Nascido em Aracataca, na Colômbia, em 1927, o escritor, jornalista e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1982, Gabriel García Márquez, transformou a literatura mundial ao fundir o cotidiano com o extraordinário, criando um estilo que viria a ser conhecido como realismo mágico.

Ao publicar os inícios dos livros de García Márquez aqui no Banzeiro Textual, convido  vocês,  leitores, a adentrar esse universo onde o real se curva ao maravilhoso. Cada início é uma porta entreaberta para um mundo onde o passado nunca passa, o presente é encantado e o futuro é uma promessa de poesia e resistência.

Celebrar os começos de suas obras é também celebrar a potência da palavra latino-americana — uma palavra que canta, denuncia, encanta e transforma. Que este banzeiro literário leve vocês a navegar pelas águas profundas da imaginação de Gabo, onde cada frase é uma jangada rumo ao coração palpitante da América Latina.


 “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buedía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar o dedo.”

(CEM ANOS DE SOLIDÃO – 1967 -Trad. Eliane Zagury – Record – 48ª Edição – 2000)

 

 


“Padre Ángel ergueu-se com um esforço solene. Esfregou as pálpebras com os ossos das mãos, afastou o mosquiteiro de renda e permaneceu sentado na esteira nua, pensativo por alguns instantes, o tempo indispensável para perceber que estava vivo, e para lembrar a data e sua correspondência no santoral. “Terça-feira, quatro de outubro”, pensou; e disse em voz baixa:- São Francisco de Assis.”

((O VENENO DA MADRUGADA (a má hora) – 1968 – Trd. Joel Silveira – Record – 17ª Edição – 2000))

 


“Durante o fim de semana, os urubus meteram-se pelas sacadas do palácio presidencial, destroçaram a bicadas as malhas de arame das janelas e espantaram com suas asas o tempo parado no interior, e na madrugada da segunda-feira a cidade despertou de sua letargia de séculos com uma morna e terna brisa de morto grande e de apodrecida grandeza.”

(O OUTONO DO PATRIARCA – 1976 – Trad. Remy Gorga, FILHO – Record – 21ª Edição – 2020)

 


“No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30 da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros. “Sempre sonhava com árvores”, disse-me sua mãe 27 anos depois, evocando os pormenores daquela segunda-feira ingrata.”

(CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA – 1981 – Trad. Remy Gorga, FILHO – Record – 56ª Edição – 2020)

 

 

 




“Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino o sentiu logo que entrou na casa ainda mergulhada em sombras, à qual chegara acudindo a chamado de urgência para se ocupar de um caso que para ele tinha deixado de ser urgente há muitos anos. O refugiado antilhano Jeremiah de Saint-Amour, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e seu adversário de xadrez mais compassivo, se havia posto a salvo dos tormentos da memória com uma fumigação de cianureto de ouro.”

(O AMOR NO TEMPO DO CÓLERA – 1985 – Trad. Antonio Callado – Record – 60ª Edição – 2020)

 

 


“O voo 115 da Ladeco, procedente de Assunção do Paraguai, estava a ponto de aterrissar com mais de uma hora de atraso no aeroporto de Santiago do Chile. À esquerda, a quase sete mil metros de altura, o Aconcágua parecia um promontório de aço sob o fulgor da lua. O avião se inclinou sobre a asa esquerda com uma graça pavorosa, endireitou-se em seguida com um rangido de metais lúgubres, e tocou a terra antes do tempo com três saltos de canguru.”

(A AVENTURA DE MIGUEL LITTÍN CLANDESTINO NO CHILE – 1986 – Trad. Eric Nepomuceno – Record – 4ª Edição – 2014)

 


José Palacios, seu servidor mais antigo, o encontrou boiando nas águas depurativas da banheira, nu e de olhos abertos, e pensou que tinha se afogado. Sabia que era essa uma de suas muitas maneiras de meditar, mas o estado de êxtase em que jazia à deriva parecia de alguém que já não era deste mundo. Sem ousar aproximar-se, chamou com voz surda, em obediência à ordem de acordá-lo antes das cinco para viajar com as primeiras luzes. Ao emergir do sortilégio, o general viu na penumbra os olhos azuis e diáfanos, o cabelo escarapinhado cor de esquilo, a majestade impávida do seu mordomo de todos os dias, trazendo na mão a xícara com a infusão de papoulas com goma. Agarrou-se sem forças às bordas da banheira e surgiu dentre as águas medicinais com um ímpeto de delfim, imprevisto para um corpo tão depauperado.

(O GENERAL EM SEU LABIRINTO – 1992 – Trad. Moacir Werneck de Castro – Record – 19ª Edição – 2020)

 

 

 

 




Antes de entrar no automóvel olhou por cima do ombro para ter certeza de que ninguém a espreitava. Eram sete e cinco da noite em Bogotá. Havia escurecido uma hora antes, o Parque Nacional estava mal iluminado e as árvores sem folhas tinham um perfil fantasmagórico contra o céu turvo e triste, mas não havia à vista nada a temer. Maruja sentou-se atrás do motorista, apesar do cargo que ocupava, porque sempre achou que aquele era o lugar mais cômodo. Beatriz subiu pela outra porta e sentou-se à sua direita. Estavam com quase uma hora de atraso em sua rotina diária, e as duas pareciam cansadas depois de uma tarde soporífera com três reuniões executivas. Sobretudo Maruja, que na noite anterior tivera uma festa em casa e não conseguiu dormir mais do que três horas. Esticou as pernas intumescidas, fechou os olhos com a cabeça apoiada no encosto do banco, e deu a ordem de rotina: - Para casa, por favor.

(NOTÍCIA DE UM SEQUESTRO – 1996 – Trad. Eric Nepomuceno – Record – 8ª Edição – 2021)

 

 


 “Minha mãe pediu que fosse com ela vender a casa. Havia chegado a Barranquilla naquela manhã, vinda do povoado distante onde morava minha família, e não tinha a menor ideia de como me encontrar. Perguntando aqui e ali entre os conhecidos, indicaram que me procurasse na Livraria Mundo ou nos bares vizinhos, aonde eu ia duas vezes por dia conversar com meus amigos escritores. Quem deu a indicação avisou: “Vá com cuidado porque são uns doidos varridos.” Chegou ao meio-dia em ponto. Abriu passagem com seu andar ligeiro entre as mesas repletas de livros, plantou-se na minha frente olhando-me nos olhos com um sorriso pícaro de seus melhores dias, e antes que eu pudesse ter qualquer reação disse:

 - sou sua mãe.”

(VIVER PARA CONTAR – 2002 – Trad. Eric Nepomuceno – Record – 11ª Edição – 2014)

 


“No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem. Lembrei de Rosa Cabarcas, a dona de uma casa clandestina que costumava avisar aos seus bons clientes quando tinha alguma novidade disponível. Nunca sucumbi a essa nem a nenhuma de suas muitas tentações obscenas, mas ela não acreditava na pureza dos meus princípios. Também a moral é uma questão de tempo, dizia com um sorriso maligno, você vai ver. Era um pouco mais nova que eu, e não sabia dela fazia tantos anos que podia muito bem estar morta. Mas o primeiro toque reconheci a voz no telefone e disparei sem preâmbulos:

- É hoje.

Ela suspirou: Ai, meu sábio triste, você desapareceu por vinte anos e volta só para pedir o impossível. Recobrou em seguida o domínio de sua arte e me ofereceu meia dúzia de opções deleitáveis, mas com um senão: eram todas usadas.”

(MEMÓRIA DAS MINHAS PUTAS TRISTE – 2004 – Trad. Eric Nepomuceno –  Record - 2005

 

 


“A 22 de fevereiro nos anunciaram que voltaríamos à Colômbia. Estávamos há oito meses em Mobile, Alabama, Estados Unidos, onde o A.R.C. Caldas foi submetido a reparos eletrônicos e em seus armamentos. Enquanto consertavam o navio, nós, os membros da tripulação, recebíamos instrução especial. Nos dias de folga, fazíamos o que fazem todos os marinheiros em terra: íamos ao cinema com a namorada e nos reuníamos de pois no Joe  Palooka, uma taberna do porto, onde tomávamos uísque e armávamos uma briga de vez em quando.”

(RELATO DE UM NÁUFRAGO – 2018 – Trad. REMY GORGA, FILHO – Record – 42ª Edição – 1970)

 


“Pela primeira vez vi um cadáver. É quarta-feira, mas sinto como se fosse domingo porque não fui à escola e me fizeram vestir esta roupa de veludo verde que me aperta em algum lugar. Levado pela mão de mamãe e seguindo meu avô, que tateia a cada passo com a bengala para não tropeçar nas coisas (ele não enxerga bem na penumbra, e além disso capenga), passei diante do espelho da sala e me vi de corpo inteiro, vestido de verde e com este laço branco engomado que me aperta de um lado no pescoço. Vi-me na redonda lua manchada e pensei: “Este sou eu, como se hoje fosse domingo.”

((A REVOADA (ENTERRO DO DIABO) – 2020 – Trad. Joel Silveira – Record – 25ª Edição – 1980))

 


“Um cachorro cinzento com uma estrela na testa irrompeu pelos becos do mercado no primeiro domingo de dezembro, revirou mesas de frituras, derrubou barraquinhas, revirou mesas de frituras, derrubou barraquinhas de índios e toldos de loteria, e de passagem mordeu quatro pessoas que atravessaram no seu caminho. Três eram escravos negros. A outra foi Sierva María de Todos los Ángeles, filha única do marquês de Casalduero, que fora com uma empregada mulata comprar uma fieira de guizos para festa de seus doze anos.”

(DO AMOR E OUTROS DEMÔNIOS– 2020 – Trad.  MOACIR WERNECK DE CASTRO – Record – 29ª Edição – 1994)

 


“Estava sentado no banco de madeira debaixo das folhas amarelas do parque solitário, contemplando os cisnes empoeirados com as mãos apoiadas no pomo de prata da bengala, e pensando na morte. Quando veio a Genebra pela primeira vez o lago era sereno e diáfano, e havia gaivotas mansas que se aproximavam para comer nas mãos, e mulheres de aluguel que pareciam fantasmas das seis da tarde, com seus véus de organdi e sombrinhas de seda. Agora, a única mulher possível, até onde a vista alcançava, era uma vendedora de flores no embarcadouro deserto. Ele custava crer que o tempo pudesse ter feito semelhantes estragos não apenas em sua vida, mas no mundo.”

(DOZE CONTOS PEREGRINOS (BOA VIAGEM, PRESIDENTE – PRIMEIRO CONTO DO LIVRO – 2020 – Trad. ERIC NEPOMUCENO– Record – 32ª Edição – 1992)

 


“O coronel destampou a lata do café e notou que apenas restava uma colherinha de pó. Tirou a panela do fogo, jogou no chão de barro batido a metade da água e raspou de faca todo o interior da vasilha, até botar na panela o que restava, uma mistura de raspas de ferrugem. Para um homem de sua fibra, sobrevivente de tantas outras manhãs.  Sentado junto ao fogão, em atitude de confiada e inocente expectativa enquanto o café fervia, o Coronel como que sentiu brotar de suas tripas cogumelos e lírios malignos. Era outubro. Eis uma manhã difícil de vencer, esta, mesmo para um homem de sua fibra, sobrevivente de tantas outras manhãs. Havia cinquenta e seis anos – desde que acabara a última guerra civil – que ele não fazia outra coisa senão esperar. O outubro era uma dessas raras coisas que chegavam.”

(NINGUÉM ESCREVE AO CORONEL – 1968 – Trad. DANÚBIO RODRIGUES – Record – 32ª Edição – 2020)


 

 


 


“Ao terceiro dia de chuva haviam matado tantos caranguejos dentro da casa que Pelayo teve que atravessar seu pátio alagado para atirá-los ao mar, pois o menino recém-nascido passara a noite com febre e se pensava que era por causa da peste. O mundo estava triste desde terça-feira. O céu e o mar eram uma só coisa cinza, e as areias da praia, que em março fulguravam como poeira de luz, converteram-se num caldo de lodo e mariscos podres. A luz era tão mansa ao meio-dia, quando Pelayo voltava a casa, depois de haver jogado os caranguejos, que lhe deu trabalho ver o que se mexia e se queixava no fundo do pátio. Teve que se aproximar muito para descobrir que era um velho, que estava caído de boca para baixo no lodaçal e, apesar de seus grandes esforços, não podia levantar-se, porque o impediam suas enormes asas.”

(A INCRÍVEL E TRISTE HISTÓRIA DA CÂNDIDA ERÊNDIRA E SUA AVÓ DESALMADA – UM SENHOR MUITO VELHO COM UMAS ASAS ENORMES – PRIMEIRO CONTO - 1972 – Trad. DANÚBIO RODRIGUES – Record – 26ª Edição – 2014)

 


“Voltou à ilha na sexta-feira, 16 de agosto, na barca das três da tarde. Usava calça jeans, camisa xadrez no estilo escocês, sapatos simples de alto baixo sem meias, carregava uma sombrinha, na sua bolsa de mão e, como única bagagem, a maleta de praia. Na fila de táxis do cais foi direto para um modelo velho, carcomido pelo salitre. O chofer a recebeu com um cumprimento amigável e a conduziu aos solavancos pelo povoado miserável, com casas de pau a pique, telhados de folha de palmeira amarga e ruas de areia ardente diante de um mar em chamas. Precisou fazer malabarismo para desviar dos porcos impávidos e das crianças nuas que debochavam dele com passes de toureiro. No fim do povoado enveredou por uma avenida de palmeiras-reais onde ficavam as praias e os hotéis turísticos, entre o mar aberto e uma lagoa interior povoada de garças azuis. Finalmente parou no hotel mais velho e decadente.”

(EM AGOSTO NOS VEMOS – 2024 – EDIÇÃO DE CRISTÓBAL PERA - Trad. ERIC NEPOMUCENO – Record – 1ª Edição – 2024)

Comentários

  1. Otimo Gabriel Garcia Marques

    ResponderExcluir
  2. Ótimos Valdivino Braz e Francisco Perna Filho

    ResponderExcluir
  3. Chico, bacana a seleção dessas pérolas literárias! Vamos bazeirar! Abraços... IONE.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário aqui

Postagens mais visitadas