Maria Helena R.R. de Sousa - Crônica

 

Navio perdendo a rota

 

O MEC condenou a língua à morte. Por Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa
Um poema
que não se entende
é digno de nota
a dignidade suprema
de um navio
perdendo a rota (Paulo Leminski)


Sempre achei uma tremenda tolice a tal da leitura dinâmica. Não dá, nem poderia dar certo porque a nossa língua não é das que se entregam com facilidade. Tem que ser cativada, seduzida, acarinhada, lida e relida, não pode ser vista assim de esguelha, da ponta esquerda da primeira linha até a ponta direita da última linha.
Mas não é que o MEC adotou esse método para corrigir as redações do Enem? A matéria que a revista Veja, edição de 27 de março, traz em sua página 68, “O Enem pode virar piada”, conta que cada avaliador receberia 2,35 reais por redação analisada.

Não bastasse esse apelo para o malfeito, os analistas receberam a seguinte orientação via internet: “Extra-oficialmente, recomenda-se que sejam flexíveis e tolerantes com erros. Com uma peneira muito severa, quase nenhum estudante sobreviveria”.

Está liquidada a fatura. Morte à língua portuguesa.A não ser que haja uma reação dura da Academia e da sociedade, corremos esse risco.

Somos um país muito doido. Foi assinado um novo acordo ortográfico – um que até agora, ao contrário de outros, como diria o Chacrinha, veio para confundir. Eu gostava dos acentos de diferenciação, dava certo conforto ler pára e saber que era para parar e não destinado a alguém ou alguma coisa ou lugar.

Papai morreu aos 92 anos, em 1992, escrevendo hontem com h, como aprendeu em criança. Dizia que era por um sentido de justiça: se hoje não perdera o h, por que hontem perderia? Não se importara com a perda do ph, mas com o h do ontem…

Dizem que o acordo nasceu da idéia de unificar a nossa escrita nos diversos países de língua portuguesa, para facilitar a leitura e seu aprendizado.

Procuro me adaptar para quando for obrigatório. Já acabei com o trema. Procuro seguir as regras do hífen. Tento acertar com o para sem acento algum… mas não tenho tido muito sucesso. Ainda bem que não é obrigatório, ainda. Resistem bravamente os portugueses.

Meu filho tem um exemplar do Aurélio que recebeu do pai ao completar 11 anos, com a seguinte dedicatória: “O valor de um homem está no seu saber e no seu espírito de solidariedade. Teu pai, Alfredo”. Homem culto, muito inteligente, português de Vilarinho, Vila do Conde, apaixonado por sua língua, imagino o que diria das redações do Enem se ainda estivesse entre nós. Que ia cuspir marimbondos, ia.

Pois eu, além de cuspir os tais marimbondos, fico é ofendida. Se as crianças francesas entra século, sai século, escrevem philosophie, pharmacie, photographe, etc., sem que sua vida intelectual perca em qualidade, por que aqui tivemos que dispensar o ph da pharmácia?

Teremos menos neurônios que os franceses?

Imagem retirada da Internet: alphabet

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