No princípio
só havia olhares.
O desejo, demônio faminto,
se aproximou mais:
dos olhos chegou às bocas.
Foram poucas palavras distantes
daquilo que os olhos gritavam.
O verbo então se fez carne...
Francisco Perna Filho
Desenredo
Os carros, feito peões,
rodopiam enlaçados, um a um,
nos seus cordões que se prolongam em avenidas
e tecem a manhã de galos e aborrecimentos.
No final da tarde, eles invertem a trajetória
e os cordões da tessitura se refazem na anunciada volta,
no torvelinho ocasional dos predestinados pais e mães,
que se perdem engarrafados nas apertadas ruas,
segregadas pelo lixo e os meios-fios
ansiosos em voltar para casa.
Um a um,
dois a dois,
emparelhados como bois,
berram lastimosamente pedindo passagem
no desfazer do dia.
A composição agora é outra:
os carros celebram a noite
acesos nos seus faróis esbugalhados,
na vã tentativa de reaver a luminosidade perdida.
Os carros, tão sós,
não sabem das ruas,
do pálido olhar dos seus donos,
e, nem mesmo, do trajeto que percorrem,
simplesmente voltam,
e voltam encorajados pelo combustível que arrotam
de que nem sequer imaginam o custo.
Este poema faz parte do meu próximo livro "Visgo Ilusório", no prelo.
Imagem: Minotauro
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