SILÊNCIOS



Francisco Perna Filho
 











Silenciar como pedras,
tornar imóvel o distante,
pura embarcação.
a curva e a canção caminham e me enfunam. 
Morrer nas pequenas coisas: 
no papel amassado da não inspiração, 
na toalha embotada de Toddy e pão, 
no candeeiro sem lume e sem esperança.
O gume mata o sono e o sonho.
Tudo se desbota.

 

 

Imagem: Velha fritando (cozinhando) ovos (1618), Velásquez


ELEGIA AO DESESPERO


Francisco Perna Filho




 Para Alex Pizzio da Silva

Os homens, sozinhos, caminham no rubro da tarde. Alheios, são sós e ao mesmo tempo outros em seus pensamentos. Tão sós e tão outros, como se fossem estacas, plantados na insignificância da madeira bruta que queda ao sol do meio dia. Caminham parados, os homens. E como eles estão os navios atracados, que também partem. Como os homens, em férrea segunda feira, o tempo também para, cuspindo a monotonia de um dia quente, que também para. Férreas são suas vísceras, habituados que estão ao desalento da máquina que em si transportam. Férreos são os seus passos; os seus cantos. Férrea é a desolação de serem humanos, de serem sozinhos, de serem navios, de serem estacas.

Os homens, os seus rastros, caminham ao som chuviscado e tenso do sino da igreja. A pé, de bicicleta, nada importa, celebram a mediocridade de serem humanos, de serem inteligentes e cultos. Tão donos de si, patinam nas largas avenidas de uma vida inventada.

Os homens, seus medos, suas taras, seus vômitos, trafegam na menina dos olhos da cidade parada. Arrotam uísque e o lixo de uma arte inventada. Os homens, sua fúria, seus desejos, proliferam como ratos ao léu, não têm escrúpulos, não têm vontade, não têm coração. Estúpidos, atiram seus filhos do alto de suas vaidades e desatinos, para comporem a ópera de suas insignificâncias.

 Os homens célebres, com seus títulos e empáfia, celebram o nada do nada, pois vazios estão de si mesmos. E eles, os mesmos, os homens, perderam o tino e estacaram incólumes sob os seus diplomas de bacharéis. Os homens, aqueles, que marcham em disparada, mas estão sós, sozinhos, parados, quedados feito estacas, como os velhos navios, já não enxergam mais nada, cegaram-se na própria luminosidade dos seus brilhos e estão sós, sozinhos, feito homens, como estacas ao meio dia.  

 

Imagem: M. Cavalcanti: Grito - acrílico sobre papel 

NAVEGANTE



Francisco Perna Filho












                     I


Meu coração é um navio azul, 
alimentado de velhas caixas e revistas. 
Nas pulsações mais fortes, 
mergulha nos tomates podres das feiras 
e velhos mercados. 
Compraz-se nas garrafas abandonadas 
de molhos e cervejas. 
O mar que o transporta tem cor de chumbo. 
Possui salas radiantes 
que a ele não são dadas conhecer. 
Meu coração navega nesse mar de coisas. 



                     II


Navio azul 
trazendo a dor de longínquas cidades. 
olhar de descobrimentos. 
Plúmbeo mar! 
conduz esta minha embarcação 
pelos portos tremeluzentes de orgasmos e discórdias. 
Pelos asilos, presídios e manicômios. 
Grande mar! 
daí a esta embarcação 
um pouco da tua força, 
um pouco da tua alma 
para um aprendizado de maresia 


ECOS



Francisco Perna Filho

















Habitando os cafés 
e refletindo as manhãs 
com restos da noite, 
ambientou-se ao não-ser, 
traçou a inexistência, 
ficou entre parênteses. 
Silente e absorto, 
refez os becos 
de um dia oco e pesado. 
Inquieto, 
alimentou-se de acasos: 
sorveu as praças, 
o cinza das chaminés 
e amargurou-se com o lamento 
pulverizado dos meninos 
da grande cidade. 
Chorou a salobra 
segunda-feira, 
feita de vagidos 
e tormentos. 
Desse modo, 
por muito tempo, 
passou a repetir 
as noites, 
nos olhos avulsos 
do esquálido cão, 
que cismara em perseguir. 
Um dia, 
ao tentar recompor sua história, 
morreu de esquecimento. 


MONTANHA


Francisco Perna Filho

 

 




A palavra pesada

persegue a pedra,

revela o austero pulsar do silêncio

e, com ele, inaugura um olhar de montanha.

Do alto, a alma encanta-se

e o olhar precipita-se em direção ao luzir da cidade.

Do baixo, o corpo, enfermo, claudica

e os braços perdem-se na impotência primordial

de uma escalada.

A montanha é sentida

e nela diviso o inferno e o paraíso

da Babel recriada.

Estando no centro,

a minha alma assesta a caverna

na recomposição do paraíso Dantesco.

Dessa forma,

a montanha enternece o poeta

e a palavra mais leve

revela a montanha/palavra

Refletida no olhar.


Foto by Francisco Perna Filho - Montanha Lageado - Tocantins

DESCONFORTO



Francisco Perna Filho








 

 
 


Vazio de cidade, 
há uma desordem em mim. 
Contemplador de desvãos, 
vou esculpindo infrutíferas buscas. 
O que há de encontro na minh’alma 
é só o apóstrofo. 
Busco desvencilhar-me da ferrugem da estrada, 
do ferrolho das minhas ausências, 
quando substantivo a vontade. 
Há em mim doença de lagarta, 
predisposição para casulo, 
pretensão para eterno. 
Voar é o meu destino. 
Rastejante, carrego primórdios, 
contemplo a estrada. 



II 


Toda estrada traz o peso dos passos, 
a solidão da espera, 
a aflição da permanência. 
Toda estrada atende determinações. 
Carrega um amargor de épocas, 
apêndice de partidas. 
Toda estrada transporta um ser aprisionado, 
voz de encontro, 
razão para perder-se. 
Intensifico minha pretensão de perpetuação. 
Rastejante, apresento-me à parede. 
há um desejar de minha parte: 
de gestar esta metamorfose. 
Há uma rejeição paredal. 
Apresento-me ao fio elétrico, 
há uma mútua atração, 
uma revelação primal: 
a técnica natural se afeiçoa da modernidade 
para parir um vôo de destinação. 
A vida se faz múltipla, 
apesar da indiferença humana. 
 
 
 
 

POR UM SONO


Francisco Perna Filho

 



 





 

O pássaro pousa no sonho

um cantar de prata,

e a densa plumagem que o abriga

é de um verde inacabado,

de um amarelo rubro,

de presumida ferida.

O homem que sonha o pássaro,

aos olhos do pássaro,

é um gigante e,

por um instante,

parece tocá-lo com um grito.

O pássaro sonhado carrega

nas asas muitas pedras,

perseguições

e desencantos,

por estar preso ao sonho,

a um visgo tão ilusório quanto a sua existência.

O homem ainda é um menino

e acostumou-se a sonhar pássaros

para aprisioná-los nos seus poemas.


Fonte da imagem: http://ipt.olhares.com/data/big/262/2625793.jpg


ESTADO

Francisco Perna Filho
 











Embora presa,
a água borbulha solta na chaleira
enfervecente.
É de fora
a sua natureza líquida.
Não há fôrma que a aprisione,
não há temperatura que a molde.

Embora verso,
embora prosa,
A poesia sabe-se leve,
sabe-se solta.
Amorfa,
não se prende ao vocábulo.


Foto by Francisco Perna Filho - todos os direitos reservados.

A CIDADE - ÚLTIMA PARTE


 Francisco Perna Filho








              



                   III



A cidade enforquilhada,

enrodilhada,

trapaceada,

submetida,

subjugada,

argumenta as suas origens,

os seus papéis,

os seus bordéis,

bordados,

boquifendidos,

inesitantes,

inescusáveis,

sempre prontos,

sempre postos,

via livre,

libertação.

 

A cidade

 religiosamente tensa

atesta as suas crenças,

o demencial momento

do estapafúrdico comércio da fé,

em sinos,

em símbolos,

em siglas,

computa

o vil metal.

  

A cidade morre

nos seus ciúmes,

na represália do amor passante

do que não lhe pertence,

do que não lhe é de direito.

A cidade assiste,

assustada,

o féretro que passa,

o Solitário silêncio de quem vai,

a paz desbotada de quem fica.

A cidade sempre chora,

sempre só.

As primeira chuvas chegam,

vesga e borrada a cidade é só ternura

computando os seus dias de seca,

suas ressacas homéricas,

seu delitos,

Seus dilúvios.

 

A cidade

às vezes solitária

chora, serenamente,

os seus domingos,

compasso de espera,

revés de toda sorte,

como manchete estampada

nos principais diários

de uma Segunda feira

qualquer,

como passatempo para historiadores

e poetas.

  

A cidade líquida,

corrente,

acostumada à sirenes

e infidelidades,

reprisa os seus pontos de ônibus,

seus terminais urbanos,

a alegoria dos seus governantes

                                              em traços de Art déco.


Fonte da imagem: http://img98.imageshack.us/img98/1619/102197664cc72ed566bbux2.jpg

A CIDADE - II


                          Francisco Perna Filho










                                                    II

  

 

A cidade orgânica,

episódica,

gradativamente vai inchando-se,

enchendo-se,

sinalizando o seu cansaço,

as suas fendas;

a lenta morte nos manicômios,

a morte lenta

serena morte.

A cidade circundada,

insulada,

Apodrecida,

insanamente esquecida.

Acidada,

circuncidada,

desassistida.

Acidez urbana,

de tão linguaruda não me comove mais.

  

A cidade chora

nas primeira chuvas,

e em canto esparso ela é diluída,

no semblante velho do jovem que empurra

as ilusões perdidas

no carrinho de lixo.

Alheiamente,

(alheamento)

o jovem tomba

na tinta da recomposição,

a tinta atina

numa crescente vontade

de refazer-se,

de ser cidade.

  

A cidade também se esconde,

é grito distante.

Somente ela sabe de si:

seus becos,

seus muros,

suas penumbras

urdiduras de  abandono.

Suas ruas são tímidas,

são tiras,

exercícios de solidão,

estirões de memória.

  

A cidade silenciosa,

Perturbada,

Entristecida,

Amarelece em rugas

Em rusgas

e, contaminada, explode em céu,

em césio,

em corrupção.

  

A cidade é lenta,

íngreme,

pesada.

p-a-u-s-a-d-a-m-e-n-t-e  tomba.

p-a-u-s-a-d-a-m-e-n-t-e  tomba:

New York,

Bagdá,

Jerusalém,

Canudos.

A cidade desértica,

Chorada,

Maldita,

tangida em sangue

tomba/retumba

tomba...

A cidade intelectualizada,

politizada,

conspirando para o progresso,

regresso da polis,

nos caminhos da metrópole.

 

A cidade que renasce

arremessada aos ventos,

tensos ventos de agosto,

conduzindo homens,

velhos marujos,

sujos soldados

(corrompidos pelo olhar das putas no cais)

para além dos oceanos:

Roma,

Belfast,

Tóquio,

Lisboa,

Marrakech,

Berlim.

Todas elas

na parede,

na memória,

na desordem da sala-de-estar

 

Foto: Goiânia vista de cima - by Francisco Perna Filho.

A CIDADE I
















A partir desta quinta, 21, postarei uma série de poemas que referenciam a cidade. Estes poemas fazem parte do meu segundo livro As Mobílias da Tarde, editado pela Perna&Leite Editores, 2006. 



                     


                              I

 

 

A cidade é vista sob a neblina difusa.

Há um desejo de vê-la cada vez mais de perto.

ela  é vária e diluída ensina

um olhar de milhas

que não se perde em mim,

A cidade é dura,

é leve

é ilha.

Somente em mim ela se completa.

Acordada, sente o olhar humano,

e dormindo, afaga os sonhos mais diversos.

Há um querer de ruas,

de praças,

de espaços e vazios.

 

A cidade é táctil, 

no sonho de cada um.

Emblemática,

Pálida,

Palaciana.

Refletida nos olhos alheios

da multidão perdida,

alonga- se pelos fios das telefônicas

dos teleféricos,

dos meios– fios.


A cidade esculpida,

pronta,

bela,

artística,

celebra o ócio,

a saciedade,

todas as cores,

todos os mármores,

todos os vinhos...

postum vinu...

 

a cidade bela,

com suas curvas,

seus cabelos,

suas praças,

elegantemente, caminha;

socialmente, apresenta-se

trazendo nos lábios

a expressão do amor urbano.

   

A cidade no olhar encanta,

Com seus olhos negros,

Fotografa o ser que passa

e nela vive.

Ela é pura graça,

no salto alto,

semblante atalho para o coração.

Noturna,

Revela-se em cores, odores e desafetos.

Abrindo a blusa,

receia não ser comida,

degustada,

matar a fome de quem somente paga,

somente passa.


A cidade em chamas

desconstruindo-se

subindo e descendo

longas ladeiras,

explode em verdes,

em vias:

prazerosamente,

permanentemente

orgástica.

Ainda perplexa,

recebe o homem,

com suas máquinas,

com suas mágoas,

Com sua crenças

e  caprichos.

E ele

nela se perde,

lamentando não conhecê-la


Imagem: óleo sobre tela - by Francisco Perna Filho - 2008 

DE HOMENS E BARCOS


Francisco Perna Filho 

 







Os homens, naquele bar,
falaram de rios e mulheres
e riram dos seus feitos,
de suas histórias e amores,
sonharam lonjuras e amavios
e navegaram em olhos e dentes tão perfeitos
que chegaram a entender o vazio dos homens e das garrafas.
Sorveram o momento
e se alimentaram de boas palavras.
Não sabiam muito a respeito do amor,
por isso - sobreviveram. 


Fonte da imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjgQT6DGNgU3gRpz-hFFibGyuEZls1OZ3VfbhgOtETR8sRW3CZ7fS3gQlw3yMYW7pS4h8EpapyFeSXb0O1tlXr_mb428z067shQpg0fDl8DbQk9dBhW4mlKAwuaOeyBgabPyPIEqfiP9RFL/s1600-h/Mulher+e+cais.jpg

Francisco Perna Filho - Ensaio Literário












JOÃO DE DEUS: UMA HESITAÇÃO DOS DIABOS  
As manifestações do fantástico no conto “o albino”, de Heleno Godoy


Introdução

A Narrativa Fantástica é uma modalidade narrativa em que o caráter do extraordinário vem à tona; o incrível é preponderante. Quando falamos em fantástico, logo de imediato nos vem à mente o extraordinário, o que foge à compreensão, algo que perpassa a qualquer explicação que se queira dar. Muitos estudiosos já buscaram definir o que vem a ser o fantástico, elaboraram teorias, mas, muitas vezes, essas teorias não foram suficientes para abarcar com precisão o assunto.

A literatura reflete quase sempre os anseios de seu criador em criar mundos, ambientes, personagens mágicos ou não, uma vez que o compromisso que tem é apenas com o ficcional. Para o artista tudo é possível. Lembremos Aristóteles, em sua Poética (1990, Canto IX, p.28), para distinguir a literatura de outros escritos, traça a seguinte diferença entre o poeta e o historiador:

        (...) A obra do poeta não consiste      em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade. (...) Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam acontecer.Sendo assim, a narrativa fantástica afasta-se desse preceito de verossimilhança clássica, já que algumas categorias do mundo real foram suprimidas, como diz Filipe Furtado no seu livro A Construção do Fantástico na Narrativa (1980,p.44):


(...) O fantástico propõe ao destinatário da enunciação um universo em que algumas categorias do real foram abolidas ou alteradas, passando a funcionar de uma forma insólita, aberrante, inimaginável.


Percebe-se que o fantástico afasta-se da lógica racional, do con­ceito puro de padrão de realidade e desemboca em algo que poderia se chamar de incrível, extraordinário. E é embasado nesses estudos, nos vá­rios pontos de vista dos mais diversi­ficados estudiosos dessa modalidade literária, que, nesse trabalho, levan­tam-se os elementos ficcionais do con­to "O Albino", de Heleno Godoy.

João de Deus: uma hesitação dos diabos

Ao analisar-se o conto "O Albi­no", de Helena Godoy, inicialmente atenta-se para o nome deste, "O Albi­no", aquele que sofre de albinismo, au­sência hereditária, total ou parcial do pigmento tanto da pele como dos pê­los e da íris. Um nome que irá refletir, como se verá no decorrer da análise, o traço diferenciador da personagem principal, o Que evidencia as ausên­cias, as faltas e, por conseguinte, um deslocamento diante da realidade que o oprime.
É interessante observar, já no primeiro parágrafo, a caracterização do ambiente onde os acontecimentos se darão:

(...) O pai iria se lembrar, de­pois, que a lua tinha sido cheia, na noite de seu nascimento. As lembranças da mãe teriam como ponto de referências os latidos insistentes dos cães, que duraram horas. Ele duvi­dava, ela não queria pensar a respeito (p. 123).


As referências feitas à lua cheia e ao latido dos cães já remetem o lei­tor a um clima insólito, reforçado pela figura de um narrador privilegiado que, de uma posição bastante cômoda (pa­rece instalar-se na consciência das personagens - no caso os pais), nar­ra os acontecimentos a partir da lem­brança destes e revela o que eles sen­tem, por meio do discurso indireto li­vre, como se pode comprovar:

(...) Se por quatro vezes ela havia ficado grávida e tivera seus filhos em partos normais, qual o motivo daquela diferen­ça? (p. 123)

O narrador, assumindo essas características, revela o estado men­tal das personagens e o distanciamento dos acontecimentos no tempo, o que, para estabelecer o fantástico, é um recurso de muito valor, já que tan­to mais distantes forem os acontecimentos, mais probabilidades eles te­rão de falsear a realidade, enfatizan­do o caráter ambíguo na narrativa. É preciso entender que esse distancia­mento pode se dar tanto no tempo (passado ou futuro) como em lugares longínquos: países, cidades etc.


Ausências e Ambigüidades

Focalizada a história em um passado longínquo, caracterizado o ambiente onde tudo se passa, feita uma reflexão sobre o nome do conto godoyano, buscar-se-á os aspectos do fantástico por intermédio da persona­gem João de Deus, a sua importância para a construção desse gênero como elo entre leitor e narrativa, levando-se em conta o que diz Filipe Furtado (1980, p.85):

(...) uma das formas mais se­guras de conduzir o destinatá­rio da enunciação à incerteza quanto ao teor da ocorrência extranatural consiste em susci­tar nele a identificação com a personagem que melhor reflita a percepção ambígua dessa ocorrência e a conseqüente perplexidade perante a coexis­tência das duas fenomenologias contraditórias que aparente­mente a confrontam. (...) a fi­nalidade básica das caracterís­ticas atribuídas à personagem é sempre facilitar essa adesão a que se pretende levar o leitor real e que, embora visada por qualquer texto narrativo, desem­penha um papel de particular relevo na ficção fantástica.

Refletindo as colocações de Fi­lipe Furtado, é interessante atentar-se ao modo pelo qual a narrativa fantás­tica vai se instalando a partir da atua­ção da personagem João de Deus da sua inserção na narrativa, o que, de certa forma, a modificará como um to­do, já que João de Deus é visto como alguém estranho ao grupo, diferente, e que, por esse motivo, de imediato chama a atenção para si. Imprime-se, partindo do seu nascimento, um certo roteiro para que o leitor mergulhe no emaranhado de um universo ambí­guo, dividido entre o real e o sobre­natural. Observe-se a descrição do seu nascimento:

(...) Ela demorou a ter aquele menino, o quinto em cinco anos. (...) O dia já estava lon­ge e o trabalho parado, quan­do a mulher deu um gemido forte e ele ouviu a voz da par­teira "Virgem Maria!" sair num susto e grito (p. 124).

Vê-se aqui a referência temporal feita pelo narrador, a marcação desse tempo: a demora, a preparação para o estabelecimento de uma certa ex­pectativa em relação ao porvir; eis que, de forma surpreendente, a inserção de algo incomum, num ambiente até en­tão tranqüilo, modifica todo o curso da narrativa. Instaura-se na mente do lei­tor - em decorrência da perplexidade que o nascimento da criança causa ­um estado de apreensão ante os acon­tecimentos posteriores. Tal fato é refor­çado no diálogo entre o pai do garoto e a parteira, logo após o seu nascimento:
(...) - Um menino doente, mas parece que vai ficar bem.
- Doente?
(...) - Até os cabelos. Todo branquinho. As mãos, os pés, as pernas, tudo (p. 124).

De imediato, cria-se um estado de hesitação pelo fato de o menino ser diferente: ausência do pigmento tanto da pele como dos pêlos. Instala-se, na cabeça das. pessoas, a dúvida sobre o estado de normalidade do garoto: é normal ou não? O que causará muita controvérsia em relação ao nome que será dado à criança:

(...) João de Deus, sugeriu, era um nome mais apropriado e conforme, e eles ainda esta­riam dedicando ao Senhor aquele menino diferente. (...) O menino era desvalido e se­ria desamparado se não lhe dessem muito carinho, se não tivessem para com ele paciên­cia e cuidado (p. 125).

O nome do garoto é represen­tativo para o estabelecimento do fan­tástico em "O Albino": João de Deus, um eufemismo utilizado pelo autor pa­ra a manutenção da ambigüidade, já que o nome é um contraponto ao que irá ser evidenciado com relação a uma série de acontecimentos insólitos, os quais são atribuídos ao garoto. Perce­be-se isso no diálogo que se estabele­ce entre o pai e a mãe:

(...) - Você viu como chorou quando o padre fez o si­nal da cruz?
                                                                                    - Gritou, chorar não chorou.
(...) - E quando jogou a água benta?
        - Besteira, menino grita em batizado mesmo (p. 125).


Observando a conversa dos pais, nota-se a manutenção da ambi­güidade; fica claro, nas insinuações da mãe, que o menino tem algo de sobre­natural. Além de sua aparência estra­nha, ele possui uma forte aversão a tudo o que é sagrado, o que de imedi­ato é refutado pelo pai - refutação ne­cessária para o restabelecimento da tranqüilidade -, garantindo o estado de hesitação por parte do leitor: é ou não é diferente? O garoto tem ou não tem aversão ao sagrado?
Mais à frente essa tranqüilida­de esvai-se e dá lugar a uma certa ten­são narrativa. A cidade vê-se tomada por uma série de acontecimentos insó­litos - pessoas sendo atacadas, mor­didas; animais aparecendo mortos sem nenhuma gota de sangue – ao passo que João de Deus vai ficando cada vez mais distante, indiferente, tendo por companhia somente os cães. Fatos que para a mãe intensifi­carão a sua desconfiança:

(...) João de Deus havia che­gado tarde naquela tarde, mui­to depois dos irmãos. Pensou que ele havia perdido o ônibus. Viu sua roupa suja de man­chas escuras, que passou a achar fossem de sangue. Já ti­nham aparecido nas roupas dele e ela não acreditava em acasos. Podiam ser provenien­tes de ferimentos, a pele dele era fraca, feria-se facilmente. Depois lembrou-se de o mari­do dizer, tempos antes, que as galinhas perdiam seus pinti­nhos, patinhos apareciam com pescoço estraçalhado, peque­nos animais surgiam mortos no quintal ou eram encontra­dos agonizantes. Sangue por perto, no entanto, nenhum (p. 131 ).

Vê-se aqui as reflexões da mãe sobre as ausências do filho, a série de acontecimentos que se avolumam a cada dia. A cidade parece não ter nenhuma dúvida com relação às res­ponsabilidades dos fatos, o que do ponto de vista da narrativa parece ca­minhar para um final onde tudo seja esclarecido, fato que vem ameaçar a manutenção do fantástico. Mas isso não ocorre, pois, mais uma vez, o dis­curso muda de tom com a interferên­cia do pai. Observe-se o diálogo en­tre o pai do menino e o delegado:

(...) - Estão dizendo que fo­ram os cachorros do meu filho?
- Pior, estão dizendo que foi seu filho.
- Isso não tem cabimen­to, delegado, meu filho não é doido.
- Quem sabe se não é? Quem sabe ele pensa que é mais do que um
doido? Quem sabe lá o que ele pensa? Será
que ele pensa que é um vampiro?
- Uma estupidez, isso não existe.
Vamos ver isso tam­bém. Não existe, mas
ele pode ser um.
- Não existe, mas pode ser. Como? E podem provar? O senhor tem provas? (p. 138)


Nessa perspectiva de dúvidas, de relatos inconsistentes, de uma não resolução para os conflitos é que a narrativa vai firmando-se como fantás­tica, o que é corroborado por Louis Vax (apud Furtado, 1980, p. 64):

(...) o fantástico vive sobretu­do do seu adormecimento, da sua inanição perante o impen­sável, da sua impotência para, frente à subversão do real, re­correr a uma explicação plau­sível que a destrua.

Mais à frente tem-se uma ten­tativa de explicação para o que está ocorrendo, a partir das palavras do novo padre da cidade:


(...) O problema, para ele, não era de possessão demoníaca, como queriam algumas velhas piedosas, lideradas pela espo­sa do juiz, mas de desinforma­ção. Nada daquilo era verdade, vampiros não existiam,afirma-lhe o padre, o diretor do colégio também, o promotor e o próprio Juiz (p. 139).

    Todo o alvoroço provocado pelas pessoas da cidade e a explicação do padre - que tenta dissuadir a população da existência de lobisomem, vampiro etc - são imprescindíveis para o res­tabelecimento da ordem na cidade e, ao mesmo tempo, servem para con­firmar o estado de dúvidas que se ins­taura na cabeça do destinatário.
    À medida que as acusações avolumam-se contra João de Deus, sua mãe, entremeada de dúvidas, as­socia-as a alguns fatos ocorridos, e a permanência do fantástico vai confirmando-se na narrativa.

(...) João de Deus não podia depender deles. Ela não se conformava que seu filho fos­se o que dizem, o que ele pare­cia ser, o que até ela está sen­do levada a achar que ele fos­se (p. 142).

A partir daí, a mãe começa a buscar uma forma de livrar o filho das perseguições, da não aceitação dele por parte das pessoas:

(...) João de Deus existia e fa­lavam sobre ele. Vinha daí, por isso, o desejo de eliminá-Io, por causa de sua diferença, que in­comodava? (...) Não acreditava em tudo que o acusavam de ter feito. Muita coisa devia ter sido praticada por outros, pensou,mas a culpa recaía sobre ele por conveniência. Ele era incon­veniente, quando estava por perto (p. 143).

A percepção que a mãe tem sobre o problema que o filho causava, quando estava por perto, e a atitude tomada para livrá-Io desses constran­gimentos rompem com as possibilida­des de uma explicação para os fatos insólitos, pois, apesar de vivenciar um estado de dúvidas, a mãe não hesita em matá-lo:

(...) Pegou um martelo, ao retomar para dentro de casa, de cima de uma prateleira, no quarto em que o marido guar­dava suas ferramentas, e ca­minhou vagarosamente para o do filho. (...) Entendeu que não seria necessária tanta força, o corpo do filho era tão frágil, podia espetar-lhe o pedaço de madeira quase como se espe­tasse uma agulha num pano branco que bordasse. Ficou assim uns poucos minutos, os dois braços levantados, as duas mãos segurando o toco de madeira sobre o peito de João de Deus. (...) Ninguém vai fazer-lhe mal agora, vai? (p.144)



Dessa forma Heleno Godoy contempla o leitor com a deflagração de um final interes­sante. Com a morte do filho pela mãe, esta vê-se aliviada de toda pressão recebida, o que evita uma tragédia maior: a morte do filho pelo povo, o que seria trágico tanto do ponto de vis­ta da história quanto da manutenção da ambigüidade, já que se isso ocor­resse poderia haver uma justificativa para o fato e uma quebra da hesitação por meio de um esclarecimento para o fenômeno. Da forma como aconte­ceu, a ambigüidade foi mantida e o fan­tástico efetivou-se nesse conto.

Conclusão

Heleno Godoy joga com as inú­meras possibilidades narrativas, den­tre as quais privilegia uma narrativa em terceira pessoa, mas, sempre que necessário, o narrador instala-se na mente das personagens e reflete a condição de cada uma, como se fos­sem presentificadas num determina­do momento e, de forma plena, explici­tassem os seus sentimentos, desejos, questionamentos existenciais, de maneira a aproximar cada vez mais o lei­tor dos acontecimentos ficcionais, o qual, na credulidade de uma realidade falseada, faz-se um aliado na manutenção do fantástico na narrativa.
Observando-se a estrutura nar­rativa, reflete-se a essencialidade da figura da mãe para a manutenção da ambigüidade, personagem muito bem construída, sobretudo se levar-se em conta que a figura materna é a que gera o filho, passa por todas as sensa­ções de uma gravidez, enfrenta as di­ficuldades do parto e, por conseguin­te, está autorizada a intuir sobre a rea­lidade do filho; aquela que tem os pés no chão. Por outro lado tem-se a figu­ra do pai: ser preocupado com o tra­balho, mas totalmente distante dos fi­lhos, pois, para ele, os meninos nada tinham de parecido com ele ou com a mãe, o que evidencia uma visão de superfície com relação a João de Deus. O pai é caracterizado como fi­gura primordial para o equilíbrio do discurso narrativo e a manutenção da ambigüidade. Em suma, a mãe é aque­la que vê, o pai o que não vê ou não quer ver.
    Traçar o perfil dos pais de João de Deus faz-se importante para uma, melhor compreensão da figura deste: uma criança aparentemente frágil, di­ferente e, por ser assim, excluída do grupo social, só relaciona-se bem com os cães, talvez por parecer-se com eles, características que, aos olhos do leitor, causarão mais simpatia e pena que asco ou terror, referência interes­santíssima para afastar cada vez mais as suspeitas contra João de Deus em relação à série de acontecimentos estranhos na cidade.
Faz-se mister atentar ainda para algo muito interessante: dentre todos os personagens da história, o único que possui um nome é João de Deus. Mas, em contra partida, somen­te ele não tem voz, tornando-se, as­sim, extremamente vulnerável a qual­quer acusação e aborrecimento.
Heleno Godoy avança na cons­trução das suas personagens, reflete a condição de cada uma no seu modo de ser e viver. Com isso eleva a condi­ção delas à importância dos aconteci­mentos na narrativa fantástica, o que, de  certa forma, vai contra o que diz Filipe Furtado (1980, p.86):

(...) O gênero privilegia o acon­tecimento, sobretudo as mani­festações extranaturais, em desfavor das personagens. Daí que, em geral, estes só atinjam uma certa relevância na estrutura da narrativa se servirem o objetivo de comu­nicar a ambigüidade ao recep­tor real do enunciado. Com efeito, as personagens pouco ou nada interessam ao discur­so fantástico enquanto figuras com vida própria, servindo-lhe sobretudo de veículos da per­plexidade perante o mundo alucinante em que se movem.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



ARISTÓTELES. A Arte Poética. In: A Poética Clássica. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo:Cultrix, 1990.

FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1960.
GODOY, Heleno. O Albino. In: O Amante de Londres. Goiânia: Kelps, 1996.
RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico.   São Paulo: Ática, 1988.

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