Por Pedro Alcântra*
No
seu último ano de vida, 1924, durante um passeio com sua amante Dora Diamant,
no parque Steglitz, em Berlim, Kafka se encontra com uma menina que se mergulha
em choro. Ao indagar a garotinha sobre o motivo, esta lhe diz que perdera a sua
boneca. Imediatamente, Kafka constrói uma história para explicar o
desaparecimento da mesma: “- Sua boneca só estava fazendo uma pequena viagem,
eu sei porque ela me enviou uma carta” (LEMAIRE, 2006, p.226). Com um olhar
desconfiado a menina indaga: “- Tens contigo essa carta?”, “- Não”, responde
Kafka, “- deixei em casa, mas a trarei amanhã”. Assim que chega em sua casa,
Kafka começa a escrever uma carta. No dia seguinte, entrega a carta à menina:
A
boneca explicava que tinha cansado de viver na mesma família, ela dizia que
queria trocar de ares; em uma palavra, queria se separar por algum tempo da
menininha, que no entanto ela amava muito” (LEMAIRE, 2006, p.227).
Em
seu relato sobre sua vida com Kafka, Dora encerra a história com uma lição
Alguns
dias depois, a criança esquecera a perda de seu brinquedo e só pensava na
ficção que ele lhe oferecera como compensação. Franz escreveu cada frase do
romance com tanta precisão e humor que a situação da boneca ficara fácil de
entender: a boneca crescera, fora para a escola, encontrara outras pessoas. Ela
sempre assegura seu amor à criança. (DORA, apud, LEMAIRE, 2006, p.227).
A
identificação de Kafka com a apreensão de menina é instantânea, ele enfim
conhece a leitora ideal, uma pessoa que, como ele, prefere a “verdadeira vida”
da ficção à vida real. Tal experiência traz luz ao grande legado do escritor de
Praga. Essa característica se faz presente em todas as suas obras e em toda a
sua vida, pois para Kafka, o tempo presente é um misto de absurdo, ficção e
realidade.
Oriundos
de família judia que se instalam na Boêmia, os pais de Kafka se tornam
comerciantes com relativo poder econômico. A descrição de Hermann Kafka, o pai,
é de um homem com pulso de ferro e ambições financeiras. Sobre a infância do
escritor, muito pouco se sabe, certo é, que a relação com o pai sempre foi
dolorosa. Da juventude até a sua morte, quatro elementos serão norteadores do
projeto literário Kafkaniano, quais sejam, a dura relação com o pai; a
frustração profissional – Kafka formara em Direito e trabalhou em uma Companhia
prestando serviços burocráticos, e em tal empreendimento, observou a relação
estreita entre poder econômico e a o desmantelamento da justiça e da lei; as
desilusões amorosas; e por fim a paixão pela escrita. As experiências de vida
com toda certeza avolumaram as tintas de suas canetas ao construir seu
repertório literário. Com características singulares, Kafka entre para a seleta
fileira dos grandes escritores e ensaístas, que com um olhar profícuo,
conseguiu contemplar os desafios e as lamúrias da vida humana e social
contemporânea.
O
brilhantismo de Kafka se apresenta, dentre os demais, pelo hibridismo de seus
personagens. Em vários romances, o autor elenca como personagem principal,
animais com características humanas, apresentando assim uma estreita relação
entre o estilo de vida animalesco que o tecnicismo burocrata engendrara nos
indivíduos. Em “Metarmofose”, Gregor Samsa, o funcionário e filho exemplar se
torna, da noite para o dia em um inseto. Em “Relatório à academia”, o macaco
apanhado em uma floresta se torna um contador de histórias e personagem de
circo.
Kafka
se lança sobre seus personagens para expressar sua própria angustia. Gregor
Samsa, aquele que em sonhos viaja em seus desejos, mas que no presentismo está
enclausurado na figura de um ser desprezível que, muito pior do que sua
situação metamorfoseada, lamenta pelo aprisionamento que o trabalho burocrático
lhe impõe, impedindo-o de ser o que sempre quis, assim como a humilhante
dependência dos pais para a sua sobrevivência. A transformação de humano em inseto
experimentada por Samsa, é na verdade o insight que Kafka absorve da
modernidade, qual seja, da desumanização pelo processo de transformar o
indivíduo em mera engrenagem de um sistema. Tal fato pode ser observado pelo
próprio sentimento dos personagens. Samsa, mesmo em forma de inseto, se
preocupa muito mais em perder o emprego do que com sua condição física e
emocional. O chefe também não se preocupa com a condição de Samsa e lhe cobra
serviço. E com um fim emblemático, a
própria família se mostra desinteressada pelo filho que acabara de morrer sem
alguma explicação. Após o fato, a mãe e irmã saem para dar um passeio como se
nada tivesse acontecido.
Sobre
a fragilidade da justiça em seu tempo, Kafka escreve o famoso romance O processo. Em tal obra, narra a
história de um homem que é julgado segundo leis que ele não consegue descobrir
e finalmente é executado sem saber o que tudo aquilo significa. Ao investigar o
seu destino, descobre uma grande organização por trás de tudo aquilo.
Se
encontra uma grande organização. Uma organização que mobiliza não só guardas
corrompíveis, inspetores e juízes de instrução pueris... mas que, além disso,
sustenta uma magistratura de grau elevado e superior, com seu séquito
inumerável e inevitável de contínuos, escriturários, gendarmes e outros
auxiliares, talvez até de carrascos. (KAFKA, apud ARENDT, 2008, p.97).
A
injustiça diante do fato é menos catastrófica do que aquilo que acontece com o
próprio acusado, pois tal organização e o clamor popular faz brotar dentro de
si um sentimento de culpa. Não apenas o rigor da injusta lei, mas algo
intrínseco que faz com que o próprio injustiçado creia em seu inexistente erro.
As últimas palavras do romance apontam para tal fenômeno, na hora da execução,
ao ser degolado por dois indivíduos, o personagem profere suas últimas palavras
em agonia: “Como um cachorro, como se a vergonha fosse sobrevivê-lo” (KAFKA,
1969, p.181).
Tanto
em A Metamorfose, quanto em O Processo há a presença de elementos
proféticos daquilo que o século XX pode de pior experimentar. Tais romances
apresentam um processo evolutivo na vida de seus personagens com semelhanças
diretas àquilo experimentado nos regimes totalitários, a saber, a privação de
liberdade, a rendição e a morte. O animalesco presente nos romances também têm
como ápice de concretização os campos de extermínio dos regimes ditatoriais a
partir do início do século XX, onde o homem se tornou apenas mais um animal
que, é fadado à sofrimentos impensáveis até então na história da humanidade,
homem, animal sem direitos, sem identidade, sem nome, sem vida. Agamben relata
sobre a situação desumana daqueles que eram conhecidos como muçulmanos no campo
de concentração:
O
assim chamado Muselmann, como era denominado, na linguagem do Lager, o
prisioneiro que havia abandonado qualquer esperança e que havia sito abandonado
pelos companheiros, já não dispunha de um âmbito de conhecimento capaz de lhe
permitir discernimento entre o bem e mal, entre nobreza e vileza, entre
espiritualidade e não espiritualidade. Era um cadáver ambulante, um feixe de
funções físicas já em agonia. (AMERY, apud AGAMBEN, 2008, p.49).
Assim,
animalidade da vida humana e o processo de transformação, rendição e morte, ao
qual Kafka já abordara, têm, nas monstruosidades das formas de governo
totalitárias e sistemas econômicos oligárquicos seu cumprimento profético.
Certo é que os escritos do autor de Praga nunca se tornaram tão necessários
para o nosso tempo presente.
Bibliografia
AGAMBEN,
Giorgio. O que Resta de Auschwitz. São
Paulo: Boitempo, 2008.
AREDNT,
Hannah. Compreender: Formação, exílio e
totalitarismo (ensaios). Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das
Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
LEMAIRE,
Gérard-Georges. Kafka. Trad. Julia da
Rosa Simões. Porto Alegre: L&PM, 2006.
KAFKA,
Fanz. A metamorfose. Tradução de J. A. Teixeira Aguillar. Santiago:
Publicações Europa América, 1988.
_____.
O Processo. Trad. Torrieri Guimarães.
Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1964.
* Pedro Alcântara é Professor, Reverendo. Graduado em Filosofia (PUC GO) e Teologia (STBG). E Mestre em Filosofia (UFG). Atua como pesquisador nos temas Educação, Filosofia e Religião.
“...pois para Kafka, o tempo presente é um misto de absurdo, ficção e realidade.”
ResponderExcluir“Tanto em A Metamorfose, quanto em O Processo há a presença de elementos proféticos daquilo que o século XX pode de pior experimentar. Tais romances apresentam um processo evolutivo na vida de seus personagens com semelhanças diretas àquilo experimentado nos regimes totalitários, a saber, a privação de liberdade, a rendição e a morte.”
"...que com um olhar profícuo, conseguiu contemplar os desafios e as lamúrias da vida humana e social contemporânea"
Baita texto de Pedro Alcântara. Além de formativo, nos cativa pelo serviço de apoio antes de iniciar em Kafka e suas anomalias verossímeis.