(...)
Em última instância, você e eu sabemos de sobra que o problema do intelectual latino-americano é um só, o da paz baseada na justiça social, e que as diferenças nacionais de cada um de nós só subdividem a questão, sem tirar dela seu caráter básico(...). Sob o risco de decepcionar os catequistas e os defensores da arte a serviço das massas, continuo sendo este cronópio que, como dizia no começo, escreve para seu regozijo ou sofrimento pessoal, sem a menor concessão, sem obrigações “latino-americana” ou “socialistas”, entendidas a priori como pragmáticas.
E, finalmente, isto:
Mas não creio, como com toda comunidade pude “crer” em outra época, que a literatura de mera criação imaginativa baste para sentir que me realizei como escritor, já que minha noção dessa literatura mudou e contém em si o conflito entre a realização individual, conforme o humanismo entendia, e a realização coletiva, como entende o socialismo, conflito que alcança sua expressão mais dilacerante no Marat-Sade de Peter Weiss. Jamais escreverei expressamente para ninguém, maioria ou minorias, e a repercussão que meus livros tenham será sempre um fenômeno alheio à minha tarefa; sem dúvida, hoje sei que escrevo “para”, que existe uma intelectualidade que aponta a esperança de um leitor no qual exista a semente do homem do futuro.
Um militante, então.
Mais de uma vez, nestes últimos anos, nos encontramos em reuniões de solidariedade e em muitas delas Julio não estava na tribuna, mas no público, entre a massa de militantes anônimos que acabam descobrindo-o e que inevitavelmente se aproximavam para apertar sua mão generosa.
Em uma “Carta aberta a Julio Cortázar, amigo e militante”, publicada no México em Cuadernos de Marcha (segunda época), Pierre Bercis, presidente do Club des Droits Socialistes de l’Homme, destacou precisamente essa sua disposição para a militância obscura, anônima, despojada:
[...]quantas personalidades da sua estatura intelectual podem ser vistas permanecendo simples e militantes, até em pequenas reuniões cheias de fumaça de cigarro, quando nos juntávamos, três ou quatro pessoas, para trabalhar em tarefas modestas? Fosse em uma homenagem às Madres da Plaza de Mayo, em colóquios ou manifestações, sempre víamos chegar esse estudante altíssimo de setenta anos, que nos dava um abraço fraternal, sinal marcante de nossos amigo latino-americanos. E de imediato tínhamos a impressão de que nada de nefasto poderia nos recorrer, tanta era a calma e a serenidade que nos transmitia. Era um sábio que não dava lições: ele mesmo era uma lição para seus amigos mais jovens, que não conseguiam acreditar que Cortázar compartilhasse até mesmo suas menores preocupações.
.............................................................
Ao contrário do que ocorre com outros escritores (penso sobretudo em Gabriel Garcia Márquez), Cortázar não gostava muito de falar sobre sua infância e, quando falava, referia-se a fatos muito concretos. Há enormes vazios que nunca abordamos, apesar de Julio ter me avisado, ao começarmos estas entrevistas, que não haveria “teritórios proibidos”. Jamis mencionou o pai, por exemplo. A infância – conforme já contei – aparecia de repente numa evocação da época de Bánfield, que em suas lembranças se transforma em paraíso:
Cresci em Bánfield, numa casa com um grande jardim cheio de gatos, cachorros, tartarugas e periquitos: o paraíso. Mas nesse paraíso eu já era Adão, no sentido em que não guardo uma memória feliz da minha infância; obediência demasiada, sensibilidade excessiva, tristeza freqüente, asma, braços quebrados, primeiros amores desesperados (“Los venenos” é muito autobiográfico).
Escreveu Julio a seu amigo Alberto Sola em certa ocasião.
In.O Fascínio das palavras.Trad.: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p.13-16.
Imagem: Cortázar com o escritor e amigo cubano José Lezzama Lima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário aqui