Francisco Perna Filho - Ensaio Literário












JOÃO DE DEUS: UMA HESITAÇÃO DOS DIABOS  
As manifestações do fantástico no conto “o albino”, de Heleno Godoy


Introdução

A Narrativa Fantástica é uma modalidade narrativa em que o caráter do extraordinário vem à tona; o incrível é preponderante. Quando falamos em fantástico, logo de imediato nos vem à mente o extraordinário, o que foge à compreensão, algo que perpassa a qualquer explicação que se queira dar. Muitos estudiosos já buscaram definir o que vem a ser o fantástico, elaboraram teorias, mas, muitas vezes, essas teorias não foram suficientes para abarcar com precisão o assunto.

A literatura reflete quase sempre os anseios de seu criador em criar mundos, ambientes, personagens mágicos ou não, uma vez que o compromisso que tem é apenas com o ficcional. Para o artista tudo é possível. Lembremos Aristóteles, em sua Poética (1990, Canto IX, p.28), para distinguir a literatura de outros escritos, traça a seguinte diferença entre o poeta e o historiador:

        (...) A obra do poeta não consiste      em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade. (...) Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam acontecer.Sendo assim, a narrativa fantástica afasta-se desse preceito de verossimilhança clássica, já que algumas categorias do mundo real foram suprimidas, como diz Filipe Furtado no seu livro A Construção do Fantástico na Narrativa (1980,p.44):


(...) O fantástico propõe ao destinatário da enunciação um universo em que algumas categorias do real foram abolidas ou alteradas, passando a funcionar de uma forma insólita, aberrante, inimaginável.


Percebe-se que o fantástico afasta-se da lógica racional, do con­ceito puro de padrão de realidade e desemboca em algo que poderia se chamar de incrível, extraordinário. E é embasado nesses estudos, nos vá­rios pontos de vista dos mais diversi­ficados estudiosos dessa modalidade literária, que, nesse trabalho, levan­tam-se os elementos ficcionais do con­to "O Albino", de Heleno Godoy.

João de Deus: uma hesitação dos diabos

Ao analisar-se o conto "O Albi­no", de Helena Godoy, inicialmente atenta-se para o nome deste, "O Albi­no", aquele que sofre de albinismo, au­sência hereditária, total ou parcial do pigmento tanto da pele como dos pê­los e da íris. Um nome que irá refletir, como se verá no decorrer da análise, o traço diferenciador da personagem principal, o Que evidencia as ausên­cias, as faltas e, por conseguinte, um deslocamento diante da realidade que o oprime.
É interessante observar, já no primeiro parágrafo, a caracterização do ambiente onde os acontecimentos se darão:

(...) O pai iria se lembrar, de­pois, que a lua tinha sido cheia, na noite de seu nascimento. As lembranças da mãe teriam como ponto de referências os latidos insistentes dos cães, que duraram horas. Ele duvi­dava, ela não queria pensar a respeito (p. 123).


As referências feitas à lua cheia e ao latido dos cães já remetem o lei­tor a um clima insólito, reforçado pela figura de um narrador privilegiado que, de uma posição bastante cômoda (pa­rece instalar-se na consciência das personagens - no caso os pais), nar­ra os acontecimentos a partir da lem­brança destes e revela o que eles sen­tem, por meio do discurso indireto li­vre, como se pode comprovar:

(...) Se por quatro vezes ela havia ficado grávida e tivera seus filhos em partos normais, qual o motivo daquela diferen­ça? (p. 123)

O narrador, assumindo essas características, revela o estado men­tal das personagens e o distanciamento dos acontecimentos no tempo, o que, para estabelecer o fantástico, é um recurso de muito valor, já que tan­to mais distantes forem os acontecimentos, mais probabilidades eles te­rão de falsear a realidade, enfatizan­do o caráter ambíguo na narrativa. É preciso entender que esse distancia­mento pode se dar tanto no tempo (passado ou futuro) como em lugares longínquos: países, cidades etc.


Ausências e Ambigüidades

Focalizada a história em um passado longínquo, caracterizado o ambiente onde tudo se passa, feita uma reflexão sobre o nome do conto godoyano, buscar-se-á os aspectos do fantástico por intermédio da persona­gem João de Deus, a sua importância para a construção desse gênero como elo entre leitor e narrativa, levando-se em conta o que diz Filipe Furtado (1980, p.85):

(...) uma das formas mais se­guras de conduzir o destinatá­rio da enunciação à incerteza quanto ao teor da ocorrência extranatural consiste em susci­tar nele a identificação com a personagem que melhor reflita a percepção ambígua dessa ocorrência e a conseqüente perplexidade perante a coexis­tência das duas fenomenologias contraditórias que aparente­mente a confrontam. (...) a fi­nalidade básica das caracterís­ticas atribuídas à personagem é sempre facilitar essa adesão a que se pretende levar o leitor real e que, embora visada por qualquer texto narrativo, desem­penha um papel de particular relevo na ficção fantástica.

Refletindo as colocações de Fi­lipe Furtado, é interessante atentar-se ao modo pelo qual a narrativa fantás­tica vai se instalando a partir da atua­ção da personagem João de Deus da sua inserção na narrativa, o que, de certa forma, a modificará como um to­do, já que João de Deus é visto como alguém estranho ao grupo, diferente, e que, por esse motivo, de imediato chama a atenção para si. Imprime-se, partindo do seu nascimento, um certo roteiro para que o leitor mergulhe no emaranhado de um universo ambí­guo, dividido entre o real e o sobre­natural. Observe-se a descrição do seu nascimento:

(...) Ela demorou a ter aquele menino, o quinto em cinco anos. (...) O dia já estava lon­ge e o trabalho parado, quan­do a mulher deu um gemido forte e ele ouviu a voz da par­teira "Virgem Maria!" sair num susto e grito (p. 124).

Vê-se aqui a referência temporal feita pelo narrador, a marcação desse tempo: a demora, a preparação para o estabelecimento de uma certa ex­pectativa em relação ao porvir; eis que, de forma surpreendente, a inserção de algo incomum, num ambiente até en­tão tranqüilo, modifica todo o curso da narrativa. Instaura-se na mente do lei­tor - em decorrência da perplexidade que o nascimento da criança causa ­um estado de apreensão ante os acon­tecimentos posteriores. Tal fato é refor­çado no diálogo entre o pai do garoto e a parteira, logo após o seu nascimento:
(...) - Um menino doente, mas parece que vai ficar bem.
- Doente?
(...) - Até os cabelos. Todo branquinho. As mãos, os pés, as pernas, tudo (p. 124).

De imediato, cria-se um estado de hesitação pelo fato de o menino ser diferente: ausência do pigmento tanto da pele como dos pêlos. Instala-se, na cabeça das. pessoas, a dúvida sobre o estado de normalidade do garoto: é normal ou não? O que causará muita controvérsia em relação ao nome que será dado à criança:

(...) João de Deus, sugeriu, era um nome mais apropriado e conforme, e eles ainda esta­riam dedicando ao Senhor aquele menino diferente. (...) O menino era desvalido e se­ria desamparado se não lhe dessem muito carinho, se não tivessem para com ele paciên­cia e cuidado (p. 125).

O nome do garoto é represen­tativo para o estabelecimento do fan­tástico em "O Albino": João de Deus, um eufemismo utilizado pelo autor pa­ra a manutenção da ambigüidade, já que o nome é um contraponto ao que irá ser evidenciado com relação a uma série de acontecimentos insólitos, os quais são atribuídos ao garoto. Perce­be-se isso no diálogo que se estabele­ce entre o pai e a mãe:

(...) - Você viu como chorou quando o padre fez o si­nal da cruz?
                                                                                    - Gritou, chorar não chorou.
(...) - E quando jogou a água benta?
        - Besteira, menino grita em batizado mesmo (p. 125).


Observando a conversa dos pais, nota-se a manutenção da ambi­güidade; fica claro, nas insinuações da mãe, que o menino tem algo de sobre­natural. Além de sua aparência estra­nha, ele possui uma forte aversão a tudo o que é sagrado, o que de imedi­ato é refutado pelo pai - refutação ne­cessária para o restabelecimento da tranqüilidade -, garantindo o estado de hesitação por parte do leitor: é ou não é diferente? O garoto tem ou não tem aversão ao sagrado?
Mais à frente essa tranqüilida­de esvai-se e dá lugar a uma certa ten­são narrativa. A cidade vê-se tomada por uma série de acontecimentos insó­litos - pessoas sendo atacadas, mor­didas; animais aparecendo mortos sem nenhuma gota de sangue – ao passo que João de Deus vai ficando cada vez mais distante, indiferente, tendo por companhia somente os cães. Fatos que para a mãe intensifi­carão a sua desconfiança:

(...) João de Deus havia che­gado tarde naquela tarde, mui­to depois dos irmãos. Pensou que ele havia perdido o ônibus. Viu sua roupa suja de man­chas escuras, que passou a achar fossem de sangue. Já ti­nham aparecido nas roupas dele e ela não acreditava em acasos. Podiam ser provenien­tes de ferimentos, a pele dele era fraca, feria-se facilmente. Depois lembrou-se de o mari­do dizer, tempos antes, que as galinhas perdiam seus pinti­nhos, patinhos apareciam com pescoço estraçalhado, peque­nos animais surgiam mortos no quintal ou eram encontra­dos agonizantes. Sangue por perto, no entanto, nenhum (p. 131 ).

Vê-se aqui as reflexões da mãe sobre as ausências do filho, a série de acontecimentos que se avolumam a cada dia. A cidade parece não ter nenhuma dúvida com relação às res­ponsabilidades dos fatos, o que do ponto de vista da narrativa parece ca­minhar para um final onde tudo seja esclarecido, fato que vem ameaçar a manutenção do fantástico. Mas isso não ocorre, pois, mais uma vez, o dis­curso muda de tom com a interferên­cia do pai. Observe-se o diálogo en­tre o pai do menino e o delegado:

(...) - Estão dizendo que fo­ram os cachorros do meu filho?
- Pior, estão dizendo que foi seu filho.
- Isso não tem cabimen­to, delegado, meu filho não é doido.
- Quem sabe se não é? Quem sabe ele pensa que é mais do que um
doido? Quem sabe lá o que ele pensa? Será
que ele pensa que é um vampiro?
- Uma estupidez, isso não existe.
Vamos ver isso tam­bém. Não existe, mas
ele pode ser um.
- Não existe, mas pode ser. Como? E podem provar? O senhor tem provas? (p. 138)


Nessa perspectiva de dúvidas, de relatos inconsistentes, de uma não resolução para os conflitos é que a narrativa vai firmando-se como fantás­tica, o que é corroborado por Louis Vax (apud Furtado, 1980, p. 64):

(...) o fantástico vive sobretu­do do seu adormecimento, da sua inanição perante o impen­sável, da sua impotência para, frente à subversão do real, re­correr a uma explicação plau­sível que a destrua.

Mais à frente tem-se uma ten­tativa de explicação para o que está ocorrendo, a partir das palavras do novo padre da cidade:


(...) O problema, para ele, não era de possessão demoníaca, como queriam algumas velhas piedosas, lideradas pela espo­sa do juiz, mas de desinforma­ção. Nada daquilo era verdade, vampiros não existiam,afirma-lhe o padre, o diretor do colégio também, o promotor e o próprio Juiz (p. 139).

    Todo o alvoroço provocado pelas pessoas da cidade e a explicação do padre - que tenta dissuadir a população da existência de lobisomem, vampiro etc - são imprescindíveis para o res­tabelecimento da ordem na cidade e, ao mesmo tempo, servem para con­firmar o estado de dúvidas que se ins­taura na cabeça do destinatário.
    À medida que as acusações avolumam-se contra João de Deus, sua mãe, entremeada de dúvidas, as­socia-as a alguns fatos ocorridos, e a permanência do fantástico vai confirmando-se na narrativa.

(...) João de Deus não podia depender deles. Ela não se conformava que seu filho fos­se o que dizem, o que ele pare­cia ser, o que até ela está sen­do levada a achar que ele fos­se (p. 142).

A partir daí, a mãe começa a buscar uma forma de livrar o filho das perseguições, da não aceitação dele por parte das pessoas:

(...) João de Deus existia e fa­lavam sobre ele. Vinha daí, por isso, o desejo de eliminá-Io, por causa de sua diferença, que in­comodava? (...) Não acreditava em tudo que o acusavam de ter feito. Muita coisa devia ter sido praticada por outros, pensou,mas a culpa recaía sobre ele por conveniência. Ele era incon­veniente, quando estava por perto (p. 143).

A percepção que a mãe tem sobre o problema que o filho causava, quando estava por perto, e a atitude tomada para livrá-Io desses constran­gimentos rompem com as possibilida­des de uma explicação para os fatos insólitos, pois, apesar de vivenciar um estado de dúvidas, a mãe não hesita em matá-lo:

(...) Pegou um martelo, ao retomar para dentro de casa, de cima de uma prateleira, no quarto em que o marido guar­dava suas ferramentas, e ca­minhou vagarosamente para o do filho. (...) Entendeu que não seria necessária tanta força, o corpo do filho era tão frágil, podia espetar-lhe o pedaço de madeira quase como se espe­tasse uma agulha num pano branco que bordasse. Ficou assim uns poucos minutos, os dois braços levantados, as duas mãos segurando o toco de madeira sobre o peito de João de Deus. (...) Ninguém vai fazer-lhe mal agora, vai? (p.144)



Dessa forma Heleno Godoy contempla o leitor com a deflagração de um final interes­sante. Com a morte do filho pela mãe, esta vê-se aliviada de toda pressão recebida, o que evita uma tragédia maior: a morte do filho pelo povo, o que seria trágico tanto do ponto de vis­ta da história quanto da manutenção da ambigüidade, já que se isso ocor­resse poderia haver uma justificativa para o fato e uma quebra da hesitação por meio de um esclarecimento para o fenômeno. Da forma como aconte­ceu, a ambigüidade foi mantida e o fan­tástico efetivou-se nesse conto.

Conclusão

Heleno Godoy joga com as inú­meras possibilidades narrativas, den­tre as quais privilegia uma narrativa em terceira pessoa, mas, sempre que necessário, o narrador instala-se na mente das personagens e reflete a condição de cada uma, como se fos­sem presentificadas num determina­do momento e, de forma plena, explici­tassem os seus sentimentos, desejos, questionamentos existenciais, de maneira a aproximar cada vez mais o lei­tor dos acontecimentos ficcionais, o qual, na credulidade de uma realidade falseada, faz-se um aliado na manutenção do fantástico na narrativa.
Observando-se a estrutura nar­rativa, reflete-se a essencialidade da figura da mãe para a manutenção da ambigüidade, personagem muito bem construída, sobretudo se levar-se em conta que a figura materna é a que gera o filho, passa por todas as sensa­ções de uma gravidez, enfrenta as di­ficuldades do parto e, por conseguin­te, está autorizada a intuir sobre a rea­lidade do filho; aquela que tem os pés no chão. Por outro lado tem-se a figu­ra do pai: ser preocupado com o tra­balho, mas totalmente distante dos fi­lhos, pois, para ele, os meninos nada tinham de parecido com ele ou com a mãe, o que evidencia uma visão de superfície com relação a João de Deus. O pai é caracterizado como fi­gura primordial para o equilíbrio do discurso narrativo e a manutenção da ambigüidade. Em suma, a mãe é aque­la que vê, o pai o que não vê ou não quer ver.
    Traçar o perfil dos pais de João de Deus faz-se importante para uma, melhor compreensão da figura deste: uma criança aparentemente frágil, di­ferente e, por ser assim, excluída do grupo social, só relaciona-se bem com os cães, talvez por parecer-se com eles, características que, aos olhos do leitor, causarão mais simpatia e pena que asco ou terror, referência interes­santíssima para afastar cada vez mais as suspeitas contra João de Deus em relação à série de acontecimentos estranhos na cidade.
Faz-se mister atentar ainda para algo muito interessante: dentre todos os personagens da história, o único que possui um nome é João de Deus. Mas, em contra partida, somen­te ele não tem voz, tornando-se, as­sim, extremamente vulnerável a qual­quer acusação e aborrecimento.
Heleno Godoy avança na cons­trução das suas personagens, reflete a condição de cada uma no seu modo de ser e viver. Com isso eleva a condi­ção delas à importância dos aconteci­mentos na narrativa fantástica, o que, de  certa forma, vai contra o que diz Filipe Furtado (1980, p.86):

(...) O gênero privilegia o acon­tecimento, sobretudo as mani­festações extranaturais, em desfavor das personagens. Daí que, em geral, estes só atinjam uma certa relevância na estrutura da narrativa se servirem o objetivo de comu­nicar a ambigüidade ao recep­tor real do enunciado. Com efeito, as personagens pouco ou nada interessam ao discur­so fantástico enquanto figuras com vida própria, servindo-lhe sobretudo de veículos da per­plexidade perante o mundo alucinante em que se movem.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



ARISTÓTELES. A Arte Poética. In: A Poética Clássica. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo:Cultrix, 1990.

FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1960.
GODOY, Heleno. O Albino. In: O Amante de Londres. Goiânia: Kelps, 1996.
RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico.   São Paulo: Ática, 1988.

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