Ouvindo a própria voz



Por Francisco Perna Filho












Tudo foi muito estranho e engraçado, lembro-me bem, eu estava na rodoviária de Miracema do Norte, não posso precisar o ano, década de 70, quando vi pela primeira vez um gravador e ouvi a gravação que dele saía. Fiquei encantado. Como seria possível aquilo?

Cheguei em casa deslumbrado com o novo conhecimento, com a nova tecnologia. Meses depois, meu Pai foi a Goiânia e nos presenteou com um belo gravador, último tipo, genuinamente japonês, uma maravilha. Passamos a gravar todos os sons que encontrávamos, que fazíamos acontecer, desde batidas em latas, até o som da descarga do banheiro, tudo com muito entusiasmo e graça.

Passamos a gravar as nossas conversas, as conversas dos vizinhos. Brincávamos de espiões, cantávamos e nos dizíamos cantores, artistas. Enquanto isso, uma montoeira de fitas K-7 ia se acumulando nas estantes da casa, compondo a nossa coleção. O certo é que éramos puro entusiasmo, o mesmo que tínhamos pelos inúmeros livros da minha infância.

São agradáveis lembranças, mas, o mais agradável, o inusitado, o puro estranhamento, deu-se na fazenda Caridade, do meu avô materno, quando, à noite, nas reuniões que fazíamos, sob a luz dos candeeiros e lamparinas, no pátio da casa grande, o meu pai, Francisco Nolêto Perna; meus avós, vovô Antônio Nolêto e vovó Euzébia Nolêto; minha mãe, Adalgisa Nolêto; meus irmãos; meus amigos que levávamos; os vaqueiros; e os trabalhadores da fazenda estávamos conversando e, depois de muita conversa, após termos ouvido o pífaro de taboca do seo Tonhão, meu pai pediu silêncio. Todos silenciaram, e ele, meu pai, apertou o PLAY do gravador para ouvirmos as nossas falas, as conversas ali travadas, o som ancestral do seo Tonhão. Foi o êxtase total, uma cena indescritível, se considerarmos o rosto, o deslumbramento de cada um. Deus ali se manifestara, o mito, a cosmogonia, os espíritos ancestrais orquestravam aquele evento.

Talvez, se fosse hoje, nada de extraordinário aconteceria, ainda mais por se tratar de ouvir a própria voz, uma simples gravação não causaria tanto entusiasmo, numa época de instantaneidade, de tecnologias que capturam a voz, a imagem, os movimentos e, para muitos, a aura de cada um.

As lembranças da infância são para sempre, não se apagam, boas ou ruins, estarão sempre presentes, como podemos ver no filme O Caçador de Pipas (The Kite Runner), Direção de Marc Forster, baseado no romance do afegão Khaled Hosseini (2003), que conta a história de Amir (Khalid Abdalla), um garoto Pashtun rico de Wazir Akbar Khan, distrito de Cabul, que é atormentado pela culpa de ter traído seu amigo de infância, Hassan, filho do empregado do seu pai, Hazara Uma história comovente, de perdas encontros e desencontros.

Falo do filme, porque foi ele que me fez reviver este fato do gravador, uma história não de tristeza, mas de alegria, de boas lembranças, quando silenciávamos para ouvir a nossa voz, amparados pela luz das lamparinas, dos candeeiros e, muitas vezes, da lua cheia que nos acompanhava. Uma lembrança gostosa de descoberta e aprendizado.



Imagem: Vincent's Room, Arles, 1888 - Vincent Van Gogh, Pintor Holandês (Pós-Impressionismo) -1853-1890 - (Van Gogh Museum, Amsterdam, Netherlands).

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