Flávio Paranhos - Conto




Um senhor distinto



O carro estacionou na porta do saloon. Aquilo me incomodou bastante. Da janela do quarto onde me encontrava, pude ver um senhor de paletó e gravata, aparentemente muito distinto, descer do carro. Senti-me incomodado. Não que eu fosse exigente, afinal, a prostituta que acabara de me servir já recolocava seu espartilho e calçava suas botas. Não. Eu não era assim tão exigente. O que me incomodava era o fato de que estava em pleno velho oeste e hospedava-me naquele velho saloon e não fazia sentido um senhor engravatado descer de um carro ali. Não cabia. O senhor era muito distinto, é verdade. Mas isso não mudava muito as coisas. Preocupado, procurei pelo meu cavalo. Ainda estava ali. Fiel e sempre pronto para me receber de um salto, caso fosse necessário fugir rápido (como tantas vezes já fora). Despachei a prostituta cansada (eu sou terrível) e comecei a me vestir. Precisava descer e conversar com o senhor distinto. Precisava me livrar daquele incômodo (não, eu não o mataria, referia-me realmente ao incômodo, sem duplo sentido). Já pronto, descendo a escada que dava para o salão principal, batia propositadamente com as esporas de meu par de botas contra os degraus. Pareceria determinado. O senhor distinto já estava instalado em uma das mesas, bebendo seu cowboy duplo (sem duplo sentido). Tinha um fáscies absolutamente incaracterístico. Indiferente, mesmo. Também indiferentes estavam todos os demais presentes, como se aquilo fosse absolutamente incaracterístico. E normal. Isso, mais que incomodar, me irritou profundamente. Caminhei em direção à mesa do senhor distinto. Parei em frente a ele. Nada falei. Deveria parecer óbvia (e atrevida) minha intenção de me juntar a ele.
- Gostaria de me acompanhar ? - ele me perguntou com um tom de voz simpático, que me irritou ainda mais.
- Obrigado - tentei parecer o mais indiferente possível.
- Fique à vontade. - Depois, dirigindo-se ao garçom: - Mais um uísque duplo, aqui pro meu amigo. Sem gelo, por favor.
Aquilo já era demais. Pedir por mim e acertar exatamente o que eu queria era demais. Apesar da provocação, contive-me. Ainda não era hora.
- Como sabia que eu queria um cowboy duplo?
- Apenas um palpite.
- E se seu palpite estivesse errado?
- Você me diria e mudaríamos o pedido.
Sua naturalidade estava me desarmando. Precisava me cuidar.
- E se eu aceitasse por educação?
- Não faria isso.
- Por quê? Acha que sou um mal-educado?
- Não. Apenas um palpite.
- Sei...
Silêncio. Não me sentia disposto a quebrá-lo. Não me incomodava. Ele sim.
- Quem é o senhor? - quebrei o silêncio.
- Ninguém em especial. E você?
- Ninguém em especial? Que diabo de resposta é essa?
O garçom trouxe meu uísque. Sua naturalidade me espantou.
- O senhor não é quem diz ser - decidi atacar.
- Como assim?
- Diz que não é ninguém em especial.
- E?
- Acontece que não se chega a um lugar desses em um carro e vestido de paletó e gravata.
- Por que não?
- Porque não é lógico. Aqui é o velho oeste.
- Não vejo problemas.
- Você não cabe aqui.
- Não percebo ninguém, além do senhor, que esteja se importando com isso - ele tirou um cachimbo de uma bolsinha e iniciou o ritual para acendê-lo.
- Isso só piora as coisas. A naturalidade com que o tratam aqui é bastante curiosa. Diria até que é suspeita.
- Suspeita?
- É. Como se estivessem num transe. Incapazes de alcançar o absurdo da situação.
- Mas nada há de absurdo.
- Quer dizer que o absurdo não existe, que tudo é relativo, que depende do referencial?
- Não. Quero dizer apenas que não é absurdo que uma pessoa honesta sente-se em um bar e beba seu uísque enquanto espera a vez para ser atendido por uma prostituta.
- Prostituta? Não vai conseguir. Elas não gostam de estranhos por aqui.
Como para me desmentir, a que acabara de me servir desceu a escada e veio em direção a ele. Parou à sua frente (quase como eu havia feito, minutos atrás) e esperou.
- Pode começar - ele ordenou.
Ela se abaixou, retirou seus sapatos e meias, e começou a lamber-lhe os entrededos dos pés.
- Mas isso é ultrajante! – protestei, levantando-me e me preparando para as vias de fato. - Não pode obrigar a pobrezinha a fazer isso! Nenhum dinheiro vale isso. Quanto ele lhe paga, menina? Eu cubro.
- Meu amigo, não se exalte. Não a estou forçando. Nem sequer estou pagando.
- Não paga?
A surpresa me derrubou de volta à cadeira.
- Não. Esta moça tem enorme prazer em me fazer esse carinho.
- Carinho?
- Não acha? É tão relaxante...
A prostituta terminou seu “carinho”, recolocou as meias e os sapatos metodicamente no sujeito e se levantou, com um sorriso. Ninguém à nossa volta parecia ter notado a cena. Ou se importado com aquilo.
- Escute aqui. Nada que o cerca é natural. O senhor não é natural. Todos agem com naturalidade, mas nada disso é lógico. Não sei o que está acontecendo, mas sei que não estou insano. Não me sinto insano.
- Não está.
- Como sabe?
- Um palpite, apenas.
- Não quero mais saber de seus palpites. Quero saber o que significa tudo isso!
- Nada.
- Como?
- Nada significa. Precisa significar algo?
- É claro que sim. Tudo significa alguma coisa.
- Sendo assim, qual é o significado de sua curiosidade extrema a meu respeito?
- Não inverta as coisas. É uma curiosidade natural.
- A sua curiosidade pode ser natural, mas eu não sou?
- Está tentando me confundir. Não me engana.
- De maneira nenhuma. Gostaria apenas de acalmá-lo.
- Estou calmo.
- Se é assim...
- Mas continuo querendo saber o que o senhor representa aqui.
- Não estou representando. Estou agindo naturalmente.
- Está querendo me irritar?
- Por favor...
Naquele momento senti minhas forças me deixarem. Precisava resistir. Todos haviam sucumbido, menos eu. Precisava resistir.
- O senhor já fez o que queria? – perguntei e, dando-lhe a entender que só havia uma resposta possível, propus: - Pode ir agora.
- Por que o incomodo tanto?
- O senhor não pertence a esse lugar.
- E você pertence?
- Pertenço.
- Quem lhe disse?
- Ninguém. Eu sei.
- Então me dá o direito de também me considerar como pertencendo a esse lugar.
- O senhor não pertence. Eu sei.
- Não vamos mais discutir. Não vale a pena.
Nesse momento fomos interrompidos pelo garçom, que tocou o ombro do sujeito de leve, como a lembrar-lhe de algo.
- Você já quer agora? – o senhor distinto perguntou.
- Se o senhor assim o desejar... – respondeu o garçom.
- Pode ser.
O garçom retirou meias e sapatos dos pés do distinto senhor, que os apoiara em um banquinho, ajoelhou-se e começou a lamber avidamente seus entrededos. Parecia ter muito mais prazer nisso do que a prostituta. Particularmente no hálux
- Ele prefere o hálux – observei.
- Hálux? – o garçom interrompeu momentaneamente o espetáculo para satisfazer sua ignorante curiosidade.
- Dedão – esclareci.
- Ah.
O garçom voltou à sua tarefa com a mesma avidez com que iniciara. Em dez minutos estava terminado. Satisfeito.
- Ele parece satisfeito – observei novamente em voz alta.
- Ele está satisfeito. Você é que não me parece nada satisfeito.
- Não estou. Estou enojado.
- Está assustado. Pode estar até enojado, mas não pelo que pensa estar.
- Não entendo.
- É o único diferente aqui. Penso que o que o enoja é o fato de ser o único diferente.
- Posso ser o único diferente, mas sou normal.
- Seria realmente normal alguém tão diferente? Como pode considerar-se normal se os demais não o consideram assim? Não acha que algo está errado?
- Acho. Está tudo errado. Estão todos loucos. Somente eu estou lúcido.
- Meu amigo, detesto informar-lhe que nós não pensamos assim. Logo, o senhor não pode ser normal.
- Isso é impossível. Não faz sentido.
- Faz sentido o que decidimos que faça. E decidimos que nós fazemos sentido, não você.
O que restava de minhas forças, perdi. Não podia com aquela argumentação (muito lógica, por sinal). Era demais para mim. Sentia que me renderia. Aos poucos, consegui enxergar melhor o que se passava à minha frente. Como tinha sido estúpido! O senhor distinto só podia estar certo.
- Meu senhor - comecei, muito respeitosamente - devo-lhe desculpas. Sinceramente, estou bastante envergonhado. Não consegui enxergar o óbvio. É claro que a razão estava com o senhor este tempo todo. Afinal, um senhor tão distinto...
- Não tem problema.
- Mais uma coisa. Se permite... se não lhe for incômodo...eu adoraria provar o gosto de seus entrededos dos pés. O senhor me permitiria?
- Sinto muito, mas não vai dar. É que tenho que ir embora. Está tarde e minha mulher fica preocupada quando me demoro muito nessas happy hours.
Dizendo isto, o senhor distinto se levantou e caminhou em direção à porta do salloon, que abriu com elegância. Observei sua saída com um aperto no coração. Algo me dizia que jamais saberia o sabor que tinha os entrededos de seus pés.



In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.

Imagem retirada da Internet: saloon

Flávio Paranhos - Conto


Pensando bem



- Vou me matar.

- Eu também.

Soren e Arthur estavam sentados em uma mesa de bar. Conversavam. Pensavam muito antes de dizer cada palavra. Lá pelas tantas, Arthur quebra o silêncio:

- Acho que deveríamos ser mais espontâneos – propõe.

- E não estamos sendo? – estranha Soren.

- Não. Estamos pensando muito antes de falar.

- E o que é que você queria?

- Mais objetividade.

- Tem razão. Mas, pensando bem, para quê, se vamos ambos nos matar?

- Vamos realmente?

- Vamos. Ou você não foi espontâneo?

- Fui espontâneo, mas não absolutamente sincero.

- Isso não é bonito. Ou é?

- Não é. Entretanto, também não é bonito que nos matemos.

- Do ponto de vista religioso?

- De qualquer ponto de vista.

- Mas a existência é fútil.

- Quem está citando?

- Ninguém. Ou a mim mesmo, não sei...Nunca sei se falo o que penso ou o que os outros pensam.

- Todos falamos o que todos pensamos.

- Está citando alguém?

- Não.

Novo silêncio. Arthur, absorto, fita o próprio copo de cerveja.

- Em que está pensando? – pergunta Soren.

- Esta pergunta é perigosa.

- Por quê?

- Poderia lhe dar um livro como resposta.

- É mesmo...Deixa pra lá.

Soren observa para o copo de cerveja de Arthur que, percebendo, lhe oferece:

- Quer um pouco?

- Não, obrigado.

- Se não quer um pouco de minha cerveja, por que está olhando fixamente para ela?

- Estou olhando para sua cerveja da mesma maneira que você.

- Então está olhando com sede.

- Pensei que estava usando seu copo de cerveja apenas como um gancho entre este mundo que podemos observar e algo além.

- Está definindo a metafísica?

- Talvez. De qualquer forma, não estou olhando para sua cerveja com desejo.

Arthur bebe a cerveja de um só gole, esvaziando o copo.

- Parece gostosa - observa Soren.

- A cerveja?

- Sim. Vendo você beber me dá vontade de beber também.

- Então beba.

- Mas aí estragaria minha vontade.

- Vontade de beber cerveja?

- Vontade de me matar.

- Está realmente com vontade de se matar, ou esta é apenas uma representação?

- Acho pernóstico citar a si mesmo.

- Não estou me citando. Quis dizer representando um papel. Quase mentindo.

- Se fosse esse o caso, não mereceria minha atenção.

- Pode ser. Por outro lado, também pode ser que estejamos representando um papel para nós mesmos para que possamos nos livrar da angústia que nos persegue.

- Faz sentido.

- Tudo faz.

- Nem tudo.

- O que não faz?

- A religião.

- Não entremos neste assunto.

Calam-se por alguns minutos. Soren olha a cerveja com um esforço descomunal para enxergar além. Nada. A não ser a imagem deformada de uma mosca pousada sobre a mesa. Seria o bastante? Pouco provável. Com um golpe desastrado, Arthur mata a mosca e derruba metade do conteúdo do copo.

- Que desperdício - diz Soren, e acrescenta em seguida, sem muita convicção: - É... Acho que vou me matar.

- Eu também – concorda Arthur, distraidamente.

- Vontade ou representação?

- Está me citando?

- Não. Quer dizer, estou, mas apenas o que disse há pouco.

- Sendo assim, acho que estamos representando.

- E resolve?

- Deveria.

- Falar sobre a angústia exaustivamente nos livraria dela?

- Penso que sim.

- Pensamos demais...

- Se pensássemos menos...

- Resolveria?

- Se nada pensássemos...

- Aí seríamos como as formigas-operárias.

- Ou os operários homens mesmo.

- Sua existência transcorre sem questionamentos.

- Refere-se à minha existência ou dos operários?

- Dos operários. Sua vida passa sem que se perguntem coisas que sabem que não têm resposta.

- Minha vida? – Arhur não estava em uma boa fase para generalizações..

- Mas será possível!? – irrita-se Soren.

- Está bem. Já entendi. Os operários não pensam.

- É claro que pensam. As formigas é que não pensam. A diferença é que os homens operários pensam apenas o básico. Vêm ao mundo com um pacote básico de pensamentos.

- Determinista?

- Apenas um exemplo. O problema é que os homens operários possuem um cérebro capaz de, num repente, traí-los e pode acabar por mostrar-lhes o que realmente são.

- E o que são, realmente?

- Nada.

- Não está exagerando?

- Nada são. Trabalham de segunda a sábado e no domingo descansam. Pronto, é só o que há.

- Neste caso, seria melhor ser uma formiga.

- Isso.

- E se as formigas também tivessem consciência da própria mediocridade?

- Seria terrível e até pior do que os homens, mas não acredito nisso.

- Também não acredito.

Arthur bebe o resto de cerveja que sobrara. Soren pede uma ao garçom.

- Mudou de idéia?

- A respeito...

- A respeito da cerveja estragar sua vontade de se matar.

- Mudei. Mas vou me matar assim mesmo.

- Eu também.

Novo silêncio, que Arthur quebra tamborilando os dedos na mesa de madeira, sem forro, incomodando bastante Soren, que procura retomar logo o assunto:

- Voltemos ao assunto das formigas.

- Voltemos a elas – assente Arthur, aquietando a mão, para alívio de Soren.

- Não acha que são extremamente felizes e, ainda por cima, têm segurança absoluta nesta felicidade?

- Concordo quanto à felicidade, mas... Segurança absoluta?

- Sim. Os operários homens, apesar de elaborarem em seu dia-a-dia apenas pensamentos básicos necessários à sua subsistência, podem, de uma hora para outra, começar a ter idéias subversivas.

- Subversivas como?

- Como para quê trabalhar tanto e sempre, ininterruptamente, até aposentar de velho ou morrer.

- O que aconteceria?

- Ficariam loucos, angustiados, melancólicos...

- O que, de fato, por vezes acontece.

- Acontece. E aí, como não têm com quem dividir esta melancolia extrema, matam-se.

- Eu também.

- Calma. Ainda não terminei.

- Prossiga.

- Se, ao invés de operários, estes indivíduos pertencessem a uma classe intelectual...

- Como nós?

- Como queira. Se fossem intelectualmente diferenciados, teriam acesso a uma leitura e conversas com pessoas extremamente angustiadas...

- Como nós?

- Como nós. E este acesso à melancolia intelectualizada poderia ser sua salvação.

- Racionalizar a angústia?

- Precisamente.

- E nós?

- Nós não somos apenas medianos com acesso a educação. Nós somos a educação.

- Acho que isso foi pretensioso.

- Totalmente. No entanto, é o que somos. Pretensiosos.

- Sendo assim, vou me matar.

- Eu também.

- Vamos nos matar de que maneira?

- Por enquanto, de maneira nenhuma.

- Estamos representando?

- De certa forma, sim.

- Sabia!

- É uma representação necessária. Afinal, estamos resolvendo os problemas do mundo aqui.

- Estamos?

- Estamos.

- Tem razão. Somos um bocado pretensiosos.

Arthur sinaliza para o garçom, queria mais cerveja. Suspira, enquanto observa algumas crianças brincando na pracinha em frente ao bar.

- Vou me matar.

- Eu também.

O garçom traz mais dois copos cheios.

- E se o sentido da vida fossem os pequenos prazeres? Como esta cerveja, por exemplo? – Arhur levanta o copo e o examina contra a luz do sol, escondido atrás de várias nuvens. O dia estava idealmente cinzento.

- E quem está buscando um sentido para a vida?

- Não estamos?

- Pois não vamos nos matar?

- É verdade. A não ser que estejamos apenas representando.

- Temos que nos matar. Não é possível que saibamos tanto e não nos matemos.

- Por quê?

- Tanto conhecimento tem que levar à loucura completa.

- Ou à completa melancolia.

- Isso.

- Mas se racionalizarmos nossa melancolia?

- Como bons medianos?

- Como bons medianos.

- Não o somos.

- Nada nos impede.

- Racionalizemos, então.

- Já o fazemos.

- É verdade...Mas vou me matar assim mesmo.

- Eu também.


In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.
Imagem retirada da Internet: mesa de bar

Flávio Paranhos - Conto



Epitáfio



Começou seu depoimento assim:

- Não sei do que está falando.

E levou logo um murro. O que chamavam Capitão explicou:

- Estão.

O homem atado à cadeira se corrigiu:

- Não sei do que estão falando...

E levou outro murro. Desta vez o que chamavam Chefe foi quem explicou:

- Não banque o engraçadinho com a gente. Sabe muito bem do que estamos falando.

O homem atado à cadeira nada disse. Ficou esperando outro murro, que o Capitão se apressou em lhe aplicar.

- Não queria deixá-lo esperando – disse, e deu uma gargalhada.

- Cale-se – ordenou o Chefe ao Capitão, que se irritou. Quase discutiram.

O homem atado à cadeira sentiu que aquele era um momento de fraqueza e arriscou:

- Juro que não sei...

Foi interrompido por violento soco, que quase o fez desmaiar.

- Não interprete nossa discussão como eventual fraqueza. Ou eventuais discussões entre nós como fraqueza.

- Entre nós? – repetiu o homem, bastante enfraquecido, levando em seguida outro murro, que desta vez o fez desmaiar pra valer.

- Já disse para não bancar o engraçadinho! – gritou o Chefe, como se justificando para si mesmo ou para o Capitão, já que não fazia sentido falar para alguém desmaiado. Olhou para o Capitão, que se apressou em mostrar que compreendia:

- Compreendo – disse, e foi até o canto da sala buscar um balde  de água com sabão. Atirou todo o conteúdo na cara do homem, que acordou tossindo muito, dizendo, entre estertores:

- Sabão

- É exato, meu amigo. A água tem sabão misturado – informou o Capitão.

- Acontece que sou alérgico a sabão – reagiu o homem, ainda tossindo.

- E daí? – perguntou o Capitão, armando novo golpe, mas foi contido pelo Chefe:

- Quero que ele fale.

Ainda tossindo e tentando se coçar com a língua, o homem disse:

- Não sei do que está falando.

Levou um tapa e se corrigiu:

- Estão. Não sei do que estão falando, eu juro. E sou realmente muito alérgico a sabão.

- Que tipo de sabão? – perguntou o Chefe, quase condescendente.

- Qualquer – respondeu o homem, economizando palavras para poder se coçar.

- Está economizando palavras comigo?

- Não. Estou tentando me coçar.

O Chefe e o Capitão ficaram observando o homem se coçar com a língua.

- Que coisa horrível – disse o Capitão.

- Está se compadecendo dele? – perguntou o Chefe, denunciando ira iminente.

- Estou achando feio. Digno de dó, apesar de não ser o que eu esteja sentindo – explicou o Capitão.

- E o que é digno de dó é indigno – disse o homem, entrando no diálogo de seus algozes e interrompendo sua tentativa de se coçar com a língua.

- Que bonitinho o que acaba de dizer. Daria uma bela epígrafe – ironizou o Chefe.

- É mesmo – concordou o Capitão – uma bela epígrafe para sua própria lápide.

O homem atado à cadeira e o Chefe não se contiveram e explodiram em uma gargalhada diante da cara apalermada do Capitão, acompanhados pelos demais algozes presentes – a sala estava cheia deles. O Chefe dispensou a todos. Continuariam algumas horas depois. No momento não havia mais clima para tortura.


Imagem retirada da Internet: soco
In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.

Luís Antonio Cajazeira Ramos - Poema



O Jogo das Contas de Vidro




Aos poetas que li.



Qual alvo tisne, a lua tinge a noite
em tons argênteos, grises, plúmbeos, brancos.
A escuridão se esquina e cinge os flancos,
mal traçando o recanto em que se acoite.

O luar, com mãos de seda, audácia e zelo,
retira à noite o véu que a cobre espúrio;
e ilumina, de lilás a purpúreo,
tudo o que ao sol vai do azul ao vermelho.

À lua, o chão rural é mais bucólico
e o mundo urbano é um tanto mais insólito
do que revelam ser à luz do sol?

Talvez... Assim, qual lua, sem luz própria,
do corpo da poesia o poeta é cópia
— sinal especulado do farol.




In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Lua

Luiz de Aquino - Poema



A MOÇA CHEGANTE



Vi chegar a moça de preto
e era preto o que mais havia
entre as moças antes vindouras.

A moça chegante
sorria ofegante e dizia o nome
Anamélia
ante a poesia de anestesia
rebrotada ao som dos passos.

Ansiei a alvorada
para não doer mais.


In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: mulher de preto

Darcy França Denófrio - Poema


Foto by Sinésio Dioliveira


Ínvio lado




Há um lado da flor
que não penetramos:
talvez a reserva sitiada
onde guarda seu aroma.

Quase sempre esbarramos
em seus ferrões de defesa
e sangramos nossa dor
pela ponta dos espinhos.

E aí então paramos
e olhamos só por fora
a beleza que se entrega
com sua cota de reserva.

É do outro lado (do mistério)
que não alcançamos
que a flor explode
em toda sua grandeza.

É lá que se contorceu
e guardou sua história
e sangrou as suas gotas
e a solidão que (sobre) carrega.

Quem olha uma flor
ou um ser desabrochado
vê um prisma (feio ou lindo)
jamais o seu lado.
                       inviolado.



In.BRASIL, Assis. A Poesia Goiana no século XX. Goiânia:Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira/Rio de Janeiro: Imago, 1997, p.153.

Valdivino Braz - Poema


As jóias de Netuno


surdo rumor de ondas se avoluma
para os estrondos de espuma;
estilhaços de fúria fragmentária,
os cristais feito jóias,
perdigotos de Netuno.
Fraturas de oceano,
salso cuspe de espuma e louça,
os nácaros, côncavos destroços.
O que há de maestro e música,
além do bramor de monstro,
nisto de Atlântico.
Sinistra massa, mista
de crustáceos e moluscos -
lagostos pedúnculos de antênulas,
caco de acéfalos hipocampos,
espongiários espantos.
De hábitos solitários e anêmonos,
de celeteradas pedras,
isto de florir-se
o reito das actíneas.
Outra é água-viva,
mija-vinagre,
urtiga-do-mar,
isto de queimar.
Transparência de gelatina,
e de secreto nas entranhas marinhas,
as coisas-medusas,
tanto quanto não ser
a vida um mar de rosas.
Umas formas eriçadas,
uns ouriços,
uns crespos de abrir-se e fechar-se
- de não-me-toques -,
marinhos espinhos.
E coisoutras peludas,
isto análogo púbis,
estranhos novelos de quelíceras.
Uns mijos de esponja,
de Nadja,
de nojo.
Umas pérolas nada pérolas,
num colar de búzios.
Com a fileira de pés ambulacrários,
a esdruxula estrela,
uma crosta, uma casca,
parece que morta.
Vergue-se-lhe, entanto, o centro,
ei-la que ressuscita:
ondula-se o mar de áspero dorso,
onde varetas possibilitam
articula-se o dentro,
e pena é vê-lo ondular-se,
por certo que de dor,
isto de só restar devolvê-lo ao mar,
arremessá-lo feito disco voador.


In. Brasil, Assis. A poesia Goiana no século XX. Rio de Janeiro:Imago/Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira. 1997, p.201-2.
Imagem retirada da Internet: fauna submarina

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