir daí, a mãe começa a buscar uma forma de livrar o filho das perseguições, da não aceitação dele por parte das pessoas:
(...) João de Deus existia e falavam sobre ele. Vinha daí, por isso, o desejo de eliminá-Io, por causa de sua diferença, que incomodava? (...) Não acreditava em tudo que o acusavam de ter feito. Muita coisa devia ter sido praticada por outros, pensou,mas a culpa recaía sobre ele por conveniência. Ele era inconveniente, quando estava por perto (p. 143).
A percepção que a mãe tem sobre o problema que o filho causava, quando estava por perto, e a atitude tomada para livrá-Io desses constrangimentos rompem com as possibilidades de uma explicação para os fatos insólitos, pois, apesar de vivenciar um estado de dúvidas, a mãe não hesita em matá-lo:
(...) Pegou um martelo, ao retomar para dentro de casa, de cima de uma prateleira, no quarto em que o marido guardava suas ferramentas, e caminhou vagarosamente para o do filho. (...) Entendeu que não seria necessária tanta força, o corpo do filho era tão frágil, podia espetar-lhe o pedaço de madeira quase como se espetasse uma agulha num pano branco que bordasse. Ficou assim uns poucos minutos, os dois braços levantados, as duas mãos segurando o toco de madeira sobre o peito de João de Deus. (...) Ninguém vai fazer-lhe mal agora, vai? (p.144)
Dessa forma Heleno Godoy contempla o leitor com a deflagração de um final interessante. Com a morte do filho pela mãe, esta vê-se aliviada de toda pressão recebida, o que evita uma tragédia maior: a morte do filho pelo povo, o que seria trágico tanto do ponto de vista da história quanto da manutenção da ambigüidade, já que se isso ocorresse poderia haver uma justificativa para o fato e uma quebra da hesitação por meio de um esclarecimento para o fenômeno. Da forma como aconteceu, a ambigüidade foi mantida e o fantástico efetivou-se nesse conto.
Conclusão
Heleno Godoy joga com as inúmeras possibilidades narrativas, dentre as quais privilegia uma narrativa em terceira pessoa, mas, sempre que necessário, o narrador instala-se na mente das personagens e reflete a condição de cada uma, como se fossem presentificadas num determinado momento e, de forma plena, explicitassem os seus sentimentos, desejos, questionamentos existenciais, de maneira a aproximar cada vez mais o leitor dos acontecimentos ficcionais, o qual, na credulidade de uma realidade falseada, faz-se um aliado na manutenção do fantástico na narrativa.
Observando-se a estrutura narrativa, reflete-se a essencialidade da figura da mãe para a manutenção da ambigüidade, personagem muito bem construída, sobretudo se levar-se em conta que a figura materna é a que gera o filho, passa por todas as sensações de uma gravidez, enfrenta as dificuldades do parto e, por conseguinte, está autorizada a intuir sobre a realidade do filho; aquela que tem os pés no chão. Por outro lado tem-se a figura do pai: ser preocupado com o trabalho, mas totalmente distante dos filhos, pois, para ele, os meninos nada tinham de parecido com ele ou com a mãe, o que evidencia uma visão de superfície com relação a João de Deus. O pai é caracterizado como figura primordial para o equilíbrio do discurso narrativo e a manutenção da ambigüidade. Em suma, a mãe é aquela que vê, o pai o que não vê ou não quer ver.
Traçar o perfil dos pais de João de Deus faz-se importante para uma, melhor compreensão da figura deste: uma criança aparentemente frágil, diferente e, por ser assim, excluída do grupo social, só relaciona-se bem com os cães, talvez por parecer-se com eles, características que, aos olhos do leitor, causarão mais simpatia e pena que asco ou terror, referência interessantíssima para afastar cada vez mais as suspeitas contra João de Deus em relação à série de acontecimentos estranhos na cidade.
Faz-se mister atentar ainda para algo muito interessante: dentre todos os personagens da história, o único que possui um nome é João de Deus. Mas, em contra partida, somente ele não tem voz, tornando-se, assim, extremamente vulnerável a qualquer acusação e aborrecimento.
Heleno Godoy avança na construção das suas personagens, reflete a condição de cada uma no seu modo de ser e viver. Com isso eleva a condição delas à importância dos acontecimentos na narrativa fantástica, o que, de certa forma, vai contra o que diz Filipe Furtado (1980, p.86):
(...) O gênero privilegia o acontecimento, sobretudo as manifestações extranaturais, em desfavor das personagens. Daí que, em geral, estes só atinjam uma certa relevância na estrutura da narrativa se servirem o objetivo de comunicar a ambigüidade ao receptor real do enunciado. Com efeito, as personagens pouco ou nada interessam ao discurso fantástico enquanto figuras com vida própria, servindo-lhe sobretudo de veículos da perplexidade perante o mundo alucinante em que se movem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. A Arte Poética. In: A Poética Clássica. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo:Cultrix, 1990.
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1960.
GODOY, Heleno. O Albino. In: O Amante de Londres. Goiânia: Kelps, 1996.
RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. São Paulo: Ática, 1988.
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