Raul Bopp - Poema


Casos da negra velha



A floresta inchou


Uma árvore disse:
- Quero virar elefante,
E saiu correndo no meio do mato


aratabá-becúm


Aquela noite foi muito comprida
Por isso é que os homens saíram pretos



In.Urucungo, 1932.
Imagem retirada da Internet: negra velha

Elizabeth Barrett Browning - Poesia



SUBSTITUIÇÃO



Se uma adorada voz, que fora em vossa vida,
suavidade e som, de repente se esvai,
e se logo um silêncio impenetrável cai,
qual súbito mal-estar ou dor desconhecida,

- que esperança há? Que auxílio? E que música ouvida,
o silêncio destrói? Nem da amizade o ai -
nem da razão sutil a conta; não se vai
ao som de violino ou de flauta gemida;

nem canções de poeta e nem de rouxinóis,
a voz que vai subindo através dos ciprestes
até à clara lua; e medo lhe não causa

das esferas, o canto - ou dos anjos, nos sóis,
a voz que sobe a Deus; ó não, nenhuma destas!
Fala só Tu, ó Cristo, e preenche esta pausa.


Tradução: Alexandre Herculano de Carvalho


©Elizabeth Barrett Browning

Fonte: A Voz da Poesia
Imagem retirada da Internet: hope










Elizabeth Barrett Browning - Poesia



COMO TE AMO?

Sonnets from the Portuguese, Sonnet XLIII


Amo-te quanto em largo, alto e profundo
Minh’alma alcança quando, transportada,
Sente, alongando os olhos deste mundo,
Os fins do Ser, a Graça entressonhada.

Amo-te em cada dia, hora e segundo:
À luz do Sol, na noite sossegada.
E é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não pedem nada.

Amo-te com o doer das velhas penas;
Com sorrisos, com lágrimas de prece,
E a fé da minha infância, ingênua e forte.

Amo-te até nas coisas mais pequenas.
Por toda a vida. E, assim Deus o quiser,
Ainda mais te amarei depois da morte.

Tradução de Manuel Bandeira

Fonte: A Voz da Poesia
Sob licença do Creative Commons

Marinalva Barros - Poema


Convite

 
Convido você a saltar paredões
e atravessar redemoinhos.
O susto da queda não deverá nos matar
se a sua mão segurar a minha.

Em breves instantes
o seu corpo e o meu se reconhecerão
no leito úmido e quente
do fundo das águas,

voltar à tona será tão somente
uma peripécia de amor.
Estaremos de volta
antes do por-do-sol.
Prometo.

Imagem retirada da Internet: mãos dadas

Adélia Prado - Poema


O Homem Humano


Não fosse a esperança de que me aguardas com a mesa posta
O que seria de mim eu não sei.
Sem o Teu nome
A claridade do mundo não me hospeda,
É crua luz crestante sobre ais.
Eu necessito por detrás do sol
Do calor que não se põe e tem gerado meus sonhos,
Na mais fechada noite, fulgurantes lâmpadas.
Porque acima e abaixo e ao redor do que existe Permaneces,
Eu repouso meu rosto nesta areia
Contemplando as formigas,
Envelhecendo em paz
Como envelhece o que é de amoroso dono.
O mar é tão pequenino diante do que eu choraria se não fosses meu Pai.
Ó Deus, ainda assim não é sem temor que Te amo,
Nem sem medo.

Cassiano Ricardo - Poema



Espaço lírico


Não amo o espaço que o meu corpo ocupa 
Num jardim público, num estribo de bonde. 
Mas o espaço que mora em mim, luz interior. 
Um espaço que é meu como uma flor 


Que me nasceu por dentro, entre paredes. 
Nutrido à custa de secretas sedes. 
Que é a forma? Não o simples adorno. 
Não o corpo habitando o espaço, mas o espaço 


Dentro do meu perfil, do meu contorno. 
Que haja em mim um chão vivo em cada passo 
(mesmo nas horas mais obscuras) para 


Que eu possa amar a todas as criaturas. 
Morte: retorno ao incriado. Espaço: 
Virgindade do tempo em campo verde.


Imagem retirada da Internet: ego

Carlos Drummond de Andrade - Poema



Foto by Nobuyoshi Araki
Em face dos últimos
acontecimentos



Oh! Sejamos pornográficos
(docemente pornográficos).
Por que seremos mais castos
Que o nosso avô português?

Oh ! sejamos navegantes
Bandeirantes e guerreiros
Sejamos tudo que quiserem
Sobretudo pornográficos.

A tarde pode ser triste
E as mulheres podem doer
Como dói um soco no olho
(pornográficos, pornográficos).

Teus amigos estão sorrindo
De tua última resolução.
Pensavam que o suicídio
Fosse a última resolução.
Não compreendem, coitados,
Que o melhor é ser pornográfico.
Propõe isso a teu vizinho,
Ao condutor do teu bonde,
A todas as criaturas
Que são inúteis e existem,
Propõe ao homem de óculos
E à mulher da trouxa de roupa.
Dize a todos: Meus irmãos,
Não quereis ser pornográficos?

Cássia Fernandes - Poema

Cássia Fernandes
Os dias




Quatro dias de sono na roça.
A pele descansada,
porque não peguei no cabo da caneta
nem me pegaram para enxada.
Apenas capinei os ares.
Apartei-me cedo do gado.
Preparei silos
para os dias de estio
que se seguirão.
Dei de beber aos cavalos,
curando as feridas dos cascos
e desfazendo os nós das crinas,
e assim pretendendo temporariamente
persuadi-los
a não dispararem estúpidos
pelos pastos,
atrás de capim verde
e miragens de vacas e meninas.
Tudo isso me descansou o corpo,
mas ainda assim a alma,
essa não tem repouso,
nem com sono, nem com feriado.
Talvez um dia, quem sabe,
ou mais tarde,
num Pouso Mais Alto.

William Butler Yeats - Poema



Portrait sketch of William Butler Yeats in 1908
by John Singer Sargeant


As Vozes Eternas


(1899)


Oh, doces e perenes Vozes, permaneçam;
Vão até aos guardiões das hostes celestiais
E os ordene que vagueem obedecendo à Tua vontade, 
Chamas sob chamas, até o Tempo deixar de existir;
Não tem você ouvido que nossos corações estão cansados,
Que você tem chamado por eles nos pássaros, 
no vento sobre as colinas, 
Em balançantes galhos nas árvores,
nas marés pela beira-mar? 
Oh, doces e perenes Vozes, permaneçam.


Tradução de Izabella Drumond 

Valdivino Braz - Conto

Os lírios do brejo




           Grilos e sapos nos brejos, e ele a estortegar-se todo, no leito de palha, entre gemidos e bufos de bicho agoniado. Do outro lado da parede de taipa, a voz rouquenha de Sinhana:

           — Que é isso, Menino?

          Silêncio como resposta, o rosto afundado no travesseiro de paina, abafando a agonia. A noite. Os grilos. Os sapos. E novamente Sinhana:

           — Sossega, Menino. Dorme.

          Menino era como a velha Sinhana chamava a um homem já feito, de nome Benedito, abrutalhado e meio palerma, filho bastardo de Quim Borba. No papel de avó, e num senso de caridade, ela tomara a criança sob seus cuidados, porque morrera-lhe a mãe, de nome Olívia, que o parira a susto de má hora, de forma traumática, donde a falácia de que o menino, cabeçudo e horroroso, era fruto de parto maldito, por vias adúlteras. Olívia era irmã de Jovina, mulher de Quim Borba, e finou-se em conseqüência da quebra de resguardo. Ressentida com a traição do marido, Jovina não quis saber do sobrinho-enteado, “o amaldiçoado”, dizia ela, que nunca tivera filhos porque abortava toda vez que o Quim lhe botava um feto no útero. Além do mais, agora também já não era deste mundo, a Jovina: caiu do cavalo, quebrou o pescoço, morreu.

          Custava a dormir, o Menino. Noite adentro no seu desassossego, enquanto lá consigo mesmo não se aliviasse. Só então lograva adormecer, só então a avó também dormia, que antes ficava escutando tudo e pensando na linha torta que fora a vida de Quim Borba. Os bens que ele possuía — as terras, o gado, o engenho de açúcar mascavo, com os tachos pro melado e fabrico de rapadura —, perdeu tudo no jogo e nas farras de puteiro do povoado ou nos distantes cassinos e cabarés por onde passava. Perdeu-se a conta das mulheres que ele botava por sua conta. Contando, ninguém acredita, mas até dois dentes de ouro que tinha na boca ele arrancou pra vender e apostar na mesa de carteado. Pra ela, Sinhana, ficou só a casa em ruínas, numa nesga de terra que sobrou, e ali o neto abobalhado.

          De manhãzinha, mal os galos abrissem o bico nos poleiros, aquele meninão desajeitado se levantava, retirava os paus roliços da porta da sala, saía lá fora e urinava. Quedava-se, depois, a contemplar, atoleimado, a bruma da manhã e os vultos cinzentos das imbaúbas ao redor; a mão distraída nas virilhas, fuçando uma virilidade meio descomunal. Bruscamente, chutava um troço qualquer e resbunava com o seu jeito de bicho.

          Nas tardes, ao pôr-do-sol, costumava trepar num tronco caído e ali demorar-se viajando os olhos pela soturna solidão sertaneja, contemplando o horizonte longínquo, esbraseado pelos matizes do crepúsculo. E quando a sombra da noite precedia a melancólica melopéia dos charcos, ele descia do tronco e, cabisbaixo, recurvo tamanduá, voltava pra casa. Quase sempre colhia lírios do brejo, como por ali chamavam a flor-de-são-josé, e oferecia-os a Sinhana, que os recebia calada, já meio maquinalmente, e colocava numa vasilha com água.

          Por vezes, plantava-se o Menino no meio do terreiro, a botar sentido nas manobras dos galos, assediando as galinhas, e não foi uma nem duas vezes que a avó se deparou com algumas delas mortas atrás das moitas, a princípio supondo tratar-se de peste ou cobra venenosa (!), até percebê-las estrompadas, com a cloaca em petição de miséria. Então chamou o bastardo pra uma conversa ao pé da letra, inclusive aplicando-lhe uns croques na cabeça deformada, anormalmente avantajada e assim no feitio de careta-de-caju, como se diz da castanha desse fruto. Depois dos croques foi que ele mudou o rumo de seus instintos.

          Uma tarde, Sinhana tomando banho na bacia, no quarto, e o mondrongo vai lá e arranca o ensebado trapo de linhaça que serve de cortina. Sobressalto e as mãos encarquilhadas cobrindo as partes de baixo, a avó meio se curvando para isso e as mamas murchas penduradas feito mamões-de-corda. Os gritos indignados, que ele saia dali, que a respeite! O murro no queixo, como um coice de cavalo; Sinhana caída no chão batido, a besta já em cima dela, entrando nela com tamanho ímpeto, e cravando-lhe os dentes na muxiba dos peitos, raivoso morcego, ou fome de menino desmamado muito cedo.


*

          Três dias ele andou fugido, bicho do mato, comendo raízes e frutos que encontrasse. Sinhana a esperá-lo, o tempo todo a vigiar os arredores, perscrutando moitas e vultos de paus cinzentos. Varrendo a casa ou cuidando das panelas, não se descuidava nunca. Rastejar de réptil, voejar de pássaro ou mero farfalhar de folhas e a mão saltava para o porrete ali no jeito. Caso o engano, a velha tornava aos afazeres, mas sempre vigilante.

          Tardezinha do terceiro dia, olhe ele lá, furtivo, se esgueirando entre as árvores. Ligeira, Sinhana pegou o porrete, colou-se à parede junto à porta da cozinha e, os olhos metidos numa fresta do reboco, esperou.

          Benedito deixou, afinal, a proteção do arvoredo, e avançou, ressabiado, a terreno descoberto. Então Sinhana avistou, na mão pendente do neto, o molhe de lírios-do-brejo. Também reparou no aspecto andrajoso e abatido com que ele vinha, meio trôpego, e seu coração vacilou, penalizado: a pobre criatura de Deus, que era o Menino. Mas, não! Não podia fraquejar. Condoer-se de um tarado? O que lhe fizera o motreco, não merecia clemência. Abusar de uma velha sofrida que nem ela, já se viu? Bisca ruim é cobra criada, que a gente mata sem dó nem piedade, Quim Borba já dizia. Mas Sinhana agora ponderava que ali era o seu neto, o filho de seu filho, embora fosse um jumento sem juízo.

          Intensa luta íntima, o coração em dúvida, dividido, ora impiedoso, ora amolecido; bambas e trêmulas as pernas da pobre mulher. Benedito já quase no limiar da porta. Não, não tinha coragem!, Sinhana ainda em conflito, justo quando o neto transpõe o umbral, e uma só a porretada que o derruba, confusa a reação da própria avó, de joelhos agora, em desespero, chamando o Menino desfalecido; as mãos dela querendo mas não completando o gesto de pegar a cabeça ensangüentada, pegando, porém, os lírios espalhados no chão, e, no átimo do momento, mordendo-os um a um, ganindo e estraçalhando as flores com os dentes, como se possuída por uma fúria canina. Uma coisa de doido, ainda por explicar-se. Dizendo as más línguas que a velha teria reacendido o fogo morto no vão das pernas e tomado gosto pelo neto em cima dela.

          Depois do acontecido, amiúde Sinhana era vista nos seus trapos, mexendo com barrela no terreiro e cantando antigas modinhas de amor. Ou então ali sentada num banco, tendo o neto Benedito — que não morrera com a paulada —, ajoelhado no chão e com a cabeçorra em seu colo, enquanto ela se punha a catar-lhe gordos piolhos; dela o prazer de ouvir cada estalo ao esmagá-los com as unhas. E assim foram levando a vida por ali. Os lírios perduram nos brejos. Por menor que seja, também uma florzinha do campo conduz o sentido de sua existência. “Uma florzinha é o labor dos séculos”, como diz o poeta William Blake ao escrever os Provérbios do Inferno.

Hélverton Baiano - Conto

Zé Bufafais e sua Estrovengás



Como está na moda construir gasoduto para todo lado, Zé Bufafais inventou e disse aos outros que queria construir um pra ele também, para aproveitar a demasia dos seus constantes e insuportáveis pipocos intestinais, que já viraram pilhérias aos quatro cantos do seu ‘i’mundo.

No começo, ele cansara desse seu mister gasoentérico e procurou conserto nos médicos e mezinhas, parou de comer as sustanças do ‘vento’, como cebola, batata doce, repolho e feijão, mas de nada adiantou. Ficou famoso por isso mesmo, incorporou o apelido de Bufafais que a rua lhe deu e passou a ganhar dinheiro com apresentações em circos e teatros mambembes, onde era apresentado como ‘Zé Bufafais, o homem que peida demais’.

Para as apresentações usava de truques que aprendeu pelo instinto de cabeça de vento que tinha e ninguém tascava. Ele me pediu segredo, por isso não vou contar a ninguém, de como se dava a descarga flatulenta que comandava programadamente, mesmo porque esse predicado virou um dos seus ganha-pães.

Era astucioso e inventou uma máquina de armazenar seus gases, uma traquitana tão bem construída que causou euforia no bairro, dando perspectiva a muitos peidorreiros inveterados com a possibilidade de ganharem dinheiro. Zé Bufafais dizia que ele era 80% feito de ventosidades, pois tudo que comia virava peido, isto sem a anuência de lacto purga, do luftal, do gutalax, do óleo de rícino, da erva de bicho ou do Complexo 46 Almeida Prado. Tinha saúde pra dar e vender à pior hemorróida e, como gostava de dizer, “sem fastio”. Nunca precisou desses subterfúgios para alimentar o que denominou de “a máquina da flatulência”.

Com pouco, estava ele lá todo serelepe bolando um compressor, onde fez uma adaptação e conseguia, com os próprios gases e os de outras pessoas amigas que se prestaram à sua pesquisa, encher pneu de bicicleta e bolas de capotão dos meninos do bairro. Diversificou o negócio e começou a ganhar dinheiro também prestando esses serviços gaseificados.

Sua fama cresceu e apareceu com a recente crise do gás na Bolívia e os entreveros com a Venezuela, quando o jornal noticiou o invento de Zé Bufafais. Aí ele se entusiasmou, deu entrevista, falando que o governo podia investir na criação da Intestinogás, que geraria gás “suficiente e adequado”, como frisou, para suprir de energia usinas termoelétricas, automóveis e outros maquinários.

O país viveu uma grande agitação nesses dias, com a possibilidade de as pessoas se organizarem para vender peido engarrafado. Zé legou a tecnologia aos amigos e parentes mais chegados, com a intenção de espalhar mundo afora essa patente e fazer com que o povo ganhasse dinheiro com isso, investindo em pequenas fábricas armazenadoras de peido.

Muitos foram ao Banco do Povo pegar empréstimo; outros, mais afoitos, mandaram propostas para a Agência de Fomento e o Fundo Constitucional do Centro-Oeste (FCO). Criaram uma cadeia de fornecedores de pum aos quais ensinavam as técnicas de armazenamento. Zé Bufafais saiu na frente e criou a Estrovengás, construiu vários gasodutos e uma cadeia de produtores integrados, que forneciam diariamente vários litros de peido engarrafado para tocar o empreendimento. Ganhou muito dinheiro, pagou os empréstimos e revolucionou o mundo da geração de energia.

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