Certa manhã, antes de começar a trabalhar, mostrou-me um projeto de capa da edição espanhola de Los autonautas de La cosmopista, em cuja contracapa aparece uma bela foto de Carol. Julio está sentado em primeiro plano, em sua cadeira de balanço favorita, com os braços dispostos de tal forma que a mão esquerda se levanta até seu ombro direito, ali, onde podemos imaginar que um instante estava pousada a mão direita de Carol, que está de pé, atrás da cadeira, um pouco à direita. O braço de Carol se apóia no ombro esquerdo de Julio, mas não há peso. Olhando com atenção, podemos reparar que a posição dos braços de ambos se corresponde de tal maneira que parecem formar um desenho, há uma continuidade do traço que sai da mão de Julio, sustenta seu cotovelo esquerdo, prolonga-se pela mão pousada no ombro, se entrelaça com a mão de Carol (embora na realidade haja apenas um contato de dedos) e se prolonga no braço direito de Carol, para voltar a fechar no braço esquerdo apoiado no ombro de Julio. Os dois estão nos olhando, quer dizer, olhando fixamente para a objetiva da câmara de Carlos Freire. Há uma luz rasante que vem da direita, que golpeia as figuras imóveis e que, inevitavelmente, faz lembrar o museu de província que Diana visita em “Fin de etapa”, nessa cidadezinha que parece “fora do tempo”, uma luz que parece haver se concentrado nos olhos de Carol e Julio. Os dois estão olhando fixamente a câmara com uma expressão que poderia ser descrita como sendo de serena determinação. É um olhar de intensa felicidade e, ao mesmo tempo, de temeroso desafio, como se no lugar de estar olhando para a câmara (ou seja, para nós) estivessem olhando para uma presença que houvesse se materializado de repente nesta slaa clara, austera, de paredes brancas, deslizando-se em silêncio para se manter em pé, um pouco atrás do fotógrafo, demasiado ocupado com suas alquimias de diafragmas, velocidades e campos para perceber essa aparição casual e instantânea.
Olham, pois, essa presença sem se surpreender, sem pestanejar frente a seu olhar esquisito e de certa forma possessivo, sem sobressaltos ou desafios, aceitando-a mas dispostos a enfrentá-la com as únicas armas de que dispõem, as de seu amor. Não a temem nem se aborrecem com ela, sabem que ela os espreita há tempos, aprenderam a reconhecê-la num instante, já que lutaram contra ela e estão decididos a continuar o combate, a driblar suas astúcias de viúva inconsolável.
“Estou agora sob a influência de uma constelação ruim. E isso, há anos. Espero que mude”, disse. Depois falamos sobre outras coisas e não lembro se voltamos ao assunto. Mas naquele dia, ao sair da casa de Julio, comecei a andar pelo boulevard Magenta, até a gare de l’Est. Vi então um desses furgõezinhos usados pelas videntes e quiromantes para trabalhar. Em cima da porta estava escrito “Josiane”, que devia ser o nome da mulher. O furgão estava parado na esquina de rua Saint Laurent. Como não associar o nome ao de Josiane de “El outro cielo”, com o misterioso Laurent que assassinava prostitutas com um método diabólico e infalível no bairo de La Bolsa e na zona das galerias cobertas da rua Vivienne e na Passage de Panoramas? Decidi contar a Julio no dia seguinte o que tinha visto. Não sei por que, não contei nunca. Freud sabe coisas que a razão ignora.
Creio que Julio morreu finalmente sem saber (sem querer aceitar) que morria. Pelo menos não parecia acreditar, na última vez em que nos vimos, nos hospital Saint-Lazare. Sua mulher Carol, sim, sabia o que estava acontecendo, mas ela morreu antes e preferiu não falar nada, quando ainda era possível. Limitou-se a esperá-lo em sua tumba do cemitério de Montparnasse, em cuja lápide de mármore estava escrito apenas o seu nome. Carol Dunlop, seguido de um sinal que chamamos de ‘hífen’ (embora aqui eu prefira a expressão francesa trait d’union), ao qual agora foi acrescentado o nome de Julio Cortázar.
In.O Fascínio das palavras.Trad.: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p.10-11.
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