Luiz de Miranda - Profissão de fé






Luiz de Miranda














Profissão de fé


Não morrem os poetas
que a poesia eterniza
e na sua luz
fundamos a esperança
áspera rosa áspera espera
linha de água de um rio
correndo a infância
com sua voz de seda

Não morrem
os que nesta mesa escrevem
que tudo é material de poesia
no vôo livre das palavras
lúcida luz da alma
lúcida versão da vida
à sombra do próprio corpo
na fresca do verão
às frestas que levam ao coração

Aqui nos quedamos solos
la vida es una mujer hermosa
que nos manda beijos
no avental da noite
manda flores
na madrugada de chuva e frio
espremendo ao céu sem vento
as pandorgas do desejo
construídas nos quartos silenciosos do corpo

Brilha, vida, envidraçada
nos copos deste bar
levantando a fumaça
sob o metal do esquecimento
sob a melancolia
e o denso vermelho de seu mar interior

Só sairemos deste bar
no azul da manhã
na pétala da aurora
onde renascemos
e fundamos a esperança
esse navio de sons
a navegar pelo mundo


Só sairemos deste bar
quando o amor acabe
não o amor que vive em nós
flor incendiada
mas este respirar na noite
o silêncio das pedras
a esfarelar os sentimentos

Envidraçada pela cerveja
no Chalé da Praça Quinze
o amor é uma nuvem sem ar
é como o sono gris dos tristes
e a dor por mais anônima
espelha os retratos animais no mar

Domar o mar sob as intempéries
sob o caos, o grito dos mutilados
os parentescos de luz da angústia
subjugando-nos ao dano dos extraviados

o tempo avança com o fogo de seus ossos
e entristecemos mais na casimira da tarde
somos o gosto salobro da água de um poço

mas reinventamos nosso próprio alimento
fantasmas sobreviventes desesperados
escrevemos a linha de luz no vento

e o facho de uma flor
acende
a chuva das horas
que uma pétala sempre
acende
até nos subúrbios de sua cor
menina
e sublima sublima
o louco clamor do corpo
que escreve por nós
sob o calor da vida

quero reaver as estrelas
que me cabem no céu
quero reaver o horizonte
sem horizonte da campanha
quero o cinza da agonia
os detritos da tristeza
para refazê-los em um novo verso
triste e agônico
pela vida afora
e passo a passo compor
o tráfego dos dias
o ácido luminoso das semanas
a pulseira de sóis dos anos
e escrever
e escrever
e escrever
todos os minutos da vida
os barulhos azuis da alma

Ah, não morrerão jamais
as palavras escritas
elas dão a infinita sensação
de que a vida existe
e transforma até o último
vocábulo
no poema
animal solitário
que a sua voz apaixona
e aprisiona a tudo
até o finzinho da madrugada
onde vem luzindo a claridade da morte.




In.Poesia Reunida.Luiz de Miranda. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1992, p.145-148.
Imagem: Oedipus Rex, 1922- Max Ernst - Pintor Alemão/Francês (Dada/Surrealismo) 1891-1976



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