"Emma Bovary c’est moi"
(...)
Em qualquer história da literatura francesa se pode ler que Madame Bovary “é o primeiro romance realista”, pela observação meticulosa e representação impossível da realidade. Essa observação talvez seja injusta em relação a Balzac; não teria sido realista? O fato de que Flaubert eliminou os elementos românticos da arte balzaquiana não é decisivo, pois não eliminou a todos. Por outro lado, os contemporâneos sempre consideravam Flaubert como naturalista, como precursor imediato de Zola. Conforme os critérios de Lukács, Madame Bovary não poderia ser classificado como romance naturalista (e muito menos as outras obras de Flaubert). Mas é inegável que o autor adotara os princípios da “ficção experimental”, estabelecidos pelos irmãos Goncourt, isto é: realizando por meios de ficção uma experiência com fatos encontrados na realidade. Também é inegável que Flaubert usou primeiro o método que mais tarde seria o de Zola: baseando sua ficção em documentação autêntica e usando notas de fatos observados. Flaubert não teria propriamente inventado o enredo nem os personagens. É, portanto, lícito perguntar pelas fontes de Madame Bovary.
O próprio Flaubert respondeu: Emma Bovary c’est moi.” Essa resposta é bastante estranha. Está em contradição flagrante com o propósito proclamado realista de excluir da sua obra todos os elementos pessoais; está em contradição com o antiromantismo de Flaubert, que exclui a intenção autobiográfica. Mas Flaubert certamente não quis dizer que seu próprio destino poderia ter sido o de sua triste heroína (a diferença de sexos já proíbe tomar ao pé da letra a identificação). Só quis dizer que ele encontrara sua própria mentalidade de romântico fracassado em personagem e ambiente que ele conhecia, que lhe eram familiares: suas fontes. Mas quais são essas fonte?
Em vida de Flaubert já correram boatos em Ruão: Emma Bovary teria sido esta ou aquela senhora, nesta ou naquela das pequenas aldeias ou cidadezinhas em torno de Ruão. Mas, só depois da morte do escritor, publicou o jornalista Georges Duboch, no “Journal de Rouen”, em novembro de 1890, a história toda.
Yonville, a aldeia na qual se passa o enredo do romance, podia ser identificada como Ry, aldeia normanda que Flaubert conhecia bem; entre seus papéis encontrou-se mesmo um mapa de Ry, desenhado por ele próprio. Em Ry viveu, por volta de 1840, a bela e sonhadora Delphine Conturier, que casou com o estúpido e vulgar médico Delamare, assim como no romance a bela e sonhadora Emma casa com o estúpido e vulgar médico Charles Bovary. Delphine Delamare manteve relações eróticas com o fazendeiro Campion, muito parecido com Rodolphe, o primeiro amante de Emma. Em Ry, viveu nas mesma época o farmacêutico Jouenne, quase irmão gêmeo do farmacêutico Homais no romance. Enfim, Delphine encontrou em 1848 o mesmo fim de Emma: o suicídio. Tudo exato. As explicações de Duboch foram geralmente aceitas. Em Ry, desenvolveu-se verdadeira indústria de turismo: os lugares em que se teria passado a vida de Emma Bovary foram mostrados mediante ingresso pago. Venderam-se fotografias apócrifas de Delphine Delamare. Mas tudo isso foi. Pois Youville não é somente parecida com Ry, mas com dezenas de outras aldeias normandas; e as cenas mais importantes e mais características da vida de Emma, antes do suicídio, não foram vividas por Delphine. Teria Flaubert traído o método por ele próprio escolhido, ao ponto de inventá-los livremente?
In. Madame Bovary.Gustave Flaubert.Trad.:Sérgio Duarte. Ediouro, s/d, p.12-13.
Imagem: http://www.imgartists.com/resources/artists/madame_bovary.jpg
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário aqui