Carlos Drummond de Andrade - Poema



OS 27 FILMES DE GRETA GARBO



27, tem certeza? Não importa.
Para mim são 24. Lembra-me bem.
Conto um por um, de 1926
a 1941, de vida contínua.
De minha vida. De The Torrent a Two-faced woman.
Entre os dois, um abismo
onde aprisionei, para meu gozo, Greta Garbo.
Ou ela me aprisionou?
Será que não houve nada disso?
Alucinação, apenas?
O tempo é imperscrutável. São tudo visões.
Greta Garbo, somente uma visão, e eu sou outra.
Neste sentido nos confundimos,
realizamos a unidade da miragem.
É assim que ela perdura
no passado irretratável e continua no presente,
esfinge andrógina que ri
e não se deixa decifrar.

Contei-os todos: 24 filmes americanos. Meus.
Não me interessam diretores.
Monta Bell, Fred Niblo, Clarence Brown,
nem penso em Edmund Goulding, para mim não existem
Victor Seastrom, Sidney Franklin, John S. Robertson.
Esqueço Jacques Feyder, esqueço Robert Z. Leonard,
de que me serve George Fitzmaurice, não careço
de Rouben Mamoulian e Richard Boleslawski,
para o inferno com George Cukor,
e com ele Lubitsch!
Dela quiseram fazer uma ninfa obediente,
autômato de impulsos programados.
Foram vencidos.
E que farei de seus galãs? Tenho pena
de meros circunstantes entulhando
a rota de alva solidão.
Não vou sequer nomeá-los. Sombras-sombras
que um dia tremularam... se apagando.

Todo o espaço é ocupado por Greta Garbo
na mínima tela dos olhos, na imensa
perspectiva do jovem de 24 anos, e de 24 filmes
a desfilarem até o espectador beirando 40 anos,
que já tem suas razões de descrer e deslembrar
e não deslembra. Sempre a seu lado Greta Garbo.
Caminhamos juntos. Não nos falamos. Não é importante.
Súbdito da Rainha Cristina, atento à voz de contralto
de Ana Christie, espião da espiã Mata Hari,
disfarço-me de groom no Grande Hotel
para conferi-la na intimidade sem véus de bailarina.

Não julgo seus adultérios burgueses
nem me revolta sua morte espatifada contra a árvore
ou sob as rodas da locomotiva.
Sou seu espelho, seu destino.
Faço-me o que ela deseja. As you desire me.
e aprofundo a lição de Pirandello
na ambigüidade do cinema. Que é um filme?

Que é a realidade do real
ou da ficção?
Que é personagem de uma história
mostrada no escuro, sempre variável,
sempre hipótese,
na caleidoscópica identidade da intérprete?

Como posso acreditar em Greta Garbo
nas peles que elegeu
sem nunca se oferecer de todo para mim,
para ninguém?
Enganou-me todo o tempo. Não era mito
como eu pedia. Escorregando entre os dedos
que tentavam fixá-la,
Marguerite Gauthier, Lillie Sterling
Susan Lenox, Rita Cavallini,
Arden Stuart,
Marie Walewska, água, água, múrmura água
deslizante,
máscaras tapando a grande máscara
para sempre invisível.
A vera Greta Garbo não fez os filmes
que lhe atribui minha saudade.
Tudo se passou em pensamento.
Mentem os livros, mentem os arquivos
da ex-poderosa Metro Goldwin Mayer.

Agora estou sozinho com a memória
de que um dia, não importa em sonho,
imaginei, maquinei, vesti, amei Greta Garbo.
E esse dia durou 15 anos.
E nada se passou além do sonho
diante do qual, em torno ao qual, silencioso,
fatalizado,
fui apenas voyeur.

Carlos Drummond de Andrade
In. Farewell, Rio de Janeiro: Record, p.82-86.

Carlos Drummond de Andrade - Poema



INVOCAÇÃO IRADA


Ficou o nome no tempero da comida,
nas fibras da carne
na saliva,
no ouro da mina ficou o nome.

Ó nome desleal que me escavas
qual se fosses punhal ou fero abutre,
que te fiz para assim permaneceres
dentro de meu ser, se fora dele
não existe nem notícia te preserva?

Foge, foge de mim para tão longe
quanto alcance a mente humana delirante.
Suplico-te que deixes
um vácuo sem esperança de lotar,
amplo, soturno espaço irremediável,
mas deixa-me, larga-me, evapora-te
de toda a vida minha e meu pensar.

Sei que não me escutas,
és indiferente a todo apelo
nem dependes de teu próprio querer.
Gás flutuante,
perversa essência eterna torturante,
vai-te embora, vai,
anel satânico de vogais e consoantes
que esta boca repete sem querer.


In. Farewell, Rio de Janeiro: Record, 1996, p.68-69.
Imagem retirada da Internet: separation


Francisco Perna Filho - Poema

 

Singeleza


Uma melodia, assim tarde,
nervosa como a chuva fina,
trilhando em teus olhos, menina,
a delicadeza do véu
a cobrir teu olhar,
tarde e madrugada,
nas cores do teu abraço,
nos traços dos teus dedos.

Uma melodia diferente,
assim tinta, assim tela,
maravilhando em singeleza,
remédio para o meu quebranto,
quando caio,
quando quedo,
quando fico,
fico,
fico,
assim nervoso,
pinto outro universo.

Uma melodia
em sons de cordas,
de jazz e afro reggae,
de cachoeira
e mata,
que me mata,
que desata os cadarços do sapato
na larga avenida do teu sorriso, menina,
que trespassa sonhos,
quereres,
viagens,
beijos,

Uma melodia,
que se desdobra em sino,
em canto de passarinho,
em número de identidade,
que se desata em tons
em ruas
em cidades.

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