Por ser muito interessante tudo o que Omar Prego diz sobre o autor de “O Jogo da Amarelinha (no original, Rayuela – 1963), acho importante presentear os leitores do Blog transcrevendo aqui esse depoimento. Por ser o texto um pouco extenso, levaremos alguns dias para publicá-lo por inteiro. Sendo assim, peço um pouco de paciência, na certeza de que, ao final, todos sairão mais enriquecidos e humanizados.
(...)
Nós nos encontramos pela primeira vez na sexta-feira, 20 de janeiro de 1984, em seu pequeno quarto no hospital Saint-Lazare, em Paris, que está a uns parcos
Julio estava sozinho, sentado numa poltrona, o olhar perdido na janela que dava para um pátio interior sombreado, como se escutasse a chuva. Vestia um roupão velho e parecia mais animado que no dia anterior, quando eu havia estado ali com minha mulher. Ele tinha nos contado, na presença de Saul Yurkievich e sem nenhum rodeio, que quase morrera durante um dos exames que fizera na seção de gastroenterologia do hospital, considerada uma das melhores de Paria.
“Fiquei sem pulso e todos pensaram que eu ia morrer ali mesmo”, nos disse.
Porém, naquela sexta-feira, 20 de janeiro, as coisas pareciam estar um pouco melhores. “Estou farto dessa comida e do barulho que essas moças fazem de manhã. As enfermeiras daqui parecem não conhecer as solas de borracha. Sapateiram e cantam pelos corredors sem o menor cuidado”, lamentou-se com resignação.
Ficamos conversando durante uma meia hora, mas ele estava visivelmente cansado. “Quero dormir, não sei se vou conseguir. E essa comida, melhor nem falar! Não é que seja ruim. Mas, quando eu chegar em casa, a primeira coisa que vou fazer é preparar um belo bife, bem alto. Seja como for, saio amanhã. Meu médico, professor Modigliani – já pensou? Modigliani! Tenho uma espécie de sina com os pintores -, me mandou para casa, desde que eu volte, semana que vem, todos os dias para continuar com os exames.”
Combinamos que Julio me telefonaria quando saísse do hospital. Ele se levantou para me estender mão, e nos despedimos. “Quando tudo isso acabar, vamos passear num bosque. Não precisa ser muito longe: Vincennes ou Fontainebleau. O que eu quero é ver árvores”, disse. Deixei o Le Monde para ele, com uma entrevista de Antônio Cândido. Antes de sair, vi que em seu criado-mudo havia uma pequena pilha de livros e algumas cartas, escritas à mão.
Essas são as últimas palavras que lembro dele: “Eu quero ver árvores.” Morreu no domingo, dia 12 de fevereiro, pouco depois do meio-dia, e o enterramos no cemitério de Montparnasse, às onze e meia da manhã, na tumba de sua mulher, Carol Dunlop, que morrera em novembro de 1982. Era uma manhã fria, mas de uma luminosidade quase que sobrenatural para quem está acostumado com o céu acinzentado e pesado de Paris no inverno. O sol batia nas arestas de mármore dos panteões e nas chapas e bronze, e somente as copas das árvores se moviam levemente na brisa matinal. O mais impressionante, porém, era o silêncio. Desde que o cortejo se pôs em marcha na entrada do cemitério e nos encaminhamos para a tumba recém-aberta, não me lembro de ter escutado uma única palavra. O único ruído, semelhante ao do mar numa praia pedregosa, era dos pés se arrastando pelo caminho principal, atrás do furgão mortuário. Depois, cada um dos amigos deixou cair uma flor sobre o caixão de madeira polida, e fomos embora. Minha mulher e eu ficamos um pouco afastados, e, quando aquela zona do cemitério ficou vazia, dois ou três gatos esquálidos e friorentos apareceram entre as tumbas e nos olharam à distância, indiferente.
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Continuaremos amanhã
In.O Fascínio das Palavras.Omar Prego. Trad.: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p.4-5.
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