Cobra Norato
Hoje, apresento a última parte deste ensaio de Antônio Houaiss. O texto foi transcrito ipsis litteris, conservando a sua linguagem original. Acho importantíssimo reunir aqui neste espaço - Banzeiro - três grandes nomes das nossas Letras: Raul Bopp, Othon Moacyr Garcia e Antônio Houaiss. Boa Leitura!
(...)
Nas terras do Sem-fim, palmilhando-as todas, eu=Raul Bopp=leitor, metido na pele da Cobra Norato, faço-me o Cobra Norato e vou casar-me com a filha da rainha Luzia. Está-se em plena mitologia, vencendo todos obstáculos, inclusive os do espaço e do tempo. Toda racionalidade da ensaística era abandonada, em favor das regras de um jogo de imprevistos, previsíveis somente pela limitação ecológica, inclusive para os convidados do epitalâmio, o caxiri-grande, que na primeira versão já iria ter como convidada a paulista Tarsila, mas de certa ediç~so em diante iria também ter a do fraterno Augusto Meyer, pois o herói queria na sua festa nupcial "povo de Belém de Porto Alegre de São Paulo" em subidas e descidas que abarcassem o Brasil inteiro - festa nupcial que era, a seu modo, a descoberta da Amazônia, aberta tantas e tantas vezes à integração nacional, que essa de Bopp, passados quarenta anos, tem o direito de supor ser uma das mais pervividas dentre todas.
Assim Cobra Norato não apenas ficou como canto, senão que também como mito, como ato inaugural e como rito de iniciação - uma das fases da iniciação - da literatura brasileira.
A quem logrou esse feito, poder-se-ia pedir mais? Suspeito que sim, mas de coração pesado. A mim, basta-me esse poema para ter Raul Bopp no meu coração.
É por isso que, em lugar de deter-me alongadamente nos milagres dos versos de Cobra Norato, prefiro, em síntese, louvar-me do meu querido Othon Moacyr Garcia, a quem se deve o mais cabal estudo a respeito, intitulado - Cobra Norato, o poema e o mito -, publicado em 1962 pela Livraria São José, desta cidade do Rio de Janeiro.
Se alguma diferença se pode ter para com o ensaio de Othon Moacyr Garcia, creio que tal diferença, de pormenor, se esbate ante sua síntese aferidora - e com ela me identifico a tal ponto, que o só jeito de lhe ser fiel é transcrevê-la, ipsis litteris, aqui, para regozijo do leitor:
Em resumo: o mito de Cobra Norato, mito etiológico sincrético de origem amazônica, na sua feição de símbolo de fecundação, de símbolo de poder criador ou gerador, de símbolo de nascimento ou de maternidade, idéias que lhe são implícitas ou que dele decorrem pelos seus acidentes - digamos ecológicos, como águas e árvores e toda paisagem de um modo geral - oferecia ao poeta um conjunto de idéias-temas ricas pelo conteúdo poético, férteis em sugestões e adequadíssimas à veiculação das idéias-teses do movimento modernista. Essa coincidência de idéias-temas e idéias-teses, o Autor soube aproveitá-la, servindo-se, mas não abusando, dos artifícios que a língua lhe proporcionava e evidenciando um virtuosismo metafórico que é uma das suas maiores riquezas, tão expressivo e afeiçoado à natureza do tema, que a unidade do poema ressalta através de todas as suas peripécias. E essa é a grande virtude de Cobra Norato: a sua unidade inteiriça; nele fundem-se, numa só peça, como mensagem poética de grande ressonância, o simbolismo do tema, a paisagem, que é uma alegoria da terra, da geografia sem-fim, e a linguagem, plasmada em moldes de tal afetividade e universalidade, que funciona como um espelho - desses que reproduzem a imagem em miniatura - onde se refletem as particularidade regionais de toda a língua.
Sendo o único e verdadeiro poema épico da literatura brasileira (porque popular pela essência do tema e pela feição da forma verbal), já que as tentativas anteriores - desde de o Caramuru e O Uraguai até o I Juca Pirama e O Caçador de Esmeraldas e quantos se arrolem como tais - falta-lhes a feição da unidade temática e lingüística de vículo popular e legítimo sabor de brasilidade, - é Cobra Norato um dos melhores legados do Movimento Modernista, um dos grandes poemas destes sessenta anos de literatura brasileira do século XX. Seu valor é permanente.
E mais não direi. A não ser - amém.
ANTÔNIO HOUAISS
Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1972.
In.Cobra Norato e outros poemas.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira:1984
E o que posso dizer eu?
ResponderExcluirAmém!
beijos