Epitáfio
Começou seu depoimento assim:
- Não sei do que está falando.
E levou logo um murro. O que chamavam Capitão explicou:
- Estão.
O homem atado à cadeira se corrigiu:
- Não sei do que estão falando...
E levou outro murro. Desta vez o que chamavam Chefe foi quem explicou:
- Não banque o engraçadinho com a gente. Sabe muito bem do que estamos falando.
O homem atado à cadeira nada disse. Ficou esperando outro murro, que o Capitão se apressou em lhe aplicar.
- Não queria deixá-lo esperando – disse, e deu uma gargalhada.
- Cale-se – ordenou o Chefe ao Capitão, que se irritou. Quase discutiram.
O homem atado à cadeira sentiu que aquele era um momento de fraqueza e arriscou:
- Juro que não sei...
Foi interrompido por violento soco, que quase o fez desmaiar.
- Não interprete nossa discussão como eventual fraqueza. Ou eventuais discussões entre nós como fraqueza.
- Entre nós? – repetiu o homem, bastante enfraquecido, levando em seguida outro murro, que desta vez o fez desmaiar pra valer.
- Já disse para não bancar o engraçadinho! – gritou o Chefe, como se justificando para si mesmo ou para o Capitão, já que não fazia sentido falar para alguém desmaiado. Olhou para o Capitão, que se apressou em mostrar que compreendia:
- Compreendo – disse, e foi até o canto da sala buscar um balde de água com sabão. Atirou todo o conteúdo na cara do homem, que acordou tossindo muito, dizendo, entre estertores:
- Sabão
- É exato, meu amigo. A água tem sabão misturado – informou o Capitão.
- Acontece que sou alérgico a sabão – reagiu o homem, ainda tossindo.
- E daí? – perguntou o Capitão, armando novo golpe, mas foi contido pelo Chefe:
- Quero que ele fale.
Ainda tossindo e tentando se coçar com a língua, o homem disse:
- Não sei do que está falando.
Levou um tapa e se corrigiu:
- Estão. Não sei do que estão falando, eu juro. E sou realmente muito alérgico a sabão.
- Que tipo de sabão? – perguntou o Chefe, quase condescendente.
- Qualquer – respondeu o homem, economizando palavras para poder se coçar.
- Está economizando palavras comigo?
- Não. Estou tentando me coçar.
O Chefe e o Capitão ficaram observando o homem se coçar com a língua.
- Que coisa horrível – disse o Capitão.
- Está se compadecendo dele? – perguntou o Chefe, denunciando ira iminente.
- Estou achando feio. Digno de dó, apesar de não ser o que eu esteja sentindo – explicou o Capitão.
- E o que é digno de dó é indigno – disse o homem, entrando no diálogo de seus algozes e interrompendo sua tentativa de se coçar com a língua.
- Que bonitinho o que acaba de dizer. Daria uma bela epígrafe – ironizou o Chefe.
- É mesmo – concordou o Capitão – uma bela epígrafe para sua própria lápide.
O homem atado à cadeira e o Chefe não se contiveram e explodiram em uma gargalhada diante da cara apalermada do Capitão, acompanhados pelos demais algozes presentes – a sala estava cheia deles. O Chefe dispensou a todos. Continuariam algumas horas depois. No momento não havia mais clima para tortura.
Imagem retirada da Internet: soco
In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.
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