Começamos a trabalhar nos primeiros dias de julho, na sua casa da rua Martel. A casa de Julio ficava num daqueles edifícios antigos de Paris, com uma dessas pesadas portas com barras de ferro esverdeadas, enferrujadas em alguns pontos, que dava para amplo corredor que se abria em sucessivos pátios internos. O edifício estava cheio de escritórios de empresas têxteis, de modo que a partir das seis da tarde, quando terminava o expediente, tinha-se a impressão de estar entrando no edifício mais solitário do mundo. O apartamento de Julio ficava nos fundos, no pavilhão C. Era preciso subir uma larga e interminável escada de madeira, cujos degraus pareciam lixados por inúmeros passos. O apartamento de Julio era muito grande. Tinha um hall rodeado por estantes abarrotadas de livros que iam até o teto e em seguida um vasto salão, com janelas altíssimas. À esquerda havia um móvel de madeira que dividia o ambiente. Atrás ficava a cozinha. Na sala de estar havia grandes poltronas, um equipamento de som e estantes cheias de discos e fitas, cuidadosamente classificados. Esta era a região preferida pela gata de Aurora Bernárdez.
Trabalhávamos em um escritório espaçoso, de paredes brancas como o resto da casa, e duas delas estavam ocupadas por estantes que iam até o teto. Numa terceira parede havia armários onde Julio guardava pastas com recortes de jornais e revistas, e uma biografia de Keats, o poeta romântico inglês, que ele havia escrito na década de 1950,
Trabalhávamos quase sem pausa por três ou quatro horas. Julio sentava-se em sua poltrona giratória, de costas para uma janela que se abria para a rua do Paradis. Nos primeiros tempos, nos meses de julho e agosto, Julio parecia estar bem, aceitava de bom grado as perguntas e tenho a impressão de que pouco a pouco foi se deixando tomar pela idéia de que o livro – que já havia sido aceito pela Editora Gallimard – podia ser uma boa oportunidade para dizer algumas coisas que tinha guardado até então.
“Nunca tinha dito isso antes”, “estou dizendo isso pela primeira vez”, falava às vezes. E mais de uma vez começamos a nossa conversa voltando a um tema do dia anterior, a pedido do próprio Julio: “As melhores resposta me ocorrem depois de você ter ido embora”, dizia. Um dos poucos temas que decidimos deixar para depois, para uma ou duas entrevistas de balanço final e encerramento, foi o de sua viagem à Argentina em dezembro de 1982, após uma longa ausência imposta por aqueles anos sombrios e terríveis da ditadura militar e dos esquadrões da morte, essa alucinante noite de terror que tanto o machucava e acossava, e cuja angústia pode ser sentida em alguns de seus contos mais recente, como “Graffiti” ou “Segunda vez”. De qualquer maneira, no seu regresso, falamos um pouco sobre o que encontrara na Argentina. “A Argentina mudou, é claro. Está começando a sair de um pesadelo de ditadura e tirania. Há muitíssimo para ser feito.” Mas ele se mantinha alerta, com se temesse o regresso dos velhos demônios. “Eu não acredito que a palavra “esquerda” tenha deixado de ser maldita em meu país. Espero o dia em que isso acabe”, me disse em outro dia.
Tinha planejado uma nova viagem para março, e confiava em que os argentinos não apenas compreenderiam que a palavra “esquerda” não era maldita, mas, “uma das melhores que existem na linguagem política, talvez a melhor”. Disse-me também que essa oportunidade que os argentinos estavam tendo era provavelmente a última: “Se o governo de Raúl Alfonsín tropeçar numa oposição cega e negativa, eu não estranharia se daqui a pouco tivéssemos de novo os militares, que estão esperando a sua vez agrupados nos quartéis.”
Muitas vezes me perguntei (e mais ainda me pergunto agora, nesse desolado vazio em que sua morte deixou) se Julio suspeitava que a morte o rondava, como havia feito dois anos antes com Carol. Em todo caso, nunca me disse nada. Estava muito magro, com os ossos dos ombros marcando o pulôver, com se quisessem sair da pele. Os pômulos, larguíssimos, tinham se acentuado e a espessa baraba negra marcava-lhe o rosto, ocultando as faces abatidas. Ele se queixava de uma incômoda coceira e às vezes trazia uma garrafa de água mineral e dois copos, e de vez em quando bebia calmamente, enquanto eu fazia uma pergunta ou mudava a fita.
Algumas vezes, ao terminar a jornada de trabalho, sentávamos na sala para tomar uísque. “Acho que merecemos”, dizia Julio e sorria. Nesses momentos não falávamos de literatura, nem de política: falávamos de música, invariavelmente. Julio tinha uma coleção fora do comum de discos e fitas de jazz, de música clássica e tangos, e explicou que gostava de sentar para escutar dois ou três discos à noite, colocando os fones de ouvido para não atrapalhar os vizinhos.
Além disso, tinha descoberto que escutar música com fones de ouvido era “uma coisa”. Em seu livro póstumo Salvo El crepúsculo”, escreveu um capítulo inteiro sobre esse assunto, explicando como a música ouvida com fones parece brotar do interior do cérebro, ao invés de vir de fora: “Árvore interior: o primeiro emaranhado instantâneo de um quarteto de Brahms ou de Lutoslavski, dando-se em toda sua ramagem.”
Apenas uma vez, lá por setembro de 1983, me telefonou para cancelar um encontro, e depois eu soube que ele tinha passado mal. E em outra ocasião interrompemos uma entrevista porque percebi que ele estava muito cansado. Naquele dia, ao nos despedirmos, Julio disse: “Hoje não fomos muito bem, mas não importa, descontaremos na próxima.” Ele se ocupava muito com que tudo ficasse claro e, mais de uma vez, quando citava algum autor ou recordava alguma passagem de um de seus livros, levantava-se para ir buscar o volume em questões e verificar a citação.
(...)
Foto by Pierre Boulat - Paris, 1969.
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