Sinésio de Oliveira - Fotopoema





Sinésio Dioliveira















ANTROPOFAGIA

No princípio
só havia olhares.
O desejo, demônio faminto,
se aproximou mais:
dos olhos chegou às bocas.

Foram poucas palavras distantes
daquilo que os olhos gritavam.

O verbo então se fez carne...



Foto by Sinésio Dioliveira - Todos os direitos reservados

Luis Antonio Cajazeiras Ramos - Poema


Luís Antonio Cajazeiras Ramos







Em Luís Antonio Cajazeiras Ramos, a evidente sensibilidade lírica e o extremo domínio retórico, atributos que nem sempre se reúnem no mesmo escritor, revelam-se qualidades indissociáveis. Para além do espontaneísmo informe e confessional, ou da mera habilidade versejadora, sua poesia navega no território próprio: uma implacável máquina do poema, que retrata, com humor, farsa e melancolia, as vias e os desvios de um sujeito lírico em confronto, o mais das vezes, irônico frente ao mundo.
Antonio Carlos Secchin




Efígies


A égua, que passeia nos desfiladeiros
domina altiva o vale e a montanha,
quando sobe ao cimo do mais alto cume.
Seus relinchos se guardam para as nuvens
das manhãs, tendo o Sol por estribilho,
ao deslizar o trato de seus cascos livres
sobre os talos e a relva do caminho,
à contraluz que brilha no costado largo
de fulva crina, arrepiada cordilheira.

A águia, que paira sob o céu mais límpido,
deusa distante em voo de eterna glória,
mais que domina o céu, reina na terra
com seu olhar farol, coroa e lança.
O temor espalha e o fulgor impregna,
irradiados da envergadura mirífica,
e seu voo plano e silente hipinotiza,
magistral, com as asas peregrina
ondulando no raro vento das alturas,
onde atinge a dimensão de estrela.

A serpente, que arrasta o ventre liso
sobre o limo das pedras da floresta
e a escaldante rocha do deserto,
abriga-se nas sombras mais furtivas
com a calma da vigília distendida
e os olhos da certeza satisfeita.
Apõe-se contra a crosta dos dejetos
e a superfície das camadas de ruínas.
Opõe-se à égua arisca e à águia sidérea
e impõe veneno no banquete edênico.



In. Mais que sempre. Luís Antonio Cajazeiras Ramos. Rio de Janeiro:7 Letras, 2007, p.85.
Imagem: Águia

Luis Antonio Cajazeiras Ramos - Poema


Luis Antônio Cajazeiras Ramos







O verso de Luís Antonio não é sentencioso, mas incisivo e lapidar. Percorre, sem hierarquias, um espectro de situações que ora flertam com o sublime, ora namoram o vulgar e o irrisório. Tudo se equivale, ou melhor, no poema, é como se tudo se equivalesse, já que o simulacro ficcional, paralelo à existência, se apresenta mais intenso e real que a própria vida.
Antonio Carlos Secchin


Anátema


Vogo na idéia vaga e vã do eu,
como se houvesse em mim um ser e um cerne,
uma alma inominada, em corpo inerme,
amálgama de fiat lux et breu.

Mimo a mim mesmo com um mimoso engano:
que o mundo existe como um fato meu;
que a vida é a imagem de ilusório véu,
tecido por mim (fio) o mundo (pano).

Fio-me que penso e existo e assim sou algo;
desfio meus véus, em busca de meu âmago,
mas desconfio que apenas seja imago...

Meu sumo é um oco totem hamletiano.
Do imane e ameno cenho, emana a senha:
a senda é ser não sendo e Eu seja sonho.



In. Mais que sempre. Luís Antonio Cajazeira Ramos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007, p.142.

Hermann Hesse - Poema

Hermann Hesse



(...)





Na poesia como na prosa, Hermann Hesse, suíço (1877-1962) de língua alemã (Prêmio Nobel em 1946), mostrou-se permanentemente preocupado com a busca de um sentido para a vida, levando-o essa busca a preferir a solidão, longe das aglomerações urbanas que lhe eram penosas de suportar. Poesia e prosa parecem ter andado sempre de mãos dadas, em toda a existência de Hermann Hesse - que se dizia, ele mesmo, um poeta das nuvens, sem raízes e sem pátria-lar: a ausência da pátria-lar (Heimat) é uma constante na obra desse auto-condenado ao degredo perpétuo no mundo dos homens. (...)
Geir Campos



Perdimento



Sonâmbulo tateio entre bosque e barranco,
há um halo de magia aceso ao meu redor:
sem reparar se sou bem aceito ou maldito,
sigo à risca o meu próprio mandato interior.

Quantas vezes veio chamar-me a realidade
em que vós existis, para me comandar!
Dentro dela eu ficava assustado e sem forças,
e logo descobria um jeito de escapar.

Ao meu país ardente, do qual me privais,
ao meu sonho de amor, do qual me sacudis,
como as águas retornam sempre para o mar
também meu ser retorna usando mil ardis.

Amigas fontes guiam-me com seu cantar,
aves de sonho as plumas de luz a ruflar:
de novo faz-se ouvir o som da minha infância
- em áurea rede, ao doce zumbir das abelhas,
junto de minha mãe volto enfim a me achar.



In. Andares - Antologia poética. Hermann Hesse. 2ª ed., Trad.: Geir Campos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,s/d p.108.
Imagem: Ancoradouro

Hermann Hesse - Poema


Hermann Hesse









"Quando Hesse publica sua antologia poética, Andares, a Suíça que habita é uma espécie de ilha não suficientemente distante para que lá não chegue a violência dos ecos e perigos da segunda guerra mundial. A alma lírica do poeta é como um sismógrafo que registra fielmente todos os abalos políticos. A confrontação do fenômeno literário com o da guerra tinha sido uma experiência marcante entre 1914 e 1918. Em 1914 tinha-se deixado levar pelo entusiasmo político; mas logo assume uma posição pacifista da qual não se distanciará jamais".
(Nicolás Jorge Dornheim - ensaista argentino)




Sonhando Contigo



Às vezes quando me deito
e meus olhos se fecham,
com a chuva batendo na cornija os seus dedos molhados
tu vens a mim,
esguia corça hesitante,
dos territórios do sonho.
Então andamos ou nadamos ou voamos
por entre bosques, rios, bandos de animais,
estrelas e nuvens com tintas de arco-íris:
tu e eu, a caminho da terra de origem,
rodeados de mil formas e imagens do mundo,
ora na neve, ora ao fogo do sol,
ora afastados, ora muito juntos
e de mãos dadas.

Pela manhã o sono se dissipa,
afunda dentro de mim,
está em mim e já não é mais meu:
começo o dia calado, descontente e irritadiço,
porém algures continuamos a andar,
tu e eu, rodeados de coleções de imagens,
a interrogar-nos entre os encantos da vida
que nos embroma sem saber mentir.



In.Andares - Antologia poética. Hermann Hesse. Trad.: Geir Campos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, p.138.
Imagem: by Sinésio Dioliveira - Todos os direitos reservados

Francisco Perna Filho - Desenredo




Francisco Perna Filho









Desenredo


Os carros, feito peões,

rodopiam enlaçados, um a um,

nos seus cordões que se prolongam em avenidas

e tecem a manhã de galos e aborrecimentos.

No final da tarde, eles invertem a trajetória

e os cordões da tessitura se refazem na anunciada volta,

no torvelinho ocasional dos predestinados pais e mães,

que se perdem engarrafados nas apertadas ruas,

segregadas pelo lixo e os meios-fios

ansiosos em voltar para casa.

Um a um,

dois a dois,

emparelhados como bois,

berram lastimosamente pedindo passagem

no desfazer do dia.

A composição agora é outra:

os carros celebram a noite

acesos nos seus faróis esbugalhados,

na vã tentativa de reaver a luminosidade perdida.

Os carros, tão sós,

não sabem das ruas,

do pálido olhar dos seus donos,

e, nem mesmo, do trajeto que percorrem,

simplesmente voltam,

e voltam encorajados pelo combustível que arrotam

de que nem sequer imaginam o custo.



Este poema faz parte do meu próximo livro "Visgo Ilusório", no prelo.

Imagem: Minotauro

Manoel de Barros - Poema






Manoel de Barros













XII


Pegar no espaço contiguidades verbais é o
mesmo que pegar mosca no hospício para dar
banho nelas.
Essa é a prática sem dor.
É como estar amanhecido a pássaros.

Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode
modificar os seus gorjeios.




In.O Livro das Ignorãças.3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p.21.
Imagem: pássaros


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