Eu jamais imaginara a dor da alma
Quando eu era pequeno, ficava horas deitado no colo da “Mamãeninha” a ouvir o barulho sonolento e longínquo dos barcos a vapor, que cruzavam o Tocantins, precisamente em Miracema do Norte (Tocantins, até então, era só o rio), e ficava ali, na mais pura inocência, contemplando as estrelas, quando ela me fazia cafuné e me contava histórias, que iriam me marcar para sempre.
Quantas e quantas vezes, ali, naquela meia-lua de cimento, em que eu me sentava e deitava no seu colo macio (ela sentada em tamborete) eu pude vê-la chorar, sem entender o que se passava, o que de fato ela estava sentindo. Eu era muito jovem para compreender o universo, e chorar, para mim, era apenas algo exterior, eu jamais imaginara a dor da alma.
O tempo passou, eu cresci, ela se foi. A partir daí eu comecei a materializar a dor, o sofrimento, a ausência e a solidão, já não era mais o mesmo, apesar dos vinte e poucos anos, ainda cheio de muitos sonhos e ilusões. Continuei a contemplar o céu, não com a mesma frequência; não com a mesma inocência, por que eu já conhecia a solidão, já sabia dos desencontros, e eu me tinha demasiadamente humano.
Os barcos passaram a ser eternos, ficaram na minha memória, e sempre que alguém querido se vai, eles deslizam suavemente pelos meus olhos. Com os barcos eu aprendi sobre chegadas e partidas, eu aprendi a contemplar lonjuras e a chorar abandonos e nunca mais me saiu da alma o peso e a dor do mundo, eu passei a contabilizar os dias e os becos, os murmúrios e solidões, talvez aí o poeta tenha surgido.
Com os barcos eu conheci mundos, revi o colo de minha mamãeninha, encontrei pessoas, que me foram preciosas, mas que se foram tão rapidamente, sem que eu pudesse ao menos agradecer pela amizade. Pessoas que surgem nas nossas vidas, dividem conosco a sua felicidade, acostumam-nos com as suas presenças e depois, leves demais, vão–se embora, nos deixando com uma dor tão grande, não nos dando tempo para nada.
Não sabemos ao certo o que nos aguarda, que rumo tomaremos, quem encontraremos no caminho, como estaremos amanha. Apenas caminhamos, para bem lembrar Fernando Pessoa: navegar é preciso, viver não é preciso, pois viver é de uma imprecisão danada, já que nunca saberemos que dor nos aguarda. Ela sempre nos surpreende, quando alguém parte, quando alguém sofre, quando alguém clama por justiça.
Talvez os barcos tenham muito a nos ensinar, embora fabricados por nós, comportam a dor da madeira cortada, da solidão de seus portos de origem, de suportar tanta carga, mas estão sempre a deslizar pelos rios da sabedoria. Quem sabe eles nos digam muito de nós, por que, apesar de toda inconsciência, nos ajudam na travessia dessa nossa longa vida.
Foto by Francisco Perna Filho - Rio Tocantins: Lageado/Miracema do Tocantins
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ResponderExcluirComentário pungente, amigo, de quem conhecendo o rio, os barcos e as dores, sabe o que diz.
ResponderExcluirA vida é mais ou menos assim, como na poesia:
O meu barco
Há um barco lá no porto
Que espera a minha hora.
Não tenho pressa nem ele
De seguir e ir embora.
Faça sol ou faça chuva
Ele espera paciente
Sabe que um dia partirei
Como faz toda a gente.
É então que vou embora
Pra nunca mais voltar
Pois com razão disse o poeta
Viver não é preciso,
É preciso navegar.
jjLeandro