A vingança
Ele andava lentamente à minha frente. Aproximei-me.
Emparelhamo-nos. Sorri:
- Bom dia.
- Bom dia.
O bom dia dele foi de susto e curiosidade. Voltei a sorrir:
- O senhor não me conhece. Mas devo conhecê-lo.
- De onde?
- Depois lhe digo.
Chuvinha miúda e nós dois sem guarda-chuva. Poucas pessoas passavam por nós. A igreja ali em frente, a banca de jornais e revistas tampando-me um pouco a visão da fachada. Meu desprezo por aquele homem ampliava-se:
- Vai comprar jornais ou vai rezar?
- Vou rezar.
- Acompanho.
- Mas quem é você? Não estou reconhecendo.
Os olhos dele eram apertados, como de míope, mas não usava óculos. A calvície luzidia, onde rebrilhavam pingos de chuva.
- Não importa agora. Não vai rezar? Eu o acompanho. Rezar é bom. Alivia. Não é mesmo?
Olhava-me com rapidez. Apressou o passo. Apressei o meu. E emparelhados chegamos à igreja. Dei-lhe passagem, que a porta era estreita:
- Faça o favor.
Ele se ajoelhou próximo ao altar, olhos meio fechados fitos na cruz enorme, a cabeça de Cristo bambeada para a esquerda. Procurava afastar-se de mim, visivelmente incomodado, e eu pregado nele. As suas mãos, cruzadas, tremiam, e os lábios caídos balbuciavam palavras em direção à cruz.
A raiva não me cessou. Cresceu. Não me contive, cochichei-lhe ao ouvido:
- Você me paga, canalha. Vai ver.
Pela primeira vez abriu desmesuradamente os olhos, pestanejando muito, e eu me fui, o eco dos meus passos reboando na nave quase deserta, duas-três cabeças dispersas e contritas.
Na rua, sol nos olhos, que a chuva se fôra, desorientei-me um pouco. Depois, suando muito, andei de cá para lá, de lá para cá, concentrando-me, inutilmente, para descobrir quem seria aquele homem, a fim de vingar-me dele.
Desalentado, voltei para casa.
Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Mãos
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