Pensando bem
- Vou me matar.
- Eu também.
Soren e Arthur estavam sentados em uma mesa de bar. Conversavam. Pensavam muito antes de dizer cada palavra. Lá pelas tantas, Arthur quebra o silêncio:
- Acho que deveríamos ser mais espontâneos – propõe.
- E não estamos sendo? – estranha Soren.
- Não. Estamos pensando muito antes de falar.
- E o que é que você queria?
- Mais objetividade.
- Tem razão. Mas, pensando bem, para quê, se vamos ambos nos matar?
- Vamos realmente?
- Vamos. Ou você não foi espontâneo?
- Fui espontâneo, mas não absolutamente sincero.
- Isso não é bonito. Ou é?
- Não é. Entretanto, também não é bonito que nos matemos.
- Do ponto de vista religioso?
- De qualquer ponto de vista.
- Mas a existência é fútil.
- Quem está citando?
- Ninguém. Ou a mim mesmo, não sei...Nunca sei se falo o que penso ou o que os outros pensam.
- Todos falamos o que todos pensamos.
- Está citando alguém?
- Não.
Novo silêncio. Arthur, absorto, fita o próprio copo de cerveja.
- Em que está pensando? – pergunta Soren.
- Esta pergunta é perigosa.
- Por quê?
- Poderia lhe dar um livro como resposta.
- É mesmo...Deixa pra lá.
Soren observa para o copo de cerveja de Arthur que, percebendo, lhe oferece:
- Quer um pouco?
- Não, obrigado.
- Se não quer um pouco de minha cerveja, por que está olhando fixamente para ela?
- Estou olhando para sua cerveja da mesma maneira que você.
- Então está olhando com sede.
- Pensei que estava usando seu copo de cerveja apenas como um gancho entre este mundo que podemos observar e algo além.
- Está definindo a metafísica?
- Talvez. De qualquer forma, não estou olhando para sua cerveja com desejo.
Arthur bebe a cerveja de um só gole, esvaziando o copo.
- Parece gostosa - observa Soren.
- A cerveja?
- Sim. Vendo você beber me dá vontade de beber também.
- Então beba.
- Mas aí estragaria minha vontade.
- Vontade de beber cerveja?
- Vontade de me matar.
- Está realmente com vontade de se matar, ou esta é apenas uma representação?
- Acho pernóstico citar a si mesmo.
- Não estou me citando. Quis dizer representando um papel. Quase mentindo.
- Se fosse esse o caso, não mereceria minha atenção.
- Pode ser. Por outro lado, também pode ser que estejamos representando um papel para nós mesmos para que possamos nos livrar da angústia que nos persegue.
- Faz sentido.
- Tudo faz.
- Nem tudo.
- O que não faz?
- A religião.
- Não entremos neste assunto.
Calam-se por alguns minutos. Soren olha a cerveja com um esforço descomunal para enxergar além. Nada. A não ser a imagem deformada de uma mosca pousada sobre a mesa. Seria o bastante? Pouco provável. Com um golpe desastrado, Arthur mata a mosca e derruba metade do conteúdo do copo.
- Que desperdício - diz Soren, e acrescenta em seguida, sem muita convicção: - É... Acho que vou me matar.
- Eu também – concorda Arthur, distraidamente.
- Vontade ou representação?
- Está me citando?
- Não. Quer dizer, estou, mas apenas o que disse há pouco.
- Sendo assim, acho que estamos representando.
- E resolve?
- Deveria.
- Falar sobre a angústia exaustivamente nos livraria dela?
- Penso que sim.
- Pensamos demais...
- Se pensássemos menos...
- Resolveria?
- Se nada pensássemos...
- Aí seríamos como as formigas-operárias.
- Ou os operários homens mesmo.
- Sua existência transcorre sem questionamentos.
- Refere-se à minha existência ou dos operários?
- Dos operários. Sua vida passa sem que se perguntem coisas que sabem que não têm resposta.
- Minha vida? – Arhur não estava em uma boa fase para generalizações..
- Mas será possível!? – irrita-se Soren.
- Está bem. Já entendi. Os operários não pensam.
- É claro que pensam. As formigas é que não pensam. A diferença é que os homens operários pensam apenas o básico. Vêm ao mundo com um pacote básico de pensamentos.
- Determinista?
- Apenas um exemplo. O problema é que os homens operários possuem um cérebro capaz de, num repente, traí-los e pode acabar por mostrar-lhes o que realmente são.
- E o que são, realmente?
- Nada.
- Não está exagerando?
- Nada são. Trabalham de segunda a sábado e no domingo descansam. Pronto, é só o que há.
- Neste caso, seria melhor ser uma formiga.
- Isso.
- E se as formigas também tivessem consciência da própria mediocridade?
- Seria terrível e até pior do que os homens, mas não acredito nisso.
- Também não acredito.
Arthur bebe o resto de cerveja que sobrara. Soren pede uma ao garçom.
- Mudou de idéia?
- A respeito...
- A respeito da cerveja estragar sua vontade de se matar.
- Mudei. Mas vou me matar assim mesmo.
- Eu também.
Novo silêncio, que Arthur quebra tamborilando os dedos na mesa de madeira, sem forro, incomodando bastante Soren, que procura retomar logo o assunto:
- Voltemos ao assunto das formigas.
- Voltemos a elas – assente Arthur, aquietando a mão, para alívio de Soren.
- Não acha que são extremamente felizes e, ainda por cima, têm segurança absoluta nesta felicidade?
- Concordo quanto à felicidade, mas... Segurança absoluta?
- Sim. Os operários homens, apesar de elaborarem em seu dia-a-dia apenas pensamentos básicos necessários à sua subsistência, podem, de uma hora para outra, começar a ter idéias subversivas.
- Subversivas como?
- Como para quê trabalhar tanto e sempre, ininterruptamente, até aposentar de velho ou morrer.
- O que aconteceria?
- Ficariam loucos, angustiados, melancólicos...
- O que, de fato, por vezes acontece.
- Acontece. E aí, como não têm com quem dividir esta melancolia extrema, matam-se.
- Eu também.
- Calma. Ainda não terminei.
- Prossiga.
- Se, ao invés de operários, estes indivíduos pertencessem a uma classe intelectual...
- Como nós?
- Como queira. Se fossem intelectualmente diferenciados, teriam acesso a uma leitura e conversas com pessoas extremamente angustiadas...
- Como nós?
- Como nós. E este acesso à melancolia intelectualizada poderia ser sua salvação.
- Racionalizar a angústia?
- Precisamente.
- E nós?
- Nós não somos apenas medianos com acesso a educação. Nós somos a educação.
- Acho que isso foi pretensioso.
- Totalmente. No entanto, é o que somos. Pretensiosos.
- Sendo assim, vou me matar.
- Eu também.
- Vamos nos matar de que maneira?
- Por enquanto, de maneira nenhuma.
- Estamos representando?
- De certa forma, sim.
- Sabia!
- É uma representação necessária. Afinal, estamos resolvendo os problemas do mundo aqui.
- Estamos?
- Estamos.
- Tem razão. Somos um bocado pretensiosos.
Arthur sinaliza para o garçom, queria mais cerveja. Suspira, enquanto observa algumas crianças brincando na pracinha em frente ao bar.
- Vou me matar.
- Eu também.
O garçom traz mais dois copos cheios.
- E se o sentido da vida fossem os pequenos prazeres? Como esta cerveja, por exemplo? – Arhur levanta o copo e o examina contra a luz do sol, escondido atrás de várias nuvens. O dia estava idealmente cinzento.
- E quem está buscando um sentido para a vida?
- Não estamos?
- Pois não vamos nos matar?
- É verdade. A não ser que estejamos apenas representando.
- Temos que nos matar. Não é possível que saibamos tanto e não nos matemos.
- Por quê?
- Tanto conhecimento tem que levar à loucura completa.
- Ou à completa melancolia.
- Isso.
- Mas se racionalizarmos nossa melancolia?
- Como bons medianos?
- Como bons medianos.
- Não o somos.
- Nada nos impede.
- Racionalizemos, então.
- Já o fazemos.
- É verdade...Mas vou me matar assim mesmo.
- Eu também.
In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.
Imagem retirada da Internet: mesa de bar
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