A Droga da Vagina

Por Francisco Perna Filho



O título acima parece pejorativo e, numa primeira leitura, muitos ficarão indignados, dirão que é falta de respeito, que eu não gosto da coisa, que isso tudo não passa de complexo, de machismo e outras coisitas mais.

Não é nada disso, eu só estou reproduzindo uma notícia veiculada num jornal de Goiânia, a história de uma jovem senhora que, para satisfazer o seu marido, que cumpre pena no CEPAIGO, foi pega com 360 gramas de haxixe, muito bem guardados, sabe aonde? Na vagina! Isso mesmo, ou como diriam os antigos, na bainha.

Até o ano de 1700, o termo “vagina” era empregado para falar de tudo o que era “bainha”, “invólucro”, “casca”, e que os soldados, portanto, a usavam a tiracolo, para guardar (enfiar) suas espadas. Só bem mais tarde, na Renascença, é que o termo vagina passou a denominar o tubo ou bainha na qual se encaixava a espada masculina, o pênis. [1]

Pensemos, se sexo vicia, causa dependência, imagine sexo com droga, em altas doses. Droga comprimida, pronta para causar desatinos, droga sob a saia, paliativo para uma droga de vida, entre grades e desilusões. Dessa forma, sexo torna-se perigoso, além do vício, dá cadeia. Daí o título desta crônica:

A Droga da Vagina, para sintetizar o dilema de uma jovem senhora compenetrada, que, com um simples abrir e fechar de pernas, pariu um rio de angústia.

Angústia que se repete em várias partes desse nosso país, quando mulheres desconsiderando o amor-próprio, submissas, exploradas e maltratadas se veem abandonadas de toda sorte: os filhos sucumbiram ao crime, o marido, há muito encarcerado, rumina os poucos momentos de uma liberdade fugidia, porque esperança não há, como pudemos constatar no Fantástico, há algum tempo, o documentário Falcão, os Meninos do Tráfico, a história da história de uma falta de perspectiva, crianças perdidas no tráfico, natimortos, pois o único sonho que lhes resta é o de vir a ser bandido. Matar ou morrer não importa, outros sempre virão. São autômatos de uma guerra urbana, e as suas histórias são escritas com metralhadoras, fuzis AR-15 e pistolas, não aprenderam, como muitos homens da política, a cultuar belas palavras e encantadoras mentiras, com as quais se escondem e, como mágicos, sobrevivem ilesos aos trovões madrugadores.


[1] PEREIRA J., Luiz Costa. Com a Língua de Fora, São Paulo:Angra, 2002,p.53

Pontos de Fuga*




Por Francisco Perna Filho




Algumas leituras nos são fundamentais, por nos situarem no tempo e no espaço e contribuírem para a nossa formação, não permitindo que se faça na realidade o imaginário perverso, e nem o bestial na sensatez. Quantas já nos aliviaram a dor alma e nos livraram do sono letal da ignorância, quando em imensas noites alimentaram as manhãs vindouras e os seguros passos de novas caminhadas.

Sobre elas, como bem o fez Hélio Pólvora no seu livro de ensaio ‘O Espaço Interior‘ (Editora da Universidade do Mar e da Mata, 1999), depois de ensaiar sobre a literatura universal, dedicou um capítulo às suas leituras e as de sua geração: ‘O que a minha geração leu’ – permitindo-nos um passeio saboroso pelo que há de mais diverso e importante na literatura universal: “A minha geração leu muito. Claro, a tevê só chegou quando éramos adultos. Para matar o tempo, que sempre resiste e acaba nos matando, segundo a lição de Machado de Assis, tínhamos apenas a Rádio Nacional, com os seus programas de auditório e dramatização de romances e contos, à base de uma parafernália de efeitos especiais. Sobrava tempo para leituras, devaneios. O livro foi companheiro diário, amigo sem rosto e sobretudo amigo fiel”.

Tal exposição, ao mesmo tempo em que nos fala de um espaço não muito longínquo, também nos dá a dimensão da formação de um dos nossos maiores contistas do Brasil, quando revela as “Leituras ao acaso, sem a ordem cronológica das escolas e dos movimentos literários”, nos mostrando a capacidade que cada indivíduo, pelas suas eleições, tem de autoformar-se, bastando apenas um despertar, para que o mundo se faça inteiro e, irrepreensivelmente, nos dê as respostas que tanto buscamos nesses dias tão atribulados.

A literatura universal está cheia de relatos das mais diversas “experiências iniciáticas” como foi o caso de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, François Mauriac, todos eles, de alguma maneira, trazem lembranças agradáveis das primeiras leituras, quase sempre adquiridas na infância, ao passo que avaliam o quanto elas foram fundamentais para que eles chegassem onde chegaram.

Todos têm uma história para contar, apoiados que estão nas suas experiência vividas e lidas, como é o caso do Escritor e Jornalista Inglês Graham Greene (Pontos de Fuga, Record, 1980), ao relatar magistralmente as suas leituras de mundo: Haiti, Vietnam, Praga, Paraguai, Quênia, África, numa demonstração de que a precisão da vida está em enfrentá-la.

Todos nós temos os nossos pontos de fuga, como no título de Greene, quando incisivamente fixamos os nossos olhos para além do horizonte empobrecido que nos maltrata. Talvez aí esteja a saída para os nossos dramas, sem que precisemos de mártires, como as crianças libanesas, os chorosos massacres da violência urbana, e tantos outros que se perderam pelos Parques do mundo.

Por tudo isso é que eu me pergunto: o que a minha geração leu ou está lendo, nesse exato momento? E os outros? De que motivação precisamos para começar a ler, para ensaiar o primeiro capítulos das nossa experiências? Pode ser que, como muitos dizem, livro no Brasil seja coisa para elite, para ricos. Mas eu me pergunto, e as bibliotecas públicas? E o esforço individual? E a experiência dos nossos grandes escritores que, muitas vezes, por situações várias, tiveram de criar alternativas, lendo o que lhes chegava às mãos, tomando emprestado, fazendo cooperativas, criando salas de leitura.

Para quem quer começar, existem inúmeras maneiras e, talvez, este texto seja um começo. Que tal conhecer Hélio Pólvora, Graham Greene, Sartre, Hugo de Carvalho. Que tal fazer um passeio pela Grande Goiânia e conhecer as suas bibliotecas. Que tal escrever a sua própria história.




* Título tomado de empréstimo a Graham Greene.
Foto by Rosana Carneiro Tavares. Buenos Aires, junho de 2009.

Manuel Cofiño - Conto


Manuel Cofiño - (1936 - 1987) - Escritor cubano, nascido em Havana, situado entre os maiores expoentes do realismo socialista de Cuba, é autor de contos e romances, valendo destacar: 1979 - Um trecho de mar e uma janela (histórias).1975 - Quando o sangue parece fogo (romance). 1971 - A última mulher e a próxima batalha (romance), com este romance recebeu o Prêmio Casa de las Américas. 1969 - Hora de Mudança (romance).



Um Trecho de Mar e uma Janela


Porque sempre há um livro, um sorriso, uma folha levada pelo vento, um trecho de mar e uma janela – sempre haverá uma recompensa. Conheci-a no acampamento Maravilha Vermelha. Comandante de uma brigada. Entusiasta, incansável, e além do mais, o que causava também admiração, era o fato de não ter medo das rãs que abundavam naquele terreno tão barrento.

Diariamente, eu a via subir agilmente na carreta, e aos domingos lavar sua roupa, sob o flamboyant. Durante o temp

o em que ficamos ali, conversamos umas dez ou doze vezes. Eu gostava da sua maneira de dizer as coisas. Pois o amor e as palavras ardem e se apagam, saltam e se procuram como sementes e cinzas. Era isso o que ela queria dizer. E era como se limpasse as palavras, esfregando-as contra a vida.

Os homens foram transferidos e ela ficou ali com suas companheiras. Lembro-me que ao despedir-me, disse: Bem. Fico alegre em saber que você existe.

Poucos meses depois, encontrei-a em frente ao Copelia, imprudentemente parada numa esquina, com o cabelo um tanto sujo e despenteado. Por um momento,

acreditei-me diante de uma visão. É que eu a via como não a vira antes (e não era apenas a maneira de se vestir, mas todo o conjunto de sua pessoa). Ficou nervosa, começou a fazer movimentos cômicos, canhestros.. Levavam ambas as mãos um monte de livros, vestia um pulôver verde e calças de mescla. Seus olhos ressaltavam de uma maneira estranha. Depois, voltamos a nos encontrar por diversas vezes.

Um dia chamei-a, e ela veio. Empurrou a porta deste quarto tristíssimo e nele entrou como uma canção. Não vou contar nossa história. Nem falar de sua voz, do seu olhar, da surpreendente luminosidade de sua presença. Não era bonita mas vibrava como um instrumento vivo, e esmagava a tristeza com carícias: Afugentar, arrancar a tristeza porque ela é uma árvore estéril e frondosa, dizia e me beijava. E dizia também: O amor é uma flor rara, delicada, demora a desabrochar, dura pouco para logo despetalar-se. As outras flores são resistentes, nascem em qualquer lugar, onde bem querem, crescem sozinhas, não necessitam de cuidados. E colocava seus beijos em meus lábios. E a luz, a manhã, o sonho e a verdade logo se punham a mover-se ao mesmo tempo.

Quando chegava, este pequeno quarto se povoava de sons (ela dizia que eram pássaros e flores), mas a verdade é que o ar se punha em seu lugar, entre murmúrios. Tirava a roupa como estivesse dando suas vestes de presente ao vento. Como esquecer a alegria do seu corpo, a flexibilidade de sua cintura, seus seios, seus sumos e sabores!

Era uma criadora de sonhos e de verdades. Descalça, beijava o chão, os azulejos partidos do pátio. Amava as latas enferrujadas onde cresciam gerânios, as paredes descascadas, o ruído da chuva sobre o zinco, o trecho do mar na janela. Falava de pardais e de disparos, de incendiar a tristeza. Ia de um lado para outro, ajeitando e arrumando vasilhas e cascos, seu corpo cantava e suas canções subiam pelas paredes. Gostava do cheiro do alho e da couve-flor; fazia brilhar, quando os lavava, os pratos e os copos. Conseguia fazer tudo sem esforço, como se suas mãos dominassem as necessidades cotidianas. Não fazia perguntas. Tinha respostas sem perguntas e, à vezes, fazia do silêncio sua voz.

Como esquecer sua cabeça inclinada, a queda dos seus cabelos sobre os ombros? Esse algo que tinha e que não se pode explicar, que jamais poderá ser descrito ou ser dito, porque seria como tentar mostrar o coração da chuva. Em seu olhar, a manhã surgia espontaneamente, como água. Água de companhia ao despertar. Em seu corpo, o tempo era diminuto, miúdo, frágil. Dizia: o amor são dois corpos amarrados com corda louca, um martírio-prazer fugaz, intenso, fulminante. Mexer com o amor é como mexer com o fogo, dizer-lhe que não arda. O amor é um problema, ou lhe dão em excesso ou não lhe dão nenhum, e nasce e morre e não somos nem eternos, nem puros. E sufocava meus prostestos com seus lábios. Então, falava sobre a opressão familiar, a incompreensão dos pais, a aurora de uma nova época, a luta para construí-la. E havia nela alguma coisa que sempre estivera comigo.

É preciso esquecer as coisas fracas, os pensamentos melancólicos. A vida é uma música severa, grave. E eu a contemplava falando, vendo-a nua, sentada na cama, com a cabeça apoiada sobre os joelhos e as mãos cruzadas sobre as pernas encolhidas.

Eu nunca estava certo de que ela voltaria no dia seguinte, ou dentro de um mês ou de uma semana. Não gostava que as coisas estancassem. Às vezes passava semanas sem aparecer, ia ao amor total e não ao nosso cantinho, ia para o campo fazer a vida com as mãos, acariciar a terra, os frutos e as folhas..

Voltava ágil e inquietante. As faces ardendo, os cabelos queimados pelo sol e a alegria chispando nos olhos. Cansada de bom cansaço, trazia beijos silvestres e um sorriso amplo e trêmulo. Dizia que o trabalho é a mais bela alegria da vida. E a luz, a manhã, o sonho e a verdade punham-se a se mover ao mesmo tempo.

Mas um dia não amanheci mais em seu olhar. Perdi a gravidade de sua carne entusiasta, a sábia saliva dos seus lábios, as unhas de suas mãos diligentes, o perfumado esplendor dos seus cabelos. Deixou um vazio repleto de lembranças, lições e silêncios. Com qual vestido ela se foi? Não sei, alguma coisa se quebrou, evaporou-se, fez-se sombra e luz ao mesmo tempo.

Aqui sobrevive sua presença, no que ela elegeu para ser lembrada. Neste quarto ficou dela um ligeiro perfume, uma voz no vento, uma canção cantando nas paredes, um ar, o ruído da chuva sobre o zinco, uma folha esquecida, a luz entrando pela janela e o chilrear de um copo limpando a tristeza.

Ensinou-me a ver diferente? Não sei. Mas se algum de vocês a vir, transmita-lhe meus agradecimentos. Porque ela me deixou a recompensa: um livro, um sorriso, quatro paredes repletas de canções, um trecho de mar e uma janela.




In.Contos de Amor Cubanos. Organização Imeldo Ávarez (org.). Trad.: Joel Silveira. Rio de Janeiro: Record.

Imagem: http://aredenarede.com/pt/images/stories/eu-queria-ser-amor-geisa.jpg

Hugo de Carvalho Ramos - Ninho de Periquitos


Hugo de Carvalho Ramos nasceu na Cidade de Goiás, no Largo do Chafariz, a 21 de maio de 1895, e morreu na mesma cidade, no dia 12 de maio de 1921. Considerado um dos grandes nomes do conto brasileiro, escreveu seu único livro Tropas e Boiadas (1917), do qual o conto Ninho de Periquitos faz parte.




Ninho de Periquitos


ABRANDANDO A CANÍCULA PELO VIRAR DA TARDE, Domingos abandonou a rede de embira onde se entretinha arranhando uns respontos na viola, após farta cuia de jacuba de farinha de milho e rapadura que bebera em silêncio, às largas colheradas, e saiu ao terreiro, onde demorou a afiar numa pedra piçarra o corte da foice.

Era pelo Domingo, vésperas quase da colheita. O milharal estendia-se além, na baixada das velhas terras devolutas, amarelecido já pela quebra, que realizara dia antes, e o veranico, que andava duro na quinzena.

Enquanto amolava o ferro, no propósito de ir picar uns galhos de coivara no fundo do plantio para o fogo da cozinha, o Janjão rondava em torno, rebolando na terra, olho aguçado para o trabalho paterno.

-Não se esquecesse, o papá, dos filhotes de periquitos, que ficavam lá no fundo do grotão, entre as macegas espinhosas de “malícia”, num cupim velho do pé da maria-preta. Não esquecesse...

O roceiro andou lá pelos fundos da roça, a colher uns pepinos temporões; foi ao paiol de palha d’arroz, mais uma vez avaliando com a vista se possuía capacidade precisa para a rica colheita do ano; e, tendo ajuntado os gravetos e uns cernes da coivara, amarrava o feixe e ia já a recolher caminho de casa, quando se lembrou do pedido do pequeno.

- Ora, deixassem lá em paz os passarinhos.

Mas aquele dia assentava o Janjão a sua primeira dezena tristonha de anos; e pois, não valia por tão pouco amuá-lo.

O caipira pousou a braçada de lenha encostada à cerca do roçado; passou a perna por cima, e pulando de outro lado, as alpercatas de couro cru a pisar forte o espinharal ressequido que estralejava, entranhou-se pelo grotão-nesses dias sem pinga d’água-galgou a barroca fronteira e endireitou rumo da maria-preta, que abria ao mormaço crepuscular da tarde a galharada esguia, tôda atostada desde a época da queima pelas lufadas de fogo que subiam da malhada.

Ali mesmo, na bifurcação do tronco, assentada sobre a forquilha da árvore, à altura do peito, escancarava a boca negra para o nascente a casa abandonada dos cupins, onde um casal de periquitos fizera ninho essa estação.

O lavrador alçou com cautela a destra calosa, rebuscando lá por dentro os dois borrachos. Mas tirou-a num repente, surpreendido. É que uma picadela incisiva, dolorosa, rasgara-lhe por dois pontos, vivamente, a palma da mão.

E, enquanto olhava admirado, uma cabeça disforme, oblonga, encimada a testa duma cruz, aparecia à aberta do cupinzeiro, fitando-lhe, persistentes, os olhinhos redondos, onde uma chispa má luzia, malignamente...

O matuto sentiu uma frialdade mortuária percorrendo-o ao longo da espinha.

Era uma urutu, a terrível urutu do sertão, para a qual a mezinha doméstica nem a dos campos, possuíam salvação.

Perdido...completamente perdido...

O reptil, mostrando a língua bífida, chispando as pupilas em cólera, a fitá-lo ameaçador, preparava-se para novo ataque ao importuno que viera arrancá-lo da sesta; e o caboclo, voltando a si do estupor, num gesto instintivo, sacou da bainha o largo “jacaré” inseparável, amputando-lhe a cabeça dum golpe certeiro.

Então, sem vacilar, num movimento ainda mais brusco, apoiando a mão molesta à casca carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe, cerce quase à juntura do pulso.

E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi rasgando entre dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo de casa, como um deus selvagem e triunfante apontando da mata companheira, mas assassina, mas perfidamente traiçoeira...


(RAMOS, Hugo de Carvalho. Tropas e Boiadas. Goiânia: Cultura Goiana, 1984,p. 69-70).

Fonte da imagem: http://hmalicia.sites.uol.com.br/viola.jpg

Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary - Última Parte


Com esta parte do texto,chegamos ao final do estudo de Otto Maria Carpeaux sobre Madame Bovary, de Flaubert. Boa Leitura!




(...)




Daí em diante, o declínio é rápido. A cena na catedral de Ruão, entre Emma e Léon, é a peripécia para a catástrofe. Enfim, Emma, no leito de morte, entre as rotineiras frases untuosas do padre e as imbecilidades do livre-pensador Homais - é a paródia da catástrofe de uma tragédia grega.



Seria possível aprofundar a análise durante páginas e páginas, lembrando inúmeras relações escondidas e significações mais ofensivas. Madame Bovaryu é uma obra de arte quase sem par. E poderia ser um incomparável manual de arte de escrever romances. Mas não o tem sido. O modelo é difícil demais. Qualquer um não tem o temperamento de poder enclausurar-se em Croisset, como um monge no deserto, para elaborar obra daquelas. Flaubert tem tido poucos discípulos, entre os quais convém ressaltar os nomes de Henry James e James Joyce. Madame Bovary continua o mais alto exemplo de um romance como obra de arte.


A obra também continua muito lida. É uma pena, certamente, que muitos leitores não dediquem a necessária atenção à leitura. A história de Emma Bovary interessa e interessará sempre o mais perfeito, o mais inexorável "romance de adultério", com atenção especial àquelas poucas páginas que o Tribunal do Sena, em 1857, achou censuráveis. Mas a popularidade da obra também tem provocado oposição. Já houve quem achasse "inútil" o desperdício de tanta estilística para uma história tão vulgar. É que tewmos nós, hoje, com acontecimento quase rotineiros numa aldeia francesa em 1840? Quando do centenário do romance, em 1957, um crítico inglês deu à sua conferência comemorativa na BBC o título desdenhoso: "No Orchids for Mrs. Bovary". Esse equívoco, de considerar como morta a obra, parece-me sobremaneira incompreensivo.


Dos três grandes romancistas franceses do século passado - Balzac, Flaubert, Zola (Stendhal ocupa posição à parte) - nenhum está "antiquado". Os ambiente sociais, políticos, culturais daquela época já desapareceram; a esse respeito, suas obras têm valor de grandes, exaustivos e exatos romances históricos. Mas as consequências continuam e com elas tipos humanos criados por aqueles ambientes. Os homens e as mulheres aida são assim; e assim continuarão por muito tempo. Aqueles romances ainda são obras contemporâneas nossas. Essa dualidade de "histórico" e "contemporâneo" é a mesma que define as maiores obras de arte de todos os tempos, a Divina Comédia, as tragédia de Shakespeare, o romance de Cervantes. Não existem mais Florença medieval nem a Inglaterra elisabetiana nem a Espanha dos Filipes, mas os condenados do Inferno, Hamlet, Macbeth e Lear, Dom Quixote e Sancho Pança são nossos contemporâneos; encontramos seus iguais na rua. A mesma qualidade dual é a de Cousine Bette e Germinal, romances históricos e contemporâneos ao mesmo tempo, mas Madame Bovary é o maior entre eles.




FIM



In.Madame Bovary. Gustave Flaubert. Trad.: Sérgio Duarte. Rio de Janeiro:Ediouro, s/d, p.15-16.
http://www.doctormacro1.info/Images/Jones,%20Jennifer/Annex/NRFPT/Annex%20-%20Jones,%20Jennifer%20(Madame%20Bovary)_NRFPT_01.jpg


Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary


Carpeaux prossegue revelando o estilo de Flaubert, desvelando toda simbologia de Madame Bovary. Amanhã, postarei a última parte deste belo estudo. Boa leitura!





(...)



Exato e colorido, sóbrio e musical, poético e prosaico: os termos são contraditórios. Nessas qualidades contraditórias do estilo de Flaubert refletem-se suas contradições íntimas de anti- romântico de burguês provinciano inimigo mortal da burguesia provinciana. Contradições dessas produzem uma tensão que pode ser, num artista altamente dotado, a fonte das mais altas qualidades artísticas. E Flaubert é, realmente, o maior artista em toda história da ficção em prosa.

Suas maiores vitórias estilísticas (e aquelas que custaram o mais árduo trabalho) são as nuanças. Dizer duas vezes a mesma coisa, com uma única ligeira diferença, que revela ao leitor atento que algo mudou ou vai mudar. Mas essas informações diferenciais não aparecem em seguida. As vezes estão separadas por páginas, por capítulos inteiros. Quem, ao ler a segunda frase, ligeiramente modificada, se lembra da primeira vez em que apareceu quase (mas só quase) idêntica, esse tem leitor tem estabelecido uma relação que escapa à leitura superficial. Dessa maneira constrói Flaubert a articulação da sua história. Para tornar esgura, ou digamos, ferrenha essa articulação, o romancista usa palavras-chave que voltam em determinados momentos, como os "leitmotivs" num drama musical de Wagner, Enfim, esses símbolos linguísticos formam feixes, cenas inteiras que têm valor de símbolos: são as cenas principais do romance.

A primeira página do livro descreve minunciosamente o chapéu ridículo de Charles Bovary, quando aluno do colégio. A página foi, pelos críticos contemporâneos, muito censurada, como "enfadonha" e "inútil". Ela pode ser enfadonha - como o próprio Charles Bovary - mas inútil não é. O ridículo desse chapéu é o símbolo da estupidez de quem o usa e tornar-se-á símbolo da estupidez do ambiente inteiro em que ainda aparecerão muitos outros chapéus ridículos: o boné "grego" que usa o farmacêutico Homais e o chapéu de castor do padre Bournisien e o chapéu"elegante" (mas já démodé) do don-juanesco Rodolphe, quando Emma o encontra no baile do castelo.

Esse baile em La Vaubyessard, oportunidade para Emma sair dos eixos do casamento, está rodeado de acidentes simbólicos. O buquê de casamento, última recordação material dos sonhos pré-maritais de Emma, é queimado: esse está prestes a acabar. No caminho para o castelo, o cãozinho de estimação pula do carro, corre para longe e não é mis visto nunca: Emma perderá o caminho. A ridícula estátua de gesso de um padre, no jardim dos Bovarys, é mutilada pela chuva e cai em pedaços: a perda do pé da estátua relaciona-se com a incompetência profissional de Charles Bovary e sua operação desastrosa no pé do aleijado de Hippolyte; a destruição gradual da estátua de pedra lembra a eliminação dos últimos resíduos da educação religiosa de Emma, agora pronta para a aventura com Rodolphe.

O ponto alto do romance são os "Comices agricoles", a exposição agropecuária com distribuição de prêmios aos criadores de gado. É uma sinfonia de palavras. Nas vozes médias, o murmúrio do diálogo amoroso entre Emma e Rodolphe, na tribuna de espectadores; nas vozes agudas, os estúpidos discursos oficiais do prefeito e de outros dignatários, exaltando o valor da agropecuária para a Pátria; o acompanhamento do baixo é o mugido do gado e osussurro do vento nas árvores - todas essas vozes harmoniosamente combinadas são como um resumo do romance.


(...)

Até amanhã!


In.Madame Bovary. Gustave Flaubert. Trad.: Sérgio Duarte. Rio de Janeiro:Ediouro, s/d, p.16.

SELO/PRÊMIO

Agradeço a Ângela do blog Entremeios http://entremeios-angela.blogspot.com/ o selo/premio Blog de Ouro, vou guardá-lo com carinho e indico dois dos muitos blogs que o merecem:

1-Essa Realidade Inatingível

2-JJLeandro


Regras:


1-Exibir a imagem do selo; 2-Postar o link de quem indicou; 3-Indicar alguns blogs de s/preferência; 4-Publicar as regras.

Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary


Continuamos com a análise crítica de Otto Maria Carpeaux. Aqui ele escreve sobre a noção de estilo. Desvela um Flaubert anti-romântico, avesso à burguesia provinciana, lutando pela palavra "certa" na composição da sua obra de arte: Madame Bovary. Com esta leitura, compreendemos o quão importante foi e é Otto Maria Carpeaux para as nossas Letras.
Boa leitura!



(...)


Declarando-se anti-romântico, Flaubert tomou fatalmente, e talvez contra sua vontade, o partido de tudo que é anti-romântico. Mas no campo anti-romântico também se encontram os pequenos burgueses estreitos e estúpidos, os "filisteus", os Charles Bovary, os Homais etc. Flaubert os odeia igualmente. Mas sua existência de um esteta, inteiramente dedicado ao trabalho de elaboração artística, só é possível à base de um sólido fundamento econômico, de rendas, tipicamente provinciano. Flaubert, embora mais rico, pertence à mesma classe dos Charles Bovary, Homais e Bournisien, à "elite" que vive do trabalho da gente do campo. Sua existência é de "filisteu".
Flaubert não podia deixar de revoltar-se contra essa sua condição humana. Fez viagens a países exóticos. Trouxe de lá enredos de obras tão fantasticamente românticas como Salammbô. Se não observássemos o pendor para o romantismo vito-hugoano em seu sucessor Zola, poderíamos dizer: o anti-romântico Flaubert é o último romântico. E agora se compreende melhor sua confissão: "Emma Bovary, c'est moi."

Com efeito, embora o romancista desprezasse sua personagem, sofreu com ela. Contou-lhe a história, sofrendo com ela. O enredo, de tanta simplicidade, desbordou. Flaubert, grande artista, teve um trabalho imenso para refreá-lo. Por isso, Madame Bovary é mais que a história de Madame Bovary. A diferença reside no estilo.

Ainda existem muitos equívocos em torno do conceito de estilo. Ainda há quem considere o estilo como espécie de embelezamento.

Escreva-se primeiro, em frase simples e compreensível o que se pretende dizer; depois, substituam-se as palavras normais por expressões mais raras, para exibir "riqueza lexicológica", enfim, estende-se a frase até ela fornecer um período, ao qual se confere, por conveniente modificações e inversões, a sonoridade musical.

É evidente que esse conceito de estilo, herança funesta do parnasianismo, não tem nada que ver com literatura séria e que não vale discuti-lo a respeito de Flaubert.

Mas é preciso confessar que Flaubert tem realmente algo de um parnasianismo em prosa. Lutando contra as dificuldades da língua e esforçando-se deseperadamente para dar às suas frases o caráter de algo definitivo. Flaubert é bem o contemporâneo dos poetas parnasianos Leconte de Lisle, Glatigny, Bouillet, este último seu amigo de infância. Mas quando um Lecont de Lisle reescreve pacientemente seus versos para conferir-lhes a famosa "beleza marmórea" e quando Flaubert sofre em noites de insônia ataques epiléticos porque não encontra determinada expressão, não se trata da mesma luta. Flaubert não pretende escrever "belo" ou "bonito", mas "certo". Proíbe, menos em raros casos de indispensabilidade, os adjetivos. Um substantivo que não representa o sentido desejado se não acompanhado de um adjetivo, não é o substantivo certo. Para dar determinado sentido, só pode haver uma determinada palavra, que é preciso descobrir. Flaubert não acredita na existência de sinônimos. Sempre só existe um único "mote juste". Quando todas as palavras de uma frase são os "mots justes" necessários e unicamente admissíveis, então só é preciso colocá-las na ordem certa - o que també é muito difícil - para conseguir a musicalidade da cadência. Assim nasce um estilo que é, ao mesmo tempo, exato e colorido, sóbrio e musical e - se quiserem - poético, mas, no entanto, nada de poesia e só prosa pura. Compreende-se as dificuldades imensAlinhar ao centroas com que Flaubert lutou para escrever uma frase, um parágrafo, uma página, um capítulo, um livro.

(...)


Até amanhã!


In.Madame Bovary. Gustave Flaubert. Trad.: Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p.14-15.
Imagem:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhDE1nVVjq75U1hX9cysRPf5qV47ofxfGD9LUGg0uj2wxxGUcGZv4NIDoYiadJeEZBkku2aSwjgdoVbLV9dmEs7N5S0RGruSfzNM37i6VgZPQW-_s4twU8EAMMqBOXnPYk4HSvhM2M4xOTD/s1600-h/Romântico1.jpg

Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary


Carpeaux, nesta parte do texto, fala do verdadeiro personagem do romance Madame Bovary. Mostra um Flauber anti-romântico e um estudioso da estupidez humana. Vamos à leitura!


(...)

O romance se chama Madame Bovary. O título indica que Emma Bovary é sua "heroína". Mas será realmente assim? A narração começa e termina com o estúpido Charles Bovary; e nela desempenham grande papel o estúpido don-juanismo de Rodolphe e a estúpida paixão de Léon, a estupidez do farisaico padre Bournisien e todo esse pequeno ambiente de província, sem saída para Emma e sem saída para ninguém e pode-se afirmar: o verdadeiro personagem do romance é a Estupidez humana.

Flaubert foi grande estudioso da estupidez humana. Colecionou assiduamente burrices que leu em livros e jornais. Seu último romance, Bouvard et Pécuchet, estava destinado a ser uma espécie de epopéia da estupidez. E o paraíso da estupidez é, para Flaubert, aquele ambiente que ele conhecia tão bem e em que ele passara a vida toda: a província.

A frança é o país mais centralizado do mundo. Tudo que tem valor ou interesse está concentrado em Paris. Para a província só ficam os não-valores e os sonhos decepcionados, os ressentimentos e as paixões recalcadas. Por isso mesmo é a província o ambiente preferido do romance francês, como um laboratório em que se podem realizar experiências psicológicas. Na província, se passa a maior parte dos romances de Balzac; ainda será provinciano o ambiente de La Nausée, de Sartre - Flaubert reduziu a província à estupidez dela, incapacidade intelectual, emocional e insensibilidade moral. Essa estupidez conforme Flaubert, pode ter muitas formas, e uma dessas formas é o pseudo-romantismo de Emma, "o poder da pessoa para emprestar a si mesma uma penalidade fictícia e a desempenhar um papel que não se coaduna com sua verdadeira natureza". Seria esta a definição do falso romantismo? Não. Para Flaubert, que fora romântico na mocidade e que chegou a odiar o romantismo, aquilo era todo o romantismo. E daí podemos tirar duas conclusões de maior importância para a compreensão da obra:

1) Flaubert pertence àquela grande corrente do pensamento europeu que, por volta de 1850, abandonou decepcionada o romantismo para encarar a realidade com os olhos desiludidos de uma nova sobriedade que poderia ser chamada inexatamente e sem pensar em Auguste Comte: "positivista". É a mentalidade de Flaubert e a de Thackeray, Gontcharov, Fontane e outros grandes escritores da época.

2)O anti-romantismo dessa mentalidade mandou excluir dos romances até os últimos restos da mentalidade romântica. Flaubert, sucessor imediato de Balzac, desprezou os enredos muitas vezes violentamente melodramáticos do seu mestre. Reduziu o romance aos contornos mais simples e menos dramáticos da realidade observada. Nesse sentido, o anti-romantico Flaubert é o precursor direto do naturalista Zola (mas iremos ouvir, dentro em pouco, que é necessário apor uma correção restritiva a essas afirmações).

(...)


Até amanhã!

In.Madame Bovary.Gustave Flaubert.Trad.:Sérgio Duarte.Rio de Janeiro:Ediouro, s/d,p.14.

Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary


Continuamos com o ensaio de Carpeaux, cada vez mais envolvidos nesta tessitura tão bem feita, onde se fundem arte e realidade. Boa leitura!




(...)


Encontrou –se, muito mais tarde, entre os papéis de Flaubert, um caderno de notas intitulado Madame Ludovica, que faz pensar em outras fontes. Modelo de Emma Bovary teria sido Louise d’Arcet, que se casou com James Pradier, escultor famoso nos anos 1840, autor das estátuas das deusas da vitória em torno do túmulo de Napoleão. Louise traiu o marido. Teve inúmeros amantes. Acabou separada do marido e na miséria. – é difícil aceitar essa história como fonte do romance. Os adeptos dessa teoria têm de afirmar que Flaubert condensou as muitas aventuras de Louise em apenas duas. Pradier foi homem fraco, mas não tinha, contudo, a menor semelhança com Charles Bovary. E Louise Pradier não acabou suicidando-se. Preferimos a hipótese de o caderno intitulado Madame Ludovica ter sido o esboço de um outro romance, que nunca foi escrito, e, em vez do qual Flaubert escreveu, baseando-se em elementos parcialmente diferentes, Madame Bovary. Não é impossível descobrir no caráter de Emma traços de duas amigas de Flaubert: Louise Colet e Edme de Genettes. Mas a verdade é que esse pseudo-romantismo, alimentado por falsos princípios de educação feminina, é mesmo fenômeno permanente em certo tipo de mulheres. Nem todos os homens são Dom Quixotes, Hamlets ou Faustos, mas sempre existem representantes desses protótipos. Nem todas as mulheres se parecem com Emma Bovary mas as Emmas existem sempre; e, mesmo que nunca houvesse existido na Normandia de 1840 uma mulher que experimentasse o destino de Emma Bovary – então ela, personagem de ficção – é no entanto mais verdadeira que seus hipotéticos modelos que viviam realmente. Emma Bovary “c’est La réalité”.

Mas por que insiste tanto a posteridade em procurar o modelo? Por que se supõe com tanta teimosia que a história de Emma Bovary se teria passado na realidade? O motivo é a extraordinária clareza e “directness” com que Flaubert contou sua história: uma história tão simples que parece mesmo tirada da realidade mais comum e mais vulgar e que parece mesmo realidade.

Charles Bovary – a história começa com sua entrada na escola e com a hilaridade que provocou nos outros alunos seu chapéu ridículo – é rapaz estúpido, insensível de grande inabilidade; também incompetente e realizará operações desatrosas como no pé aleijado do pobre Hippolyte. Emma, por sua vez, é uma mocinha sonhadora, romântica, acreditando no que suas leituras medíocres lhe contam sobre felicidade pelo amor. Toda enganada, Emma casa com Chales Bovary, para fugir da estreiteza da casa paterna. A decepção é inevitável. Um baile no castelo do vizinho aristocrático reaviva os sonhos românticos, a que tão pouco corresponde o marido. Frontalmente, cai Emma na aventura adulterosa com Rodolphe, espécie de Don Juan rural, que a abandonará em breve. Agora, as paixões de Emma estão despertas. O jovem Léon, empregado de um advogado, é sua próxima vítima. Ela perde totalmente o equilíbrio. Toma emprestado dinheiro, mais do que poderá jamais devolver. Desespero. Suicídio. Depois da morte, Charles Bovary descobre a verdade. Fica pertubado sem saber o que pensar. E é só. Eis tudo. Uma história triste e, em parte, sórdida. Mas, atenção! Essa história não é simples como parece.

(...)

Até Amanhã!



In. Madame Bovary.Gustave Flaubert.Trad.:Sérgio Duarte. Ediouro, s/d, p.13-14.

Imagem:http://www.info-antike.de/ovid-amores.jpg

Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary


Nesta passagem do texto, Carpeaux faz alguns questionamentos a respeito da filiação de Madame Bovary: realista ou naturalista? Empreende um passeio pelos lugares frequentados por Flaubert e desvela que ele (Flaubert) se valeu dos princípios da "ficção experimental", estabelecidos pelos irmãos Goncourt, para compor sua ficção.



"Emma Bovary c’est moi"


(...)



Em qualquer história da literatura francesa se pode ler que Madame Bovary “é o primeiro romance realista”, pela observação meticulosa e representação impossível da realidade. Essa observação talvez seja injusta em relação a Balzac; não teria sido realista? O fato de que Flaubert eliminou os elementos românticos da arte balzaquiana não é decisivo, pois não eliminou a todos. Por outro lado, os contemporâneos sempre consideravam Flaubert como naturalista, como precursor imediato de Zola. Conforme os critérios de Lukács, Madame Bovary não poderia ser classificado como romance naturalista (e muito menos as outras obras de Flaubert). Mas é inegável que o autor adotara os princípios da “ficção experimental”, estabelecidos pelos irmãos Goncourt, isto é: realizando por meios de ficção uma experiência com fatos encontrados na realidade. Também é inegável que Flaubert usou primeiro o método que mais tarde seria o de Zola: baseando sua ficção em documentação autêntica e usando notas de fatos observados. Flaubert não teria propriamente inventado o enredo nem os personagens. É, portanto, lícito perguntar pelas fontes de Madame Bovary.

O próprio Flaubert respondeu: Emma Bovary c’est moi.” Essa resposta é bastante estranha. Está em contradição flagrante com o propósito proclamado realista de excluir da sua obra todos os elementos pessoais; está em contradição com o antiromantismo de Flaubert, que exclui a intenção autobiográfica. Mas Flaubert certamente não quis dizer que seu próprio destino poderia ter sido o de sua triste heroína (a diferença de sexos já proíbe tomar ao pé da letra a identificação). Só quis dizer que ele encontrara sua própria mentalidade de romântico fracassado em personagem e ambiente que ele conhecia, que lhe eram familiares: suas fontes. Mas quais são essas fonte?

Em vida de Flaubert já correram boatos em Ruão: Emma Bovary teria sido esta ou aquela senhora, nesta ou naquela das pequenas aldeias ou cidadezinhas em torno de Ruão. Mas, só depois da morte do escritor, publicou o jornalista Georges Duboch, no “Journal de Rouen”, em novembro de 1890, a história toda.

Yonville, a aldeia na qual se passa o enredo do romance, podia ser identificada como Ry, aldeia normanda que Flaubert conhecia bem; entre seus papéis encontrou-se mesmo um mapa de Ry, desenhado por ele próprio. Em Ry viveu, por volta de 1840, a bela e sonhadora Delphine Conturier, que casou com o estúpido e vulgar médico Delamare, assim como no romance a bela e sonhadora Emma casa com o estúpido e vulgar médico Charles Bovary. Delphine Delamare manteve relações eróticas com o fazendeiro Campion, muito parecido com Rodolphe, o primeiro amante de Emma. Em Ry, viveu nas mesma época o farmacêutico Jouenne, quase irmão gêmeo do farmacêutico Homais no romance. Enfim, Delphine encontrou em 1848 o mesmo fim de Emma: o suicídio. Tudo exato. As explicações de Duboch foram geralmente aceitas. Em Ry, desenvolveu-se verdadeira indústria de turismo: os lugares em que se teria passado a vida de Emma Bovary foram mostrados mediante ingresso pago. Venderam-se fotografias apócrifas de Delphine Delamare. Mas tudo isso foi. Pois Youville não é somente parecida com Ry, mas com dezenas de outras aldeias normandas; e as cenas mais importantes e mais características da vida de Emma, antes do suicídio, não foram vividas por Delphine. Teria Flaubert traído o método por ele próprio escolhido, ao ponto de inventá-los livremente?


In. Madame Bovary.Gustave Flaubert.Trad.:Sérgio Duarte. Ediouro, s/d, p.12-13.

Imagem: http://www.imgartists.com/resources/artists/madame_bovary.jpg

Otto Maria Carpeaux


Nesta semana, vamos conhecer um belo ensaio do escritor austríaco Otto Maria Carpeaux sobre a genial obra de Gustave Flaubert: Madame Bovary. Mas antes de passarmos propriamente para leitura do ensaio, que publicaremos em algumas edições, devido à sua extensão, vamos conhecer um pouco do homem Carpeaux.


Otto Maria Carpeaux (Otto Karpfen, de nascimento), filho de pai judeu e mãe católica, nasceu em Viena (Áustria), em 9 de Março de 1900, onde cursou o ginasial. Ingressou na faculdade de direito, por sugestão familiar, abandonando-a um ano depois. Estudou filosofia (doutorou-se em 1925), matemática (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada(em Nápoles) e política (em Berlim); além de dedicar-se à música. Em 1930 casou-se com Helena Carpeaux. Dedica-se intensamente à literatura e ao jornalismo político. Converte-se à religião católica e torna-se homem de confiança de dois primeiros-ministros em Berlim, Engelbert Dollfuss e Kurt Schuschnigg, os últimos primeiro-ministros antes do Reich Alemão respectivamente. Com a queda deste último, foi obrigado a seguir para o exílio. Em princípios de 1938 foge com a mulher para Antuérpia (Bélgica), onde ainda trabalha como jornalista na Gaset Van Antwerpen, maior jornal belga de língua holandesa. Diante da escalada nazista, Carpeaux ainda sente-se inseguro e foge com a mulher, em fins de 1939, para o Brasil. Aqui trabalha com jornalista, crítico literário e crítico musical, além de desenvolver inúmeras atividades intelectuais. Em 3 de fevereiro de 1978, sexta-feira de Carnaval, morre no Rio de Janeiro, de ataque cardíaco.



Madame Bovary

Por Otto Maria Carpeaux


Dicionários modernos da língua portuguesa definem como “bovarismo” o pendor de certos espíritos românticos para emprestarem a si mesmos uma personalidade fictícia e a desempenharem um papel que não se coaduna com a sua verdadeira natureza. O termo significa, portanto, a intervenção desastrosa de idéias pseudo-românticas na vida real: destino próprio de pessoas educadas sob os auspícios de falsos ideais e, depois da decepção inevitável, roídos pelos ressentimentos. O pensador francês Jules Gautier acreditava descobrir o mesmo “bovarismo” em grupos inteiros da sociedade, como a classe média empobrecida, que se esforça para viver conforme critérios aristocráticos; e até em nações (pensava ele nos latino-americanos de então, que perderam a autenticidade por julgarem-se afrancesados). Diz-se “bovarismo” assim como se diz “quixotismo”, “hamletismo”, “donjuanismo”. Trata-se de um dos grandes tipos da natureza humana e seu protótipo é Emma Bovary, a triste heroína do romance de Gustave Flaubert.

Madame Bovary ocupa, por vários motivos, posição central na história do gênero romance. Durante séculos esse gênero passara por ser leitura indecente e corruptora, proibida às mocinhas. O processo de reabilitação foi vagaroso, interrompido por recidivas e uma delas foi, em 1857, o processo movido contra o autor de Madame Bovary perante a Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena. Flaubert foi absolvido pelos juízes, mas não pelos críticos puritanos, que não lhe perdoaram o tratamento cru do tema: adultério. Mesmo mais tarde houve quem opusesse à “indecência” de Madame Bovary a visão “mais sublime” de outro e quase contemporâneo romance de adultério: Anna Karenina. É que os russos (e os ingleses, e os alemães, etc.) são moralistas, mas, em francês, a palavra “moralista” tem outro sentido: significa um homem que observa insubornavelmente as fraquezas humanas. Flaubert foi um “moralista” assim: um observador insubornável da realidade. Por isso a história literária o define como realista, ocupando a posição intermediária entre Balzac e Zola.

Ao grande crítico marxista George Lukács devemos uma distinção engenhosa entre o realismo de Balzac e o naturalismo de Zola. Mas nenhuma das duas definições é aplicável a Flaubert. Não é naturalista nem é propriamente realista. É, unicamente artista. Madame Bovary é, simplesmente, uma obra de arte. É a primeira obra de arte, conscientemente criada, na história desse gênero sem regras e sem arte que é o gênero Romance.

Gustave Flaubert nasceu em 1821 em Ruão, filho de um médico, de família abastada e enraizada na vida de província. Cresceu, dedicado a leituras românticas e sonhos românticos, em companhia dos amigos de infância, Louis Bouillet, mais tarde poeta parnasiano, e Alfred Le Poittevin, cuja irmã Laure, foi seu primeiro amor (ela casará com Gustave de Maupassant e será mãe do grande contista). Como estudante em Paris. Flaubert é romântico; mas seu primeiro romance, Novembre (que ele nunca publicou), já trata de amores carnais e desilusões amorosas. Viagens à Córsega, Itália, Egito. Em 1856, Madame Bovary. Processo por “publicações de escritores obscenos”. Flaubert fixa residência em Croisset, perto de Ruão, vivendo de rendas. Correspondência com as amigas Louise Colet e Georges Sand, a célebre romancista. Publica, sucessivamente, as obras-primas: Salammbô, L’Éducation Sentimentale, La Tentation de St. Antoine. Amizade com os irmãos Goncourt, Zola, Turguniev. Papel importante na formação literária do jovem Maupassant. Pela falência do marido de sua sobrinha, sérias dificuldades financeiras. Flaubert morreu a 8 de maio de 1880.

Além dos romances já mencionados – dos quais hoje em dia, sobretudo L’Éducation Sentimentale é considerado como obra-prima, escreveu Flaubert Trois Contes, três contos magistrais, entre o quais se prefere Um Coeur Simple. O romance Bouvard et Pécuchet ficou incompleto. Mas, em primeira linha, é Flaubert o autor de Madame Bovary.


(...)


Até amanhã!




In.Madame Bovary. Gustave Flaubert. Trad.: Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Ediouro. s/dp.11-12

Fonte da biografia de Otto Maria Carpeau: http://pt.wikipedia.org/wiki/Otto_Maria_Carpeaux

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