Itaney Francisco Campos


TEMPOS DE ESCURIDÃO





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Itaney Francisco Campos


Por Itaney Campos

                                                                                                                                                                            Na minha juventude, dois livros me ensinaram a amar a poesia de Drummond: “A Rosa do povo”, do próprio poeta itabirano, e “Drummond, a estilística da repetição”, do crítico e poeta goiano Gilberto Mendonça Teles. A partir daí ingressei sem retorno pela seara da densa poesia drummoniana, e também por sua produção em prosa,  que predominam deliciosas crônicas.  De tanto ler o poeta, de um temário de alcance universal, decorei alguns poemas que me encantaram, dentre vários que me fascinaram sem esgotamento; e cujo fascínio se renovava a cada leitura. “A máquina do mundo, José, Amar, Mãos dadas, Os ombros suportam o mundo” são alguns dos títulos da clara poesia do poeta de Minas que eu sempre trouxe em minha mente e em meu coração.

Carlos Drummond de Andrade na Biblioteca Euclides da Cunha, c.1959. 
Foto de Marcel Gautherot / Acervo IMS


Os ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu
Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Quando se noticiou que o poeta estava fragilizado, aparentemente em decorrência da morte de sua filha Julieta, com quem tinha grande afinidade, temi que se agravasse a desolação do poeta, já na casa dos oitenta, presa fácil da depressão. Sentia, a cada notícia, mais confrangido o coração. Cheguei a planejar uma viagem ao Rio, para dizer ao poeta de minha admiração pela sua monumental poesia. Desgostava-me saber que o poeta ia se definhando, morrendo aos poucos, de melancolia, ele sempre contido, cético, avesso ao sentimentalismo transparente. Não deu tempo. E ainda que se prolongassem os dias de tristeza do poeta, eu sei que eu não iria até ele. E poderia ocorrer até que nem me recebesse, avesso que sempre foi às manifestações efusivas, de pesar ou euforia. Sempre o gauche confesso. 


Sentimento do Mundo


Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.


Em Sentimento do mundo o poeta expressava tudo o que me pulsava na alma, naquele tempo de impiedosa ditadura. Um tempo de medos e mentiras. « Um tempo em que o amor resultou inútil », na expressão desolada do poeta, testemunha de um mundo em chamas, de uma era de guerras, genocídio e desesperança. O pesar de ver o país subjugado, novamente submetido à opressão das botas militares, encontrava na poesia inconformada a nossa manifestação catártica. 

                                               
Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.



E o confronto daquele tempo, de censura e humilhação, com os dias atuais de ameaças e obscurantismo dos governantes de plantão, me aborrece e desanima. Com o que, então, frustrou-se a esperança de democracia, restaurada há tão pouco tempo, depois de agressão aos direitos e perseguição aos que pensavam e reconstruíam a liberdade? De que valeram os sacrifícios de tantos jovens? As prisões, a tortura, a censura, o exílio? A onda do autoritarismo viria a avassalar novamente a Pátria, voltaríamos à barbárie? Arde a nossa alma, indignada. Estes tempos estão clamando pela lúcida poesia de Drummond! Poemas de sol, de sal, de amargor e de esperança! E repito o vate de Minas: “Trabalhas sem alegria para um mundo caduco/ onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo..” E proclamo, ecoando o escritor de Minas: “o poeta declina de toda a responsabilidade na marcha do mundo capitalista!”





Itaney Francisco Campos, natural de Uruaçu-GO, é Mestre em Direito Agrário - UFG. Poeta, Desembargador, autor de vários livros. Pertence à Academia Goiana de Letras, ocupando a Cadeira  nº 37.

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