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E sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... O que é sagrado para ele, não é senão a ilusão, mas o que é profano é a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que para ele o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado. (Feuerbach, prefácio à segunda edição de A essência do cristianismo.)
Real e virtual: a espetacularização do humano
Por Francisco Perna Filho
INTRODUÇÃO
A cultura fragmentada, possibilitada pela variedade de caminhos da internet, embora contenha ética e valor próprios de grupos e nichos diversos coloca em xeque um dos elementos fundamentais para a autonomia dos indivíduos: a responsabilização pelas próprias escolhas.
Se verdadeira ou não esta constatação, o certo é que ela nos inquieta e nos conduz a uma discussão mais aprofundada sobre o assunto e a alguns questionamentos: de que forma isso vem afetando o homem deste século? Como as tecnologias midiáticas estão influenciando na configuração desse novo homem? Que respostas podemos esperar desses novos tempos em que todos são produtores e consumidores ao mesmo tempo? Quais recursos serão utilizados para atrair esse novo consumidor/leitor?
Tais indagações nos surgem como norteadoras para as reflexões apresentadas neste estudo, cujo objetivo é discutir o espaço virtual como palco de audiência, do espetáculo, em que cada um tenta disputar o seu quinhão de importância e fama, utilizando-se de expedientes e recursos diversos, muitas vezes sem o menor compromisso com a preservação da ética,
Para esta discussão, tomaremos como base alguns teóricos (Adorno, 1995; Anderson, 2004; Debord, 2003; Dines,2009; Hall, 2005; Negroponte, 2003; Palácios, 2008) e analisaremos algumas passagens do filme Sem Vestígios (Untraceable - direção de Gregory Hoblit – EUA, 2008), que traz à tona uma discussão se não nova, muito interessante: a guerra pela audiência a qualquer preço.
Apesar de se tratar de um filme, portanto ficção, a análise da obra possibilita reflexões sobre as transformações tecnológicas e a construção de novas formas de relação e interação social. O filme apresenta uma trama em que uma divisão do FBI, dedicada à investigação e condenação de criminosos que atuam através da Internet, depara-se com um assassino perito em Internet que exibe seus assassinatos em seu website, bem como a agonia das suas vítimas, cujo destino fica nas mãos dos internautas: quanto mais visitas o site recebe, mais rápido as vítimas morrem. E por incrível que pareça, as vítimas morrem muito rápido.
A trama apresentada no filme, juntamente com algumas reflexões teóricas, nos traz questionamentos e nos incita a refletir sobre as relações que perpassam o ambiente virtual e sobre a interatividade que é construída entre os sujeitos leitores/navegantes, ativos e passivos de um processo ou história construída em um ambiente virtual/real a partir da globalização e do advento da Rede Mundial de Computadores, o que provocou uma revolução só comparada à Revolução Industrial, no século XVIII.
MUNDO, MUNDO, VASTO MUNDO*
Mediado por interfaces várias, o homem se apropria da tecnologia e referenda o seu desejo de potência. O que antes era desconhecido, hermético, passa a ser natural, quando, conectado, brinca de deus ao ensaiar, com cores, formas e sons, o grande texto “mundo”. Com um simples toque, é capaz de viajar para as mais longínquas paragens e interagir – na ilusão de sua virtualidade – com outros mundos tão “reais” quanto o seu.
Cada mundo comporta suas peculiaridades, é preciso desvendar-lhe os códigos, as várias linguagens com as quais opera, para sentir-se inserto e dele apropriar-se. Qualquer descuido pode ser fatal, é preciso atenção total para não se deixar contaminar pelas pestes que rondam o ciberespaço, os monstros escondidos nos becos digitais, prontos para atacar o incauto navegador aventureiro.
Assim como o espaço real, o espaço digital também tem seus limites, qualquer desatenção pode custar caro ao transgressor, fazê-lo refém da própria astúcia, mas aí a pena deixa de ser virtual e passa a ser real. Cada um deve saber aonde pisar, para não ser tragado pelos movediços links, ali postos, e embarcar num mar textual de mentiras e ciberilusão.
Para qualquer viagem é preciso precaução; as provisões devem ser suficientes para o embate da jornada; é preciso ter pleno conhecimento das vias a serem percorridas, para isso o viajante deve munir-se de bússola e mapas, é preciso não confundir as sinalizações, pois como disse o poeta Fernando Pessoa, citando Pompeu, general romano: “Navegar é preciso, viver não é preciso”, mas essa precisão pode ser relativa, caso o navegante desconheça os códigos.
Depois de assegurar-se das dificuldades da viagem, de conhecer o percurso a ser seguido, e dominando aquilo que é básico a qualquer internauta/cidadão, colocamo-nos nos nossos assentos, na cadeira de nossa escrivaninha, e ali viajamos por mundos, até então inimaginados, à procura de novidades, notícias, inventos e/ou por simples curiosidades.
Basta um cabo, ou um sistema que nos permita uma conexão, para mergulharmos hipertextualmente nessa vastidão digital de convivências nem sempre amistosas, mas necessárias, como podemos presenciar, cada vez mais, a proximidade entre a blogosfera e a midiasfera, uma se alimentando da outra, ou quem sabe, uma contribuindo com a outra: pautando ou repercutindo fatos de uma humanidade há muito esquecida.
O que antes era espaço privilegiado da mídia, de quem detinha o poder econômico, passa a ser de todos, ou de pelo menos de quem quer e tem o que dizer como o são as revistas eletrônicas, os blogs, que vêm crescendo no grau de importância e passam a ter status de formadores de opinião, ganhando espaço nas páginas virtuais de grandes jornais do país, atraindo cada vez mais leitores, quando não, webespectadores, que, se conscientes ou não, passam a interagir com esta nova realidade.
Esta gama de produtos e opções culturais, de informações e lazer, de produtos e oportunidades, surgidos com a Internet, de certa forma mudaria a nossa forma de olhar o mundo, quando os espaços são vários, e cada um “sabe” que caminho trilhar, já que a ele todas as vias são facultadas, momento em que os receptores de uma comunicação massiva dão um salto de “liberdade” e passam a caminhar com os próprios pés e a ter vez e voz, aquilo de que fala Cris Anderson no seu livro A Cauda Longa (The Long Tail):
Cauda Longa é nada mais que escolha infinita. Distribuição abundante e barata significa variedade farta, acessível e ilimitada – o que por sua vez, quer dizer que o público tende a distribuir-se de maneira tão dispersa quanto as escolhas. Sob a perspectiva da mídia e da indústria do entretenimento dominantes, essa situação se assemelha a uma batalha entre os meios de comunicação tradicionais e a Internet. Mas o problema é que, quando as pessoas deslocam sua atenção para os veículos on-line, elas não só migram de um meio para outro, mas também simplesmente se dispersam entre inúmeras ofertas. Escolha infinita é o mesmo que fragmentação máxima (Anderson, 2006, p.179, grifo meu).
Como aponta Anderson (2006), o advento da Internet possibilitou às pessoas que a ela recorreram que também se dispersassem nessa babel de escolhas. Segundo ele, ao mesmo tempo em que se configurou como um manancial de oportunidades, gerou uma fragmentação máxima do mercado, na medida em que cada um passou a buscar aquilo que lhe convinha. Fato que ele comparou como uma batalha entre os meios de comunicação tradicional e a Internet.
A citação de Anderson (2006), ao argumentar sobre a fragmentação do mercado, acaba por abordar também a fragmentação da cultura, característica do que se denominou “pós-modernidade”, uma vez que a segmentação do mercado (ponto de vista dos meios de comunicação de massa e do entretenimento) arrastou consigo o homem nele inserto. Se até pouco tempo só tínhamos o rádio, a televisão e o jornal, agora temos os blogs, o YouTube, o ciberjornalismo, todos convivendo lado a lado. Se antes a comunicação se dava de “um para todos”, agora ela se nos apresenta como de “todos para todos”, um espaço “democrático”, que vem se consolidando a cada dia, causando uma verdadeira revolução na busca pela audiência.
ECOS DIGITAIS
Na corrida sem volta pela audiência, muitos jornais, ao longo dos vinte anos de existência da rede mundial de computadores, puderam sentir a força dessa nova plataforma e as modificações dela advindas, o que os forçou a também buscar o seu quinhão na virtualidade, sob pena de perderem audiência e espaço nesse universo de possibilidades, como testemunha Dines, (2009) no seu artigo “www, 20 anos - Daily Me versus Daily We”, veiculado na página on-line do “Observatório da Imprensa”, quando aponta as diferenças básicas entre o jornalismo impresso e o jornalismo digital:
Não existe conflito entre o periódico impresso e a internet, são rigorosamente complementares. Existe, sim, um conflito entre o jornalismo impresso e o jornalismo virtual. Este conflito não pode ser ignorado e não se resume ao meio (medium) que empregam (papel ou ciberespaço). Trata-se de um confronto conceitual: o jornalismo virtual é uma opção mais amena, mais participativa e menos qualificada do qu e o jornalismo impresso.
(http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=530IMQ001 - Grifo meu)
E acrescenta:
Quando um jornal como o Seattle Post-Inteligence, com 146 anos de existência, anuncia a sua migração para a web não está fazendo uma simples opção de formato e tecnologia, está mudando de finalidade. Deixa de ser o protagonista de um processo social de massas para transformar-se em coadjuvante de um processo individual multiplicado, o Daily Me, o "Eu Diário" (segundo definição de Nicholas Negroponte, do MIT, mencionado por Nicholas Kristof no Estado de S.Paulo (23/3). Um Daily We, esmerado e engajado, tem outras exigências.
(http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=530IMQ001 - Grifo meu)
Como vimos, ao argumentar sobre os possíveis conflitos existentes entre o jornalismo impresso e o jornalismo virtual, mas não entre o periódico impresso e a internet, que, segundo o autor, são rigorosamente complementares, Dines (2009) se refere ao jornalismo virtual como opção mais amena, mais participativa e menos qualificada do que o jornalismo impresso, e, logo em seguida, cita o caso do jornal americano “Seattle Post-Inteligence”, que ao migrar para a modelo virtual (Internet), sai de um “processo social de massas”, ou seja, deixa de ser protagonista de um processo social de massas para transformar-se em coadjuvante de um processo individual multiplicado.
A colocação de Dines (2009) é muito importante, pois corrobora com a nossa discussão, uma vez que trata das mudanças empreendidas pelos jornais, rádios e TVs, que ao migrarem para a plataforma digital, não o fazem somente porque está na moda, pelo contrário, o fazem porque se não procederem desta forma, correm o risco de ficarem para trás na concorrência cada vez mais acirrada e diversa. E aí, cada um buscará a maneira mais adequada para buscar os seus “leitores/webespectadores”.
São inúmeras as possibilidades ao alcance do internauta, vídeos e imagens; atrativos de toda ordem, sem falar na interatividade, já que a perspectiva é de co-autoria, de “todos para todos” e não mais de “um para todos”, como no jornal impresso. Acrescente-se a isso, ferramentas importantíssimas de que se vale o ciberjornalismo ou jornalismo virtual, como a subversão da noção espacial, a desterritorialização, não mais há necessidade de se estar no local onde o jornal é impresso para lê-lo, só basta um clique, uma conexão. O tempo e o espaço são subvertidos, além de tudo isso, há ainda a memória à disposição do leitor, ali, permanentemente, hipertextualmente, como instrumento de reforço da notícia, dando a ela maior credibilidade, como podemos ler em Palacios (2008):
É bastante claro que as crescentes possibilidades abertas para a recuperação de Memória, a partir da sofisticação das bases de dados na produção jornalísticas têm efeitos que podem e devem ser avaliados: a) Nas rotinas produtivas nas Redações, com a crescente facilidade de consultas e apropriação de informações em bases de dados internas e externas ao veículo; b) Nos modelos de negócios, com uma vasta gama de possíveis incorporações de elementos de Memória como parte do negócio estabelecido para os jornais online;c) Na produção de formas narrativas diferenciadas, com distintas formas de incorporação de Memória (background, contexto, contraposição, etc);d) Nas formas de interação com o Usuário, que passa a dispor de recursos para investigar, no próprio site do jornal, aspectos históricos em torno do material de Atualidade que lhe é oferecido, bem como eventualmente personalizar sua Memória em espaços do próprio site jornalístico que utiliza.
(http://cencib.org/simposioabciber/conferencias.htm)
Assim como o jornalismo, que se vale dos mais variados recursos, como a memória, para chamar a atenção dos seus leitores, como foi citado acima, os blogs, as páginas especializadas em diversos assuntos, estão ali, prontos para lançarem os seus apelos, suas armadilhas, disputando em pé de igualdade os seus “eleitos”, e aí, basta um clique para ser transportado para uma nova dimensão, para uma nova realidade.
Importante essa discussão que você iniciou aqui, vou ler a outra parte.
ResponderExcluirbeijos