Flávio Paranhos - Conto



Epitáfio



Começou seu depoimento assim:

- Não sei do que está falando.

E levou logo um murro. O que chamavam Capitão explicou:

- Estão.

O homem atado à cadeira se corrigiu:

- Não sei do que estão falando...

E levou outro murro. Desta vez o que chamavam Chefe foi quem explicou:

- Não banque o engraçadinho com a gente. Sabe muito bem do que estamos falando.

O homem atado à cadeira nada disse. Ficou esperando outro murro, que o Capitão se apressou em lhe aplicar.

- Não queria deixá-lo esperando – disse, e deu uma gargalhada.

- Cale-se – ordenou o Chefe ao Capitão, que se irritou. Quase discutiram.

O homem atado à cadeira sentiu que aquele era um momento de fraqueza e arriscou:

- Juro que não sei...

Foi interrompido por violento soco, que quase o fez desmaiar.

- Não interprete nossa discussão como eventual fraqueza. Ou eventuais discussões entre nós como fraqueza.

- Entre nós? – repetiu o homem, bastante enfraquecido, levando em seguida outro murro, que desta vez o fez desmaiar pra valer.

- Já disse para não bancar o engraçadinho! – gritou o Chefe, como se justificando para si mesmo ou para o Capitão, já que não fazia sentido falar para alguém desmaiado. Olhou para o Capitão, que se apressou em mostrar que compreendia:

- Compreendo – disse, e foi até o canto da sala buscar um balde  de água com sabão. Atirou todo o conteúdo na cara do homem, que acordou tossindo muito, dizendo, entre estertores:

- Sabão

- É exato, meu amigo. A água tem sabão misturado – informou o Capitão.

- Acontece que sou alérgico a sabão – reagiu o homem, ainda tossindo.

- E daí? – perguntou o Capitão, armando novo golpe, mas foi contido pelo Chefe:

- Quero que ele fale.

Ainda tossindo e tentando se coçar com a língua, o homem disse:

- Não sei do que está falando.

Levou um tapa e se corrigiu:

- Estão. Não sei do que estão falando, eu juro. E sou realmente muito alérgico a sabão.

- Que tipo de sabão? – perguntou o Chefe, quase condescendente.

- Qualquer – respondeu o homem, economizando palavras para poder se coçar.

- Está economizando palavras comigo?

- Não. Estou tentando me coçar.

O Chefe e o Capitão ficaram observando o homem se coçar com a língua.

- Que coisa horrível – disse o Capitão.

- Está se compadecendo dele? – perguntou o Chefe, denunciando ira iminente.

- Estou achando feio. Digno de dó, apesar de não ser o que eu esteja sentindo – explicou o Capitão.

- E o que é digno de dó é indigno – disse o homem, entrando no diálogo de seus algozes e interrompendo sua tentativa de se coçar com a língua.

- Que bonitinho o que acaba de dizer. Daria uma bela epígrafe – ironizou o Chefe.

- É mesmo – concordou o Capitão – uma bela epígrafe para sua própria lápide.

O homem atado à cadeira e o Chefe não se contiveram e explodiram em uma gargalhada diante da cara apalermada do Capitão, acompanhados pelos demais algozes presentes – a sala estava cheia deles. O Chefe dispensou a todos. Continuariam algumas horas depois. No momento não havia mais clima para tortura.


Imagem retirada da Internet: soco
In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.

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