James Frederico Rocha Coelho

ibere-camargo
"Sem título"   - Iberê Camargo 

A Revista Banzeiro, neste tempo de pandemia, traz, mais uma vez, a escrita precisa e a reflexão profunda de James Frederico Rocha Coelho, sem sombra de dúvidas, um dos melhores contistas brasileiros. Natural de Carolina – MA, James é formado em Letras e Direito. Em 1989, publicou o romance Quarto 16. O conto O Homem que não havia faz parte do livro Histórias Civilizadas. Goiânia: América, 2015. Logo após o conto, no final desta página, você poderá conhecer um pouco mais sobre o autor. A imagem que ilustra este conto é do artista Gaúcho Iberê Camargo. 


                                                                                                        
   O HOMEM QUE NÃO HAVIA



Os homens são tão necessariamente loucos, que não ser louco significaria ser louco de um outro tipo de loucura
Pascal
          
                                                                                                                                                                                                                         
Essa história é personalíssima e um capítulo breve mais definitivo em minha vida, como ouvinte da vida que devo ser. Personalíssima porque tudo na gente que vem de nosso silêncio pessoal e superlativo cria outros mundos paralelos, que nem por serem paralelos deixam de alegrar ou causar dor, da dor funda de se saber que um caminho, dobrado à direita, pela esquerda poderia ter seguido.
O relato me veio à memória de uma conversa antiga, não recordo se o contador foi um amigo da escola ou um conhecido qualquer de quem não posso mais lembrar – aconteceu quando começaram a levantar os edifícios residenciais de Águas Claras. Depois da autorização da prefeitura, a especulação imobiliária revolveu quase todo o imenso descampado de vegetação rala e rasteira, marcando a terra com traços que formaram inúmeros retângulos, onde mais tarde instalaram os postes de iluminação e abriram as ruas. Nosso contador ouviu a história de um homem que trabalhava como vigilante naquele aluvião de obras em construção. Conto a história como ouvi, ou acredito que ouvi. Imagino, para meu conforto, quando lembro dela, que fora contada numa noite de verão clara e tranqüila. O lugar e o tempo, também não recordo. Pode ter sido nos bancos daqueles passeios de paralelepípedos onde os vizinhos de bairro fazem caminhadas, ou posso tê-la ouvido enquanto bebia cerveja nas noites barulhentas de nossa megalópole. Importante dizer, principalmente, é que conto conforme ouvi.
“ O meu turno começava ao meio-dia e terminava a meia-noite. Isso na segunda, na quarta e no sábado. Terças e quintas, folgava. A guarita de trabalho era um cômodo estreito de tabique. Na minúscula prateleira de madeirite dos fundos, um rádio e um filtro d’água de barro. Eu sou um homem seco, de bochechas encovadas, e tenho trinta e seis anos. No trabalho visto um macacão azul de brim ordinário, com a marca da construtora estampada no peito e nas costas.
A primeira vez que o vi, ele viera à obra acompanhado do engenheiro-chefe. Ele também era um homem seco, de bochechas encovadas. Quanto a idade, não posso precisar, pois sempre fui um péssimo fisionomista. Como eu, não era um homem bonito, e éramos diferentes apenas no traje e na altura – eu era muito mais baixo. Com muita insistência e por conta de um elogiável poder de persuasão, convenceu a incorporadora a lhe vender um apartamento inacabado, num tempo em que isso não era usual.  Mais exato dizer que faltava muito para a conclusão das obras, e os apartamentos sequer tinham portas e janelas. Ele apenas exigiu já instalados o vaso sanitário, a pia da cozinha, o chuveiro e duas lâmpadas.
Mudou-se um mês depois para um apartamento do primeiro andar, defronte à guarita de vigilância. Trouxe um mobiliário franciscano e uma televisão ultrapassada. Aquele lugar, exceto de segunda a sábado, era completamente ermo. O comércio estava distante e a cidade em si, mais distante ainda. Todos nós, operários da obra, chegávamos ao trabalho munidos de marmitinhas de papel alumínio, com a refeição do turno. Depois da meia-noite, terminada a labuta na obra, o que restava era algum remanescente e recalcitrante pássaro noturno ou o chiado do vento na vegetação rasteira e ressequida, pequeno grande espetáculo que restava para assistir a quem ali dormia em turnos de revezamentos. De tanto estar só e não ter com que se ocupar, além de observar a vagarosa dança dos astros e a inquietude discreta dos pássaros noturnos caçando comida, eu ouvia o rádio. Porém, com a mudança daquele homem para o apartamento em frente, passei a observá-lo. Ele saía para a cidade muito cedo, por volta das seis da manhã, e retornava no cair do dia, sempre com um saco de papel com pães e os óculos dependurados do bolso da camisa. Subia as escadas sem pressa, silencioso e às vezes cantando ou assobiando. Enquanto ele tomava banho, cá de baixo ou o via da cintura para cima, através do vão da parede de uma janela que ainda não havia. Quando o via tomando banho no chuveiro improvisado no térreo, do lado de fora do edifício, sempre com a mesma bermuda azul desgastada, não raro eu também sentia vontade de tirar o macacão e tomar banho no meu chuveiro também improvisado no fundo da guarita, tamanho o prazer que parecia lhe proporcionar aquela ducha fria de final de tarde. Havia nele também a estranheza de não cumprimentar ninguém. Aos poucos também passou a tratar com reserva e distância o engenheiro que lhe facilitara a aquisição do imóvel.


Não mais que dois meses depois, já não cumprimentava sequer o engenheiro e a impressão que dava era de que não enxergava mais ninguém. Ao longe, à entrada do canteiro de obras, ele aparecia à tardinha e percorria os quinhentos metros da trilha de cascalho vermelho com a cabeça sempre erguida, como se todos estivéssemos ausentes. Semanas depois, quando chegava ao seu apartamento, começou a falar sozinho, cantar alto, esbravejar de vez em quando e gargalhar com freqüência. Vez ou outra, na área dos pilotis do edifício inabitado, discutia consigo mesmo uma miscelânea de assuntos, alguns hilários e inusitados. A sua indiferença à minha existência e presença permitiu que aos poucos, e não abruptamente, num misto de curiosidade e impertinência, eu me aproximasse quando ele descia para a área no térreo. Eu ouvia as conversas que ele entabulava com pessoas que não havia, que eu não via ou ouvia, ele interlocutor dele mesmo, com uma lúcida e estranha convicção. Quando me entediavam o rádio ou o silêncio do lugar, eu subia as escadas e, na área comum, ainda de tijolos descobertos, sentava ao lado da porta que não havia e ouvia as conversas, os comentários com suas invisíveis gentes, seres que eu suspeitava terem permanecido adormecidas e ocultas nele mesmo. Quase sempre eram diálogos densos, com frases lógicas e bem situadas. Com o tempo fui conhecendo e reconhecendo aqueles seres com quem ele conversava e depois de algum tempo o rol daqueles nomes já me soava familiar – passei a ter com ele, de minha parte, mesmo a distância, certa intimidade.
Uma dessas pessoas era uma mulher de nome Verbena, esse nome anacrônico, um tanto implausível. Dos comentários que ele fazia, estava claro que era sua irmã, que era baixa e gorda, que ria muito, que era a irmã de sua preferência e que era quem ouvia suas queixas, confissões e segredos. Ele deitava num sofá marrom com pinturas de pássaros coloridos em cores fortes no tecido que recobria o encosto alto e fofo e, vestindo calções largos e rindo com discrição, conversava com aquela irmã que eu não via, mas que se cobria com um vestido leve e florido, de organdi. Um dia, sério, falou dos problemas que enfrentara com o irmão que chegaria dali a dois dias. Aquela irmã, porém, foi quem o acompanhou nos males da saúde, algumas vezes ao pé da cama. Certa vez, ele, entubado, desacordou por dois meses em uma UTI de hospital público. Aquela irmã o fazia se soltar e desabafar todos os entreveros e choramingar os desencontros. Conversavam de preferências culinárias, de trabalho, de dinheiro e de suas putarias; ela também falava de suas putarias e namorados, e ele escutava com gosto e paciência, gozando uma confiança que me parecia a ele tão cara e tão prazerosa. Ele falava do casamento desfeito e lamentava a separação premeditada por muitos e longos anos. Vez em quando declarava o amor que sentia por aquela irmã, que mesmo longe, nunca estivera ausente. Riam com freqüência e lembravam os pais, os avós, suas manias, suas neuroses, e das paranóias recorrentes da mãe, mas também de tudo de bonito neles. Aqueles monólogos dialogados daquele homem com a irmã ausente, denunciava a tormenta da distância física, a distância quase sempre doída – das outras distâncias nem falo, pois aquela irmã nunca despertara nele sentimentos ruins.
De outra vez, quando um irmão seu de nome Cláudio chegou, irmão que somente ele enxergava, observei-o, numa noite azul e límpida, dialogando seus monólogos ao pé da porta da cozinha. Na verdade, ao pé de uma porta que não havia. A discussão com aquele irmão denunciava que o irmão largara-se no mundo e levara quase todo o patrimônio da família consigo. Traíra a todos e agora voltava adornado com roupas de luxo, de marcas caríssimas, com um automóvel impagável, enquanto ele, prestes a ser demitido, perambulava com pouco dinheiro no bolso. Dizia que sua mulher e seus filhos também foram muito prejudicados pelo golpe aplicado pelo irmão. Tripudiou sobre aquele irmão com palavras raivosas, mas isso não era o pior, aquele fora o irmão preferido, fora desgraçadamente o irmão que habitara sua casa anos e anos. Mas com todos os percalços daquele diálogo monologado, que só é permitido a um homem só, ao final ele capitulou e, mão no ombro daquele irmão que não havia, ele suspirou uma, duas vezes, calou por algum tempo, pensou aquele pensamento que não sai da cabeça, exatamente, e perdoou. Todo ressentimento deve ser moído e remoído em algum lugar, em algum momento, é a praxe necessária do mundo. Após o perdão consentido, foi para o quarto e em poucos minutos roncava um ronco altissonante, só franqueado aos que perdoam.
Nessa mesma noite azul e limpa, levantou-se na madrugada para beber água da torneira, estava insone e ansioso. Não demorou e outro alguém que não havia chegou ao apartamento, e eu constatei isso porque ele balançou a cabeça e mexeu os olhos, como quem acompanha gestos e conversa com alguém, conversa discreta sobre a vida dos outros. Em pouco tempo tremia as mãos, os lábios e ajeitava sobre os ombros o lençol amarelecido marcado pelo uso incessante e antigo, via-se que desejava pronunciar alguma palavra, mas não conseguia, e no máximo murmurava palavras truncadas, que saíam de sua boca quase cuspidas. Torcia as mãos, sentava, deitava, levantava, sempre com os olhos postos no canto direito da sala, o olhar fixo naquele outro alguém que não havia. A paz, o assovio, a displicência descompromissada e as gargalhadas matutinas, às vezes diuturnas, deram lugar a gotas atormentadas de suor que escorriam pela face encovada. Em seguida, por fim, ele falou: “ – Não te esperava, não agora ! Pra dizer a verdade, não te esperava nunca mais. Mas também pudera, não atentei para a solidão aos poucos acumulada em porções pequenas, esparsas, que foram inundando os pequenos espaços diários de nossas vidas, quando em certo momento eu acomodei-me a essa triste intimidade com a mais bruta solidão. Um dia, descobri, houvera de estar refém de uma solidão maior e definitiva, aquela que arranca, exila a gente de todas as gentes, solidão espalhada, que ruge na amplidão particular de cada um – falar que palavra, a quem ? Esta cidade admite qualquer espécie ou gênero de solidão, pois ela está prenhe de homens e mulheres sós. No viaduto, ao lado do conjunto de casas populares em que morávamos, eu sempre pressenti milhares de palavras à mercê de serem ditas, desejadas de serem ditas, mas nunca foram ditas, e apenas adejaram ao redor das pessoas, de suas cabeças, e flutuaram presas no escuro interior de milhares de bocas, e jamais foram ou serão pronunciadas. Quando dei conta dessa situação, arrependi-me do abandono que eu perpetrara contra nós e senti a nostalgia grotesca e dolorosa das poucas e bestas palavras que eram faladas vez em quando, ao longo dos longos dias. Era muito bom ! Não se tratava de vaidade, nem sofisticação, nem mistério, ou de palavras inalcançáveis, mas do compromisso com o descompromisso, que é próprio e privilégio que Deus deu a esses seres microscópicos e desconhecidos, seres quase invisíveis que habitam o ar que respiramos, ou moram em nossa pele ou no vão mais distante da terra ou do mar, e que deles não se tem notícia ou conhecimento. Nesse tempo eu desejava muita coisa e muita gente, e vivia na torre de vidro do desejo incauto, mas que sabotava o homem simples, que não desejara um dia o brilho fugaz de existir a existência transformada em espetáculo diário. O espetáculo estrelado pelo bobo da corte de plantão. Desaprendera o fascínio, que deve ser a regra, mas só sobrevive ao largo da solidão, perto dos outros, o que é sempre arriscado e perigoso, mas fundamental. Desaprendera de sentar na mesa do terraço dos fundos, olhando direto nos teus olhos,ouvir tua voz falar de um passeio ontem, conviver no barulho úmido da chuvinha generosa e intermitente, barulhinho aquoso no telhado marcado pelo lodo de anos – a substância da felicidade possível, o sangue de uma convivência que algo ou alguém desconhecido tornara possível, e digo assim porque sei que aqueles momentos se foram, fugiram, como um determinado e fugaz aeroplano que, partindo, tivesse escrito pela letra de Deus que jamais retornaria. Somente mais tarde veio-me a noção cruel de minha inglória fragilidade, eu um náufrago que pouco antes do momento final recusasse a ternura de um beijo, que pudesse ser o beijo simples, diário, mas definitivo. Plantei pouco, plantamos pouco, algo que frutificasse. Fomos pouco ao cinema, fomos pouco a lugares incertos. As cores do mundo são irresponsáveis, cor de crepúsculo, bicho ou árvore, que tem a divina permissão de variar, sumamente imprevisíveis. Rimos pouco de nós mesmos, de nossas vidas que passavam céleres diante dos olhos do mundo. Celebramos pouco os companheiros de viagem. A terra e o fogo ignoram as palavras, a água, sei bem, também ignora as palavras, ignoram as artimanhas, as armadilhas que estão nelas palavras. A água, a terra e o fogo seguem solenes, firmes, nos seus silenciosos passos cotidianos, ignorando a memória e o inevitável desfecho pessoal de tudo.
Enfim, mesmo que não consigas perdoar-me, eu próprio perdôo-me por ti, em teu lugar, e agora com coragem exponho-me, miúdo e risível, como o resto, e sei que agora mereço esse perdão, um pouquinho de paz, que garimpo dia após dia, noite após noite – agora sim, sou autoridade delegada e constituída, artesão emérito para praticar o ofício ou a arte de perdoar. Além disso, para mim que agora tenho a pia certeza de ter compreendido alguma pequena coisa da vida, ainda compreensão pela metade, mereço ser perdoado, o que não é arrogância, pois jamais recusarei amar e celebrar o mundo, nada está incompleto quando se trata de amar e celebrar o mundo. Se você acreditar em tudo isso, venha, aproxime-se, nos beijemos – vamos agora passear, nesta noite, sem a hora, sem o jogo, sem as palavras, sem o medo.”
Depois dessa longa fala consigo mesmo, o homem desceu para a área comum do térreo e passeou de mãos dadas com uma companheira que não havia. E pareceu-me que ela haveria de tê-lo perdoado, pois na madrugada ele ainda passeava pelas ruas de cascalho, e estava sereno.
Ele esteve ausente algum tempo, talvez quinze dias ou um mês, não recordo ao certo. Senti sua falta. As noites alongaram-se e um tédio morno e resignado invadiu a guarita. O rosto triste da solidão é verdadeiro. Acordo às quatro da manhã, no canto do armário de aço está a marmita de alumínio, brilhando. Os gestos e o modo de o corpo mover-se e avançar são quase os mesmos. Minutos depois ocupo meio metro quadrado do passeio público sob a estrutura de pré-moldado do ponto de ônibus, onde encosto, quando posso. Sou gerente de depósito, o antigo almoxarife, nem mesmo sei se ainda existirá esse nome no mundo corrente. Conheço de vista alguns transeuntes, pois são vinte e oito anos nessa vida, percorrendo esse mesmo trajeto urbano. Observo-os como eles me observam, com uma indiferença compassiva e ao mesmo tempo mentirosa – não sou indiferente a ninguém. Que Deus tenha piedade de todos nós, que vivemos em grupos, aos milhares, sem nos tocar ou nos falar. Há mais de uma década encontro três ou quatro deles naquele ponto de ônibus, a cada amanhecer de cada dia útil da cidade. Para nós, homens de meia-idade da cidade, que trabalham, a vida parece esgotada, monumental apresentação de teatro que se finda logo na abertura do pano e cujo enredo fala que quase tudo permanece incompreendido. Não compreendi ainda, lato sensu, os cheiros, as luzes, as peles de todas as diversas gentes – brancas, amarelas, douradas, mestiças e suas misturas, nuances de correntes ora turvas, ora aparentemente cristalinas, todas de prazer e dor, que não decifro e que, por hábito, acontecem ao mesmo tempo. Mas considero importante, ainda, a convicção inabalável de que faço tudo certo, embora chore escondido. Há anos não sonho mais com vôos sobre ilhas desconhecidas ou sobre improváveis continentes. Vive a meu lado uma mulher distante e filhos enfileirados, como num pelotão de quartel, de quem me compadeço. Careço como nunca dos seres invisíveis e também dos imaginários, pois do contrário esse sentido não terá sentido. Sinto vez em quando, no meio da tarde, da manhã ou da noite, um clamor escondido por detrás de anteparos, escondidos por outros anteparos, paredes escondendo paredes de aposentos desconhecidos, um clamor por música, por alguma presença plena que não fosse a presença daquele estranho condenado à condição de eterno estranho, até o último dia. Orgasmo permanente num turbilhão que pudesse jazer num fundo chão de tranqüilidade, o que quero. Encontro permanente, o que desejo. Nisso me vejo sob o chuveiro de água farta, sentindo na alma o vento de maio, que suspende gotículas de água por um instante, e elas brilham e elas volteiam e fazem um balé suspenso no ar, antes que cheguem à superfície dura do chão. Elas deviam permanecer suspensas, volteando e bailando, refrescadas e refrescando. Lá embaixo o chão. Há muito fui atirado ao chão, e da leveza inicial agora muito pouco. Acostumei com o chão, mesmo o riso pode propagar-se ao rés do chão, o riso deve propagar-se ao rés do chão, é ali onde tem mais utilidade e onde imita Deus. Não há controle quando chega o riso, sei disso, mas não volteio nem bailo, vivo a insípida permanência regular de quem não morre e não vive. Atentem para o importante, hoje sei chorar, mesmo que seja o choro do menino que se despede da mão para nunca mais voltar, e isso é alguma coisa, isso é muito.
Antes do retorno dele ao prédio de apartamentos, dormi menos em casa e permaneci com mais assiduidade no canteiro de obras. Justifiquei com horas extras. Ocupei pro bono turnos de colegas e eles, silenciosos e agradecidos, não compreenderam a bonomia. Contradição final, eu desejava ficar só.
E pela primeira vez, numa noite fria de junho, enquanto o vento arrastava folhas secas, eu, de olhos fechados, percebi-me encarcerado, litúrgico e inexorável ato de consumição. Dei por mim que me consumi sol a sol, jamais dediquei a mim um afago sequer, estava ocupado em talhar o homem adaptado, admirável e triste, lá no fundo. Afagos que me permitiam eram somente os afagos do ególatra da cidade, mas não carecia desse afago, carecia daquele que nem parece existir e quando menos se espera aparece debaixo da fronha do travesseiro, da janela entreaberta ou do meio das pernas da mulher, naquele instante iluminada. Queria e carecia do afago solto, acima da ciência e das coisas, imenso, mas ao mesmo tempo imperceptível. Desejei, soberbo, que o tempo não se dividisse em mim, que o mundo não aparecesse em categorias. Afago de um tempo por inteiro, sublime, de um espaço por inteiro, comum e perene, se Deus permitisse, mas Deus não permitiria.
À tardinha de um sábado ele apareceu na curva da estrada de cascalho. Com ar de cansado, subiu para o apartamento arrastando com dificuldade uma sacola de couro. Naquele mesmo dia, a noite, subi para escutar seus monólogos dialogados, mas ele dormia profundamente. No dia seguinte, quando a noite descia, da guarita ouvi sua voz. Subi e fui surpreendido com a sala pequena do apartamento enfeitada: balões, fadas, gnomos, anões e palhaços coloridos de papel e, ainda, sineta chinesa de prata barata dependurada na porta de entrada e um bolo confeitado no centro da sala, de um mau gosto californiano. Ele caminhava pra lá e pra cá, numa inesperada alegria de tablado. Pedia calma e cuidado às crianças que não haviam, e a quem ele chamava Pedro, Letícia. Uma delas, em especial, recebia de sua parte um atento acompanhamento. Algum tempo depois ele armou uma câmera fotográfica de tripé. Os flashes, em dúzias, alcançavam a todos do outro lado da sala, enquadrando na luz repentina o bolo confeitado ao centro da mesa, guiando o sopro e as mãos de uma criança que não havia, o Pedro. Anônimo, participei da festa de Pedro, e só na madrugada, ao voltar à guarita, enxerguei-me ao longe, distanciamento triste, onde agora estava alheio à minha própria existência - um descompromisso, mas ao mesmo tempo permanecia na responsabilidade com o mundo, porque considerava tudo ao meu redor, mesmo o que estava distante e que não via, mas esse sentimento também era um misto de irresponsabilidade e respeito com o seguimento dos acontecimentos – isso me pareceu o mantra dos celerados, dos tomados daquela paixão que só o inferno protege e Deus transforma em vida.
A lâmpada do quarto dele permaneceu acesa a noite toda, eu a via através do vão de uma janela que não existia, pendulando leste oeste, oeste leste – ânimos e desânimos. A lâmpada dormiu acesa. Quando amanheceu procurei os companheiros que não haviam, mas não encontrei, e mesmo que os tivesse encontrado, eles não falariam, não dariam as mãos. Procurei aquele menino Pedro e desejei que fosse meu, mesmo sabendo que não havia, mas não o alcancei, nem o vi. Permaneci só e andei pela estrada e pelo descampado do cerrado.
Ele foi despejado dois meses depois e, ainda no mesmo dia do despejo, sentado numa caixa de madeira, dessas de feira para acondicionar frutas e verduras, jantou uma posta de peixe acompanhada de uma porção de farinha seca. Serviu-se com despropositada e elegante solenidade, estava sereno. Conversava em sussurros com um Anselmo que não havia. Quem observasse bem, diria que estava fazendo a refeição à mesa do palácio do governador.
Aquilo tudo, aqueles acontecimentos, confundiram-me, uma garoa espessa, inexata, pensamentos misturados, frágil definição do riso, parca sabedoria para entender a lágrima – situação de não saber que se sabe, e se sabe muito bem, porque está guardado lá no fundo da segunda alma, pois temos todos a segunda alma, de quem sabemos muito pouco, ou temos pavor de saber. Nem mesmo o limite entre a razão privada, medíocre e corriqueira, e a indecifrável loucura do mundo, cabia no meu entendimento. No entanto conhecia bem dos desatinos da solidão urbana e alguns poucos segredos dos homens da cidade.
Aos poucos fui capitulando e talvez aproveitasse mais se não tivesse visto despropósito em reconhecer e talvez aceitar, manso e desarmado de espírito, a minha insana razão privada diária, guardando para mim o projeto de proteger e viver minha lúcida loucura particular, sem estardalhaço, sem alcançar quem quer que seja, homens e coisas. Obviedades também são verdadeiras, às vezes. Dessa lúcida loucura e dessa razão privada de rotina, deveria carregá-las na bagagem, todos os dias, durante toda a viagem, até o momento final, se final fosse. Confortava acreditar que a demência estava na cidade, no espírito da cidade, a demência permitida e controlada, e também a mais devastadora de todas, a demência útil, produtiva. Minha negligência particular comigo mesmo era justificada pelos ganhos que só a vida produtiva poderia me conceder, ganhos que eram o principal, como diziam.
Aquele homem, acredito, houvera sido tomado de outro tipo de demência, a contrademência do paraíso. Aquela contrademência substituta do álcool, do ópio, da metanfetamina, da cocaína, do sexo, da oração, da poesia e da música. Aquela contrademência talvez tivesse substituído seu jogo de azar, seu consumo, sua melancolia, todas suas taras e todos seus vícios – perdão e aceitação. Não haveria de suportar de outro modo que fosse. Mas estava só, ainda.
Nessa noite dormi em casa. Descobri, à meia-noite, sob uma luz fraca, espalhados pelos dois cubículos da casa, gente a quem eu negara o meu olhar mais cuidadoso ou mais sublime. Uma mulher deitada, adormecida, com um braço pendente, crianças mal acomodadas sob fuxicos coloridos. A enganosa sensação de conhecê-los, a reprise de nossas vidas, na cabeça vídeos galopantes, entrecortados, salteados, confusos e recorrentes, que um Deus trêmulo e inoperoso reproduzia sem interrupção, projetando longos dias e longas noites que passaram. A mulher e as crianças estavam em mim, desde o início, confundiam-se no mesmo itinerário. Quando clareasse o dia talvez tivesse uma palavra doce, mesmo receosa que fosse pela falta de hábito. Não negaria mais ao mundo a intenção trivial e simplória, a maneira desinteressada, que contrapusesse nosso contundente veneno humano, que negasse nossa condição principal. Nunca me contaram onde daria esse redemoinho.
Assim, muito dadivoso e tomado dessa aura romântica e ingênua, optei pela loucura lúcida que também o mundo oferece. Que, insensatos, consumíssemos a vida de mansinho, como num palco improvável onde gastá-la fosse um ato heróico e glorioso, mistura de fé e silencio.
Num momento ou noutro, tudo isso soou falso, mas qualquer história ensina, sem nem mesmo precisar de lucidez, se dela não se dispuser.
Aprendiz de quase nada, mas qualquer pouquinho já me servia.

 - * -

Sobre o autor

O que é feito da sombra? As manifestações do fantástico no conto “Luzeiro”, de James Frederico Rocha Coelho

Francisco Perna Filho; Heleno Godói de Sousa

Os Melhores livros de 2015

Entrevista com James Frederico Rocha Coelho

Leia o conto Luzeiro de James Frederico Rocha Coelho










João Henrique da Costa Novaes

João Novaes - Acervo do autor

Eros e Thanatos: a sublimação do Poeta




A Revista Banzeiro, ao longo de sua trajetória, tem se dedicado ao que há de melhor no campo das Artes e da Literatura. Nesta edição, não se desvencilha desse propósito e brinda os seus leitores com a poesia de João Henrique da Costa Novaes (João Novaes), que, em 2017, lançou o livro Sublimações: a imortal tragédia do amor mortalpela Lei de Incentivo à Cultura, da Prefeitura de Goiânia, cujos poemas, sonetos, vêm ilustrados  com primorosas fotografias do autor. O livro é dedicado ao pai, jornalista Washington Novaes.

Ao optar pelo soneto, João Novaes, além da luta com as palavras, empreende com maestria e esmero uma verdadeira tessitura: métrica, ritmo e rima, distribuindo, nos catorze versos a que dispõe (dois quartetos e dois tercetos),  inventividade e beleza, quando empreende viagem aos meandros do amor, sob invocação do deus Dionísio (Baco), ao contrário da invocação épica, cujo apelo o poeta faz à musa, como proteção ao canto. Em João Novaes, a invocação é outra, o poeta busca a orgia, o prazer, a magia, o vinho,

Dionísio, ó deus louco, meu deus trágico,
Vem a mim com seu tírso belo e mágico,
Ungir de mania e orgia todo meu ser,
Traga as bacantes, o prazer

a força de Eros em oposição a Thanatos , como exercício de prazer, gozo, e morte, daquilo que nos fala Georges Bataille: "O ápice do prazer é a morte". O texto Poético como objeto de prazer, que se realiza desde a idealização até a materialização, e se completa no momento da leitura, do embate, do debate: o ápice do prazer: poeta e leitor. Escrever também é uma forma de sublimação, de mostrar-se vivo, de legado existencial, como no último poema do seu livro:

SUBLIMAÇÃO

Estranhamente, se assim vai terminando este alfarrábio
Mas sublimação final só mesmo com a morte,
A reencarnação, outros poemas, uma nova sorte
De palavra enviadas por aquele sábio astrolábio!

Se existe um remédio, este milagre chama-se tempo
Entre músicas diversas, absolutamente aleatórias, dispersas
Buscando luz nos interstícios, seguem as vidas desconexas
De todos nós, do cosmos, de um mundo sem templo!

Difícil atingir este estado de espírito, a felicidade,
Construída no silêncio, no vazio, na perene santidade
Repleta de significante e significados da Asseidade!

Este livro é para aquele menino tímido e sombrio
Que só pensava no fim, pobre, cego e frio
Mas a quem a vida ensinou um novo brio!

João Henrique da Costa  Novaes é natural do Rio de Janeiro, mas ainda bem jovem veio para Goiânia, onde formou-se em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, e pós-graduou-se em cinema. Apaixonado pelas artes, com verdadeira devoção à Literatura, escreve desde os 14 anos, quando começou a ler Cruz e Sousa, Alvares de Azevedo, Rimbaud e outros grandes poetas. Segundo ele, sua fixação por sonetos vem daí. João Novaes também é diretor e produtor executivo de cinema, televisão e sites. 

Tenham todo(a)s uma excelente leitura!
 Francisco Perna Filho*




by João Novaes 






DIONÍSIO



Dionísio, ó deus louco, meu deus trágico
Vem a mim com seu tírso belo e mágico,
Ungir de mania e orgia todo meu ser,
Traga as bacantes, o prazer

Iremos juntos às vinhas festejar
A vida, folia, sangrento manjar,
Entre os deuses só tu és morte e vida,
Loucura e a alegria perseguida

Sátiros, selenos nos guiarão
Ao paraíso terreno e astral
Num orgasmo sem fim, descomunal

Iremos às ninfas em sofreguidão
Longe dos Titãs gozar do teu vinho,
Ébrios, doidos e depois sozinho!


SONETO DO AMOR MORTO


Som amordaçado, frio e afiado,
Primavera apodrecida no azul,
Desnorteia, deixando sem oeste ou sul
O estúpido poeta encouraçado

Clave de sol límpida, encaixotada,
Pomba-gira sanguinária escarlate,
Não mate este amor sem limite,
Partitura de Bach na chuva, borrada.

Lilith em Lesbos, torpe, degredada
Mata o amor na luxúria degradada
Insano modelo da decadência

Medeia, marafona da indecência
Narcisa não reconhece o respeito,
Não pense que é rancor ou despeito!



ORFELINS EREMITAS

A vida parece uma grande espera,
Banquete profano roubado de Osíris,
Que Afrodite cuida, lambe, esmera,
Dádiva e samsara, bulbo de Amarílis;

Ferida, sangue, muitas cicatrizes.
A vida é medo profundo da solidão,
Cor universal de todos os matizes,
Estrela cadente da grande paixão!

Se me perguntas onde nascem os ventos,
São flores de cactos de corações sem lamentos,
Vêm de pulsares galácticos, intactos

Rompem sempre a barreira temporal
Cavalos selvagens do ar magistral
Orfelins eremitas do amor carnal .




by João Novaes




BODHI

Ainda não atingi a sabedoria sagrada
Superconsciência alada dos Ríshis, nos sutras,
Todo dia nos cinemas, vagando às escuras
Continuo corpo inerte, mente castrada;

Li o Mahabharata, os Upanishads, a Bíblia e o Alcorão
E sei que não se produz santos às fornadas
Até não haver mais almas deformadas
Por sua estranha filha, Maya, Karma da ilusão...

No Dharma, Buda Maitreya, conceda-me o samádhi
Cristal do templo, mente diamante de Bodhi
Finalmente o caminho por sua óctupla senda:

Rache minha cabeça com uma enorme fenda
Cravada no lótus de mil pétalas de luz,
Cegue os olhos e amplie a visão que reluz!



O PASSADO II



Eros afoga-se na tinta escura do papel
Transforma a luz num borrão impresso
E comete um só erro, réu confesso
Da alma disparada num tropel,

Mas o passado não é somente sombra,
Antes e sempre será luz divina
Não traduzível em palavra viperina,
Manchas de tinta, sentimento que assombra,

Escurece o céu e os olhos encobre,
Deus do amor em busca de sua Psiché,
Feriu a si mesmo com a flecha de cobre

E agora não tem ou deseja mais cura,
Somente a transformação do real em arché
Mármore eternamente trincado pela fissura!


    
 ABOIO


Por onde andará você na madrugada
Agora que me tornou uma besta humana
Só saciável de carne, podridão mundana
E a luz barata dos desejos, alugada

Onde estará finalmente a última revoada
De garças brancas voltando pro entardecer
O casulo de uma nova alma, envelhecer;
Leveza do tempo que jamais será aboiada,

Onde estará você , ó bruma açoitada ?
Pros confins de outra vida, recriada
Para o eterno retorno do que sentimos

Como o gado em busca d´água sombreada
Fresca, pura, nova, límpida, adocicada
E assim, sem rumo nem destino, partimos ...



kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
by João Noves




ASSOMBROS SONOROS



Os assombros sonoros consonantais dos sonetos
São aliterações do espírito em matéria,
Logos transformado em verbo rasga a artéria
E nunca termina com simples tercetos!

Verso tísico transmutado em velhos abetos
Olhar físico e quântico eternamente cantado
Em rima e prosa, Van Gogh sublime pintado!
Eu vos amo, meus pequenos e solitários sonetos

Mesmo assim, sem métrica ou metáfora alada
O que vale sempre é a poesia trovejada
Raios e lampejos em transe da consciência,

Êxtase da palavra perdida no vento, onisciência,
Vozes ventríloquas vividamente vociferadas,
Ao pé do ouvido, por seres de luz sopradas!



SONETO SARRACENO


Na roleta russa desse louco amor
Não sei o que é antidoto ou veneno
Que possa destilar a minha dor
Sem ar ou sublimação, peito sarraceno.

Só não quero ser mais uma flor do mal
Mas sim aquele que conduz o fogo, Prometeu,
Pois vejo em todos os cantos o sinal,
Era de Aquárius, luz que ainda não ardeu!

Saudades de ti neste tempo iluminista,
Aconchegada, serena em meu peito,
Mas também lembro do horror, vida fetichista,

Então fica este soneto, sem pré-conceito
Do beduíno das palavras, um anarquista,
Seu amante delirante, um suspeito!



RIMA


Quando as retinas derretem-se em poesia
 A ficção do cinema vira a rotina do dia a dia
Fulgura na mente a luz passada da alegria
Queimando as sinapses daquela outra maresia

Momentos que tostam a estúpida solidão
Ao entender no crepúsculo do divino perdão,
A insignificância de toda e qualquer paixão
Perdida na seca, no ar árido desse sertão!

Vá pensamento doido, cavalo sem bridão
Beber da água doce do pequeno ribeirão
Escondido entre os buritis e capins dourados

Reavivando momentos sutis e refinados,
Longe da estagnação e do horror passados,
Rima cabocla, obscura, riscada no coração!




by João Novaes




SONETO ÁSPERO

Estes dias eternos, de angústia e espera
Em que a morte passa a cada caminhão
Cruzando a estrada, a palmos da carcaça áspera
Neste pedaço sujo, imundo, de estrada de chão.

Concerto de harmonia estranha, dissonante
O vazio da solidão cala fundo na alma:
Só sei que não quero mais um amor exasperante
Que me tire o sono, os sonhos, a calma .

Se a realidade não é mais sensível ao toque
E os dias perderam o brio, a mágica sutileza,
Mas você ainda não encontrou sua outra natureza

Reveja os hábitos, dê na vida um retoque,
Pra que ela também te empurre pra frente
Pro futuro, ali no sol vermelho ardente!



SERENDIPITY

Ela chegou assim, de repente, sem nada dizer
Mansa calmaria do amanhecer, felicidade serena
Evapora toda e qualquer lascívia obscena,
Sem nenhum gesto é o gosto do prazer

Sua pura presença, encarnação sutil da paz
Encontrada ao acaso, coincidência, serendipidade
Rebuscada alegria amena, divina santidade,
Mais nada questiona, no orvalho Tudo traz:

O sorriso e a calma, de volta a tua alma,
O perfume amarelo e delicado do Ipê,
Tela a óleo de Turner, difusa, em degradê

Colore as avenidas com flores e conclama
O curvo escriba, antes cinza, empoeirado
A rever a magia da luz de um céu estrelado!



PÁSSARO SEM ASAS

O nome veio num instante fecundo
Num dia de chuva, cinza, nauseabundo
Pássaro que voa sem asas, louco, incerto
Segue a corrente do ar o soneto liberto!

O nome veio assim, num dia profundo,
Kerouac na estrada, iluminado vagabundo:
O tesão pela palavra, em mim mesmo um incesto
Sem pecado ou culpa, não mais um manifesto!

Pássaro estranho, de plumagem cor de chumbo
Em cujas artérias corre a tinta que não pinta
Nem colore, mas escorre a cada bicada no peito

Que ele mesmo se dá, arrancando lá do fundo
Novas linhas que são veias!- não, não sinta,
É seu fado, ser pássaro sem asas, é seu jeito!



by João Novaes



VOLTA


O meu corpo sem o teu se esqueceu
De todas as sutilezas do amor carnal
Que nunca nada de bom prometeu,
Foi brilho do dia inesquecível, sensual!

Hoje vivo nos escombros escuros sentidos
Sussurrando em teus ouvidos só em sonhos
Estranhos pesadelos tortos, tão medonhos
Que todos os sentimentos foram perdidos!

Não sou capaz de pedir para que volte
Pois já não há vida por onde passou
Rastro de gente é o pouco que restou!

Não quero pensar que foi tudo um grande erro
Perda, despreparo, estúpido desespero,
Volte, por favor amor, um dia volte!




SONETO DO AMOR MADURO

                                                                    Para Sandra


O amor quando maduro não mais apodrece
Deixa de ser fruta estranha, árvore em que  se pendura
Um corpo negro degolado, violência sem mesura!
É outra coisa, leve, algo de inefável textura.

O amor quando matura, não mais arrefece
Ao sabor do vento ou qualquer estranha conjectura,
É conjurado na brisa, na eletricidade do trovão,
Ateando um fogo brando na escuridão do carvão,

Sentimento que perverte a rima com a suavidade,
Liberta paranoias e ridiculariza pequenas neuroses,
Limpa os neurônios e cura estranhas escleroses!

O amor maduro implode de vez o ego e a maldade
Traz consigo o arejamento e o brilho do novo,
Apaga o spleen, repinta o blues, afasta o corvo!




* Francisco Perna Filho é Doutor em Letras e Linguística: Estudos Literário (UFG), Poeta e Contista.










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