Rosana Carneiro Tavares* |
Uma Janela para a Lua*
Uma reforma prevê sempre a existência de algo que necessita ser modificado, algo que existe e que, por um tempo, teve o seu papel ou a sua verdade, mas que agora é dispensável e exige uma readequação às novas concepções existentes. A atenção à saúde mental vem passando por um período de reforma, no sentido de reestruturar a atenção à saúde da pessoa com sofrimento psíquico, buscando superar a dicotomia cartesiana de sujeito – objeto, em que a psiquiatria surgiu, estabeleceu-se e permaneceu.
Substituir um modelo de atenção que possui uma
longa história por um outro que preconiza mudanças tão profundas, desde o
aparato legal até mudanças culturais na sociedade, como é o caso da saúde
mental, é um processo que demanda construção coletiva, em um movimento social,
que aos poucos vai se ampliando na busca de mais aliados. E é nessa modificação
gradativa que vem se estruturando a reforma psiquiátrica, em alguns países com
mais avanços e em outros com menos. No Brasil é da mesma forma, alguns estados
evoluíram mais e outros ainda estão em fase inicial. Pois é óbvio que diante da
exigência de mudança de toda uma lógica pré-estabelecida e de toda a concepção
social a respeito da loucura, faz-se necessário desconstruir a psiquiatria
tradicional e o saber médico, para construir uma nova concepção, pautada na
superação da institucionalização e, conseqüentemente, estabelecer novas
práticas técnico-assistenciais de respeito aos direitos e cidadania.
A psiquiatria tradicional embasa-se em um
conceitual teórico biológico, cujo objeto de foco é a doença mental e cujos
instrumentos de cura são os medicamentos. Desde o surgimento da psiquiatria e
todos os avanços dela decorrentes o conceito biologicista da doença mental veio
sendo reforçado. Até porque, com o avanço da terapia medicamentosa, foi
possível “conter” a doença e até possibilitar a “adaptação” do indivíduo na
sociedade. Porém, hoje se percebe que essa prática só tem contribuído para a
cronificação e para a dependência medicamentosa. Impedindo, assim, cada vez
mais, o sujeito portador de sofrimento psíquico de “existir” no mundo, utilizando
a concepção existencial fenomenológica de Heidegger, que afirma que o que
diferencia a natureza da existência humana de outras formas biológicas de vida
é o fato de quesomente o homem tem existência, somente o homem entra no
devir, somente o homem se situa, isto é estabelece distâncias espaciais e toma
resoluções, somente o homem pode ser ansioso e alienado e somente o homem pode
propor a pergunta “Quem sou eu?”.
O modelo psicossocial concebe a loucura como um
fenômeno social, e, muito mais do que se preocupar com a doença mental,
volta-se para a saúde mental e propõe uma relação com sujeitos com sofrimento
psíquico, trabalhando em conjunto com esse sujeito e seu grupo social para o
exercício de sua cidadania. A lógica não pode ser a de um ser passivo, sem
poder de voz e compreensão de sua inserção no meio social, que se submete aos
cuidados de quem supostamente sabe tudo sobre sua “doença”. Deve ser, ao
contrário, uma lógica de interação, onde o sujeito e o seu grupo social
participam de seu processo de reintegração na sociedade.
O filme Uma janela para a lua mostra
com bastante clareza o quanto a concepção que temos da loucura interfere
pontualmente na nossa relação com as pessoas, podendo nos impedir, ou permitir,
uma relação com sujeitos ao invés de com doentes mentais. Salvatore, talvez
pelo amor ao filho, por uma disponibilidade interna de desprezar os conceitos
pré-estabelecidos; ou talvez por excesso de simplicidade, soube relacionar-se
com a loucura livre de pré-conceitos, respeitando o outro, compreendendo os
sujeitos e incluindo-se nesse processo. Salvatore, com toda a sua simplicidade,
mostra-nos o quanto a sua concepção da doença mental pode auxiliar e contribuir
com os profissionais para a reintegração social do seu filho.
O
filme evidencia que a reforma psiquiátrica deve ser, além de uma modificação
técnico-assistencial e do aparato legal, uma reforma de pessoas. Quando Lorenzo
contratou Salvatore para reformar sua casa mal sabia ele que aquele senhor
(Salvatore) iria reformar a sua vida. Pois Lorenzo, como a maior parte da
sociedade, concebia a loucura como uma doença de grande periculosidade, de
forma que os loucos, desprovidos de juízo, não poderiam ser capazes de
sentimento ou de qualquer percepção adequada do mundo. Lorenzo viveu inúmeros
conflitos ao relacionar-se com aqueles loucos daquela instituição, fez várias
críticas à forma como eles viviam e foi incisivo com o profissional que cuidava
da instituição, não imaginava que aquelas pessoas pudessem ter sentimentos e
desejos. Mas Salvatore lhe ajudou a descobrir ali gente que vive, que sofre,
que tem alegria, que tem tristezas e que tem, inclusive, desejos.
Segundo o próprio relato de Lorenzo no filme, ele
descobriu que sacrificou tempo, amizades e amor, pois no dia que seu pai morreu
ele queria ir à escola e não o deixaram, nesse dia ele decidiu como iria agir
para sempre e como iria fazer para evitar sentir a falta dele. Lorenzo percebeu
que sacrificou a própria vida e a possibilidade de uma relação genuína com as
pessoas, em nome de estratégias para evitar a própria dor.
Essa seria a principal mudança que deveria
estabelecer-se para a efetivação da reforma psiquiátrica, a percepção da
implicação da sociedade no processo de loucura e a relação com sujeitos sem a
dicotomia de “loucos” e “sãos”, onde todos (trabalhadores, usuário, familiares,
associações) envolvem-se em um processo de respeito às diferenças e inclusão
daqueles que estão às margens de uma sociedade absorvida pelo modo de produção
capitalista e, portanto, bastante excludente. Só assim poderemos ter a certeza
de que não incorreremos no erro de repetir antigas práticas, apenas sob nova
roupagem.
Rosana Carneiro Tavares é Doutora em Psicologia(PUCGoiás); Mestre em
Psicologia (UCG); Especialista em Saúde Mental (UCG); Especialista em Políticas
Públicas (UFG); Bacharel e Licenciada em Psicologia (UCG). Professora da CEULP ULBRA - Palmas, da PUC Goiás e Técnica da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia. Co-Autora do Livro Olhares:Experiência
da CAPS. Goiânia: Kelps, 2009.
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