Sóror Mariana Alcoforado - Carta



MARIANA ALCOFORADO





O amor proibido de uma freirinha de Beja por um oficial de cavalaria francês constituiu um dos capítulos mais instigantes e mais ternos da literatura portuguesa. A freirinha chamava-se Mariana Alcoforado (1640-1723). Viu ela passar certo dia de 1667, sob as rótulas do Convento da Conceição de Beja, onde professara, a cavalaria francesa que viera ajudar os portugueses a restaurarem a monarquia pátria. Dentre os cavalarianos, impressionou-se Sóror Mariana particularmente pela guapa figura do Capitão Noël-Bouton de Chamilly. Versado na arte da galantaria, tão cultivada nos salões parisienses da época, o Capitão Chamilly não teve maiores dificuldades em transformar em paixão devoradora a ingênua admiração da freirinha. Vieram depois os encontros pecaminosos na cela do convento, e, finalmente, o escândalo público. Por influência dos Alcoforados, cuja vingança de certo temeria, o Capitão Chamilly acabou voltando definitivamente para a frança. Decorrido um ano de sua partida, Mariana escreveu ao ingrato amante cinco cartas que, no entender de Fidelino de Figueiredo, são "uma das mais poderosas análises introspectivas do amor" que se conhece. Publicadas em Francês em 1669, obtiveram um êxito imenso, que se prolonga até hoje, sendo incontáveis as edições das Lettres Portugaises.

Chamilly nunca mais voltou a Portugal: ao cabo de uma brilhante carreira militar, morreu marechal de França, em 1715. Mariana sobreviveu-lhe oito anos. Até o fim, com as recordações do seu desgraçado amor, viveu no Covento de Beja, do qual chegou a ser abadessa, apesar de tudo. Como o original de suas Cartas se perdeu, só se conhecendo o texto da edição francesa, houve muita polêmica quanto à autencidade de sua autoria. Na França, julgam-nas, até hoje, obra de imaginação de um autor francês; em Portugal, graças às eruditas investigações de Luciano Cordeiro (cuja tradução foi a que para aqui trouxemos), a questão está definitivamente resolvida em favor de Sóror Mariana.
José Paulo Paes




CARTA I



Considera, meu amor, como foste excessivamente descuidado! Ai mal-aventurado! - Traíram-te esperanças fementidas e com elas me enganaste.

Uma paixão em que bordava tantos deleitosos projetos só pode dar-te, agora, um mortal desespero, apenas comparável à crueldade desta ausência.

E há de este desterro para o qual todo requinte da minha dor não acha nome assaz funesto, privar-te para sempre de embeber-me nesses olhos em que via tanto amor e que me fizeram conhecer enlevos que me enchiam de contentamento, que eram tudo para mim, que enfim me abastavam a vida?

Os meus olhos é que perderam nos teus a única luz que os animava. Só lhes restam lágrimas, nem eu lhes tenho dado outro emprego senão o de chorar continuamente desde que soube que estavas resolvido a um apartamento para mim tão insuportável que cedo me fará morrer.

E contudo parece-me que tenho o quer que seja de enamorado apego às mágoas de que tu só és a causa.

Consagrei-te a vida desde que em ti descansaram meus olhos, e sinto em sacrificar-ta um místico prazer.

Mil vezes ao dia te procuram meus cansados suspiros e não me trazem, os tristes, outro alívio a tantas tribulações do que o aviso cruamente sincero da minha desventura que me não consente uma esperança e me repete a todos os instantes: - "deixa, deixa de consumir-te em vão, infeliz Mariana deixa de anelar um amado que não tornarás a ver, que passou o mar para te fugir, que está em França no meio dos prazeres, que não pensa um momento nas tuas penas, que te dispensa de todos estes transportes, que nem sabe agradecer-tos."

Mas não. Não posso resolver-me a cuidar tão mal de ti. Sou muito interessada em justificar-te. Nem quero imaginar que me tenhas esquecido!...

Não sou eu já bem desgraçada sem me torturar com falsas suspeitas?

Por que hei de esforçar-me em apagar da memória todos os desvelos com que te esmeravas em me provar amor?

Ai tanto me deleitavam eles que bem ingrata fora se não te amasse ainda com os mesmos arroubamentos em que a minha paixão me enlevava quando lograva os testemunhos da tua.

Como é possível que lembranças de tão doces momentos se tenham tornado tão amargas? E que contra toda a natureza, sirvam somente para dilacerar-me o coração?
Pobre dele! A tua última carta pô-lo num estado singular: tais saltos me dava no peito que parecia forcejar por arrancar-se de mim e voar para ti.

Tão quebrantada fiquei, de todas estas emoções violentas que por mais de três horas estive toda alienada dos sentidos.

Era como se me defendesse de voltar à vida que devo perder por ti, já que para ti a não posso conservar.

Com bem pesar tornei a mim.

Regalava-me sentir que morria de amor, e sentia-me bem finalmente, por ver cessar de flagelar-me a alma a dor de tua ausência.

(...)

Continua amanhã!




In. Grandes Cartas da História. Organização: José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1969, p.102-105
Imagem retirada da Internet: anjo

Rainer Maria Rilke - Carta




SER OU NÃO SER POETA







Hoje, prosseguiremos com a segunda parte desta belíssima carta de Rainer Maria Rilke: Cartas a um Jovem Poeta, em que ele explica ao seu jovem correspondente o que entendia por verdadeira vocação poética. Tenham todos uma bela leitura!








"Voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde provém a sua vida: nessa fonte encontrará resposta à pergunta se deve criar."







(...)




Se a vida cotidiana lhe parece pobre, não a culpe: culpe a si mesmo. Diga consigo que não é bastante poeta para descobrir-lhe as riquezas. Para os criadores, não há pobreza, nem sítios pobres, indiferentes. E mesmo que estivesse numa prisão, cujas paredes não lhe deixassem chegar aos ouvidos os rumores do mundo, não lhe restaria sempre a infância, essa riqueza preciosa e imperial, essa arca de lembranças? Volte para ela a sua atenção. Procure trazer à tona as sensações submersas desse vasto passado: sua personalidade se afirmará; sua solidão se engrandecerá, convertendo-se num retiro crepuscular, perante o qual desfilam, distante, os ruídos do mundo. E se desse regresso ao interior, desse mergulho no mundo que lhe é próprio, surgirem versos, não pensará em perguntar a ninguém ser tais versos são bons. Tampouco lhe importará que as revistas se interessem ou não por seus trabalhos, pois verá neles uma valiosa possessão natural, um fragmento e uma voz de sua vida. A obra de arte é boa quando criada necessariamente. Na própria forma da sua origem está implícito o seu julgamento: não há outro.Eis por que, prezado senhor, sei dar-lhe outro conselho,além deste: voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde provém a sua vida: nessa fonte encontrará resposta à pergunta se deve criar. Aceite a resposta como ela vier, sem dar-lhe interpretações sutis. Talvez se evidencie que foi chamado a ser artista. Então, aceite tal destino e cumpra-o, com seu peso e a sua grandeza, sem indagar jamais de recompensa que possa vir de fora. Pois o criador tem de ser um mundo para si próprio, e achar tudo em si e na Natureza a que se incorporou.

Todavia, depois dessa descida ao seu mundo e à sua solidão interior, talvez tenha de renunciar a chegar a ser poeta (basta sentir, como já disse, que possamos viver sem escrever para que não nos seja permitido escrever). Mesmo assim, esse recolhimento que lhe aconselho não terá sido em vão. A partir de então, sua vida encontrará caminhos próprios. Que sejam bons,ricos e amplos, é o que desejo, embora não saiba dizer-lhe quanto.

Que poderei acrescentar? Parece que dei a tudo a ênfase necessária. Em suma, só quis aconselhar-lhe que se adiante grave e tranquilamente na sua evolução; perturba-la-á profundamente sem fixar os olhos no exterior ou se dele esperar respostas e perguntas que só o seu sentimento íntimo, numa hora de extremo silêncio, quiçá possa responder.

Foi para mim uma alegria encontrar em sua carta o nome do Senhor Professor Horacek; tenho por esse amável sábio uma grande veneração e uma gratidão que duram há anos. Quer, por favor, falar-lhe desse sentimento meu? É muita bondade dele ainda lembrar-se de mim; sei o quanto vale isso.

Devolvo-lhe os versos que amavelmente me confiou. E uma vez mais agradeço-lhe a cordialidade e a magnitude da sua confiança, de que procurei fazer-me um pouco mais digno do que na realidade o sou (dada a minha condição de estranho senhor) mediante esta resposta sincera, escrita o melhor que soube.

Com todo afeto e interesse,


Rainer Maria Rilke



In.Grandes Cartas da História.Organização de José Paulo Paes.São Paulo: Cultrix, 1969,p.190-193.

Rainer Maria Rilke - Carta


SER OU NÃO SER POETA




Poeta da morte e da solidão e da vida interior, Rainer Maria Rilke (1875-1926) é uma das vozes líricas mais altas do nosso século. Embora tcheco de nascimento, teve educação germânica e escreveu toda a sua obra em Alemão. Viajou a maior parte da vida pelos países da Europa e pelo Norte da África. Seus poemas mais célebres figuram nas “Elegias de Duíno” e nos “Sonetos a Orfeu, sendo igualmente célebres as cartas que, entre 1903 e 1908, trocou com o poeta Kappus, que lhe pedira opinasse sobre uns versos que lhe enviava. Em vez de simplesmente opinar, Rilke preferiu desde logo explicar ao seu jovem correspondente o que entendia por verdadeira vocação poética. Tal é o tema admiravelmente desenvolvido na carta a seguir, a primeira das dez “Cartas a um Jovem Poeta”

José Paulo Paes



París, 17 de fevereiro de 1903.

Prezado Senhor:

Recebi sua carta faz alguns dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança que me testemunha, mas pouco mais posso fazer. Não quero entrar no mérito dos seus versos, pois todo intento de crítica está longe de mim. Nada mais ineficaz do que abordar uma obra de arte com palavras de crítica: daí resultam sempre equívocos mais ou menos felizes. Nem todas as coisas são tão compreensíveis e descritíveis quanto nos querem fazer crer. A maior parte dos acontecimentos é indizível: consumam-se eles num âmbito no qual jamais penetrou qualquer palavra; mais inefáveis ainda são as obras de arte, existências misteriosas cuja vida acompanha a nossa efêmera existência.

Feita esta advertência, posso tão somente aduzir que seus versos não revelam uma maneira sua; possuem apenas tímidos e recatados germes de personalidade. Percebo-o com muita clareza no último poema: “Minha Alma”. Nele, algo que é peculiar ao senhor procura encontrar letra e música. E no formoso poema “A Leopardi” se acentua, ao que parece, uma espécie de afinidade com esse príncipe, esse solitário. Não obstante, os poemas ainda não são nada em si mesmos: falta-lhes independência; mesmo ao último, mesmo ao “A Leopardi”. A amável carta que os acompanha esclareceu-me acerca de algumas insuficiências que percebi ao ler seus versos; não posso, contudo, precisá-las.

Pergunta-me o senhor se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim. Antes o perguntou a outros. Envia-os a revistas. Compara-os com outros poemas e se inquieta quando certas redações rejeitam seus tentamens. Já que me permitiu aconselhá-lo, rogo-lhe que doravante deixe tudo isso de parte. O senhor tem os olhos voltados para o exterior, e isso é o que, em particular, não deveria fazer agora. Ninguém pode aconselhar nem ajudar; ninguém. Há um único meio: volte-se para si próprio. Investigue a causa que o impele a escrever; verifique se ela estende raízes até às profundezas do seu coração. Confesse-se: morreria se estivesse proibido de escrever? Antes do mais, na hora mais serena da noite, pergunte a si próprio: “Devo escrever?” Mergulhe no seu íntimo em busca da resposta profunda; se ela for afirmativa, se puder responder a essa grave pergunta com um vigoroso e singelo “devo”, construa então sua vida em função dessa necessidade. Sua existência, mesmo na mais insignificante e indiferente das horas, tem de ser signo e testemunho desse impulso. Aproxime-se depois da Natureza. Trate então de exprimir, como se fosse o primeiro homem do mundo, o que vê e experimenta, o que ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite sobretudo as formas demasiado comuns e usadiças: são mais difíceis, pois é necessário força e maturidade para exprimir-se com originalidade ali onde existam tradições firmadas e por vezes brilhantes. Por isso, fuja dos motivos gerais, encaminhando-se para aqueles que sua própria vida cotidiana lhe oferece; exprima as suas tristezas e desejos, os pensamentos que lhe ocorram, a sua fé em alguma forma de beleza...Diga tudo isso com a mais profunda, serena e humilde sinceridade, e utilize, para expressar-se, as coisas que o circundam, as imagens dos seus sonhos e os temas de suas recordações.

Continua amanhã



In. Grandes Cartas da História. Org.: José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1969, p.190-192.

Imagem: Rainer Maria Rilke

Carlos Pena Filho - Poema








Carlos Pena Filho










A SOLIDÃO E SUA PORTA



Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.



In. Livro Geral. Recife, 1969, p.40 - Apud. Magaly Trindade Gonçalves et all. Antologia de Antologias. São Paulo: Musa, 1995, p.497.
Imagem: Solidão

Valdivino Braz - Poema




Valdivino Braz












AS MANGAS


Entre as mais fibrosas,
de preferência a Sabina,
com suas sardas;
a pele com azinabre de cobre
e ferrugem de lâmina.
O dentro doce quando mordido,
e logo ácido na língua.
O sabor da Sabina se sabe
na primeira lambida,
mas temporona é azeda,
madura demais é urina.

Das menos fibrosas, a Bourbon,
com nome de nobre,
mas que não engana:
o que tem de bom tom,
é um quê de cigana.

A Manga-rosa, a mais sensual,
escandalosa - Scandal Rose -,
a mais fêmea do mangueiral:
polpa farta, carnal,
um cheiro que excita e reporta
secretas impregnações
nas mucosas da boca.
Tem gosto de boca almiscarada,
de beijo obsceno,
e parece peito de mulher inesquecível.

A Coração-de-Boi - que coração!
É a manga das paixões e dos suicídios.
Tudo cabe num coração maior que tudo.

A Manga-Espada é óbvia: um porte afiado.

E todas essas as mais saborosas,
de melhor essência.
As demais são comuns,
entanto comíveis, ou chupáveis.

A tal de Coquinho, a mais desenxabida,
e muito enxerida no meio da meninada.
Não é à toa o nome que tem:
Coquinho é alcunha de mulher qualquer,
uma de todos e de ninguém.






In. A Dança do Intelecto. Valdivino Braz. (Coleção Caliandra de Prosa e Poesia)Goiâniap: Prefeitura de Goiânia/Kelps, 1996, p.: 104-105.
Imagem: Mangas

Manuel Maria Barbosa du Bocage - Poema





BOCAGE










Sonetos



Oh tranças, de que Amor prisões me tece,
Oh mãos de neve, que regeis meu fado!
Oh tesouro! oh mistério! oh par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!

Oh ledos olhos, cuja luz parece
Ténue raio de sol! Oh gesto amado,
De rosas e açicenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse!

Oh lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!

Oh perfeições! oh dons encantadores!
De quem sois?...Sois de Vénus? - É mentira
Sois de Marilia, sois de meus amores.


In. Sonetos e outros poemas. Bocage. São Paulo: FTD, 1994, p.25

Francisco Perna Filho - Crônica


VISGO ILUSÓRIO*


Por Francisco Perna Filho



Começo este texto dizendo que uma das coisas mais difíceis na vida é encontrar a palavra certa para aquilo que queremos expressar. Pois bem, escritores, poetas, compositores, todos eles de alguma forma já trataram desse assunto, falaram da luta diária pelo verbo preciso, pelo vocábulo não corrompido, pela palavra ideal para traduzir um estado de espírito, um sentimento vivido, ou para, simplesmente, relatar as impressões do cotidiano.

Carlos Drummond de Andrade muito bem tratou desse assunto: “Lutar com palavras é a luta mais vã./Entretanto lutamos/mal rompe a manhã.” A luta de que fala Drummond é a mesma a que me refiro: o embate cotidiano daqueles que se debruçam sobre a escrita, que vislumbram a recifração de um mundo em ruína, que se alimentam em sonhos de uma escrita encantada, de um pensamento materializado.

Pensar a palavra é querê-la na sua condição plural, representativa, desconcertante, dilacerante, às vezes. Cada vocábulo, no texto/contexto, traz uma motivação primeira, esse traço, essa marca do ser que a pensou, não que a tenha criado, mas que a elegeu naquela acepção.

A despeito de qualquer intenção, as palavras são convenções humanas. Não importa o país, o credo, a raça, elas estão em qualquer parte, em qualquer texto, em qualquer fala, prontas para traduzir os anseios e desencontros de quem as utiliza, prontas para auxiliar o homem na sua “permanência efêmera” nesse “sem fim” da linguagem.

O signo verbal é composto de um significante e de um significado (para lembrar Saussure), daí que, dependendo da motivação que se queira dar a ele, do contexto no qual se insira, esse significado se mantém ou se desdobra em outros significados. Vejamos a literatura, prova mais cabal do que estou dizendo: linguagem criativa, subjetiva, denotativa. Outro exemplo, a arbitrariedade do signo: muda a língua, muda o significante, como na palavra “casa” que para nós falantes da Língua portuguesa tem um significado, mas para o estrangeiro que não conhece o nosso código, nada significa, ou se significa, isso ocorre apenas no plano sonoro, quando ao pronunciar a palavra ela o remete a algo parecido no seu idioma.

As palavras carregam o peso, o brilho, o gosto, o cheiro, a textura das coisas, trazem muito mais, pois servem a contextos, textos e intenções. Quanto mais nós as dominamos, mais dominados ficamos, mais sofremos, pelo amargo sabor de nos sabermos intraduzíveis.

Cada palavra cumpre uma sentença: ser palavra, ser elástica a ponto de exaustão, aí vai depender das intenções: ciência, propaganda, jornalismo, ficção. Traduzem uma imanência arbitrária com seus significados. Vivem a vida de quem as pronuncia, trazem consigo um visgo ilusório, uma relação mágica com aquilo que significam, com as imagens que representam, e silenciam quando nos calamos nos intervalos da nossa existência.


*Visgo Ilusório é o título do meu próximo livro, no prelo.

Foto by Francisco Perna Filho - Visgo - Miracema do Tocantins - Tocantins - Brasil


Murilo Mendes - Poema






Murilo Mendes








Estudo Para Uma Ondina



Esta manhã o mar acumula ao teu pé rosas de areia,
Balançando as conchas de teus quadris.
Ele te chama para as longas navegações:
Tua boca, tuas pernas, teu sexo e teus olhos escutaram.

Só teus ouvidos é que não escutaram, ondina.
Minha mão lúcida sacode a floresta do teu maiô.
Ao longe ouço a trompa da caçada às sereias
E um peixe vermelho faz todo o oceano tremer.

Tens quinze anos porque já tens vite e sete,
tens um ano apenas...
Agora mesmo nasceste da espuma,
E na incisão do ar líquido alcanças o amor dos elementos.


In.Metamorfoses. Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 65.
Imagem:Nu - Filipe - Braga, Portugal

Francisco Perna Filho - Conto


Francisco Perna Filho









Encontro de amigos


Fui o primeiro a chegar, tudo era silêncio, as luzes ainda estavam apagadas. Entrei, deixei alguns livros sobre a escrivaninha, sentei-me e fiquei esperando para ver quem entrava depois de mim.

Era muito cedo, li alguns textos, fiz algumas pesquisas, conferi a manchete dos principais jornais, e esperei. Por algum momento, tive a impressão de que alguém havia chegado. Pura impressão! Somente eu permanecia ali.

Impacientei-me, deixei um aviso de que eu estava presente, mas que me ausentaria por um instante. Saí, fui à padaria da esquina, tomei um café delicioso, li o jornal diário, e voltei para interagir com os amigos, mas nada, eles ainda não tinham chegado. Fiquei preocupado, será que eu me enganara quanto ao horário? Não! Pude ver que já passava das oito e eles não chegavam, ninguém dava sinal de vida.

Resolvi adiantar umas atividades, escrevi algumas páginas, permaneci ali na expectativa, coloquei uma música e deixei-me embalar. Imerso que estava na música, não me dei conta de que Marcelo acabara de entrar. Chegou, permaneceu quieto, não falou com ninguém, apenas anunciou que chegara. Depois de constatado sua presença, respeitei seu desejo de ficar isolado, também permaneci quieto.

Após Marcelo, entraram Karine, Paulo e Rodrigo, todos eles pareciam cumprir um ritual, se portaram como Marcelo, silenciosamente. A princípio, fiquei apreensivo, imaginando que eles tivessem alguma coisa contra mim, mas depois percebi que era paranóia minha.

Lembrei-me de outras situações, de outros espaços, de outros lugares. Quantas vezes ficamos desconfiados, aturdidos, desolados, só porque alguém que a gente conheceu passa por nós, não nos cumprimenta, como se não existíssemos, como se o conhecimento de outrora, o bate-papo, as piadas, as gargalhadas, a roda de amigos, nada disso importasse, tivesse um pouquinho de valor, até descobrirmos que a pessoa era míope e havia esquecido os óculos em casa.

Ponderei nas minhas observações. Fiquei meio hesitante quanto a puxar conversa, mas arrisquei um “Oi!”. Não logrei êxito, a pessoa, não vou falar o nome, pois pega mal, simplesmente não me deu atenção, estava ocupada. Vê se pode, numa manhã como aquela, tranquila, ainda muito cedo, a pessoa já está ocupada, faz-me uma desfeita dessas. Logo para mim que nunca que lhe neguei uma palavra, uma resposta; que quase nunca me disse ocupado. Não porque não trabalhe, muito pelo contrário, mas por achar indelicado negar uma palavra para um amigo, mesmo um conhecido, ou colega de trabalho, como queiram as designações.

Continuei com o meu trabalho, quando entraram Rosana, Madel, Bôsco, Jádson e Maurício, todos eles de uma só vez, já passava das nove da manhã, muito tarde para um dia de trabalho, mas cada um tem seus motivos. Madel acenou com uma carinha alegre, pediu minha atenção e disse: Compadre, estou achando você muito sério hoje, o que lhe aconteceu? Achei graça da carinha, e respondi com outra carinha de tristeza, dizendo, em seguida, que de fato estava um pouco entristecido, por imaginar que ninguém me dava atenção, mas que o meu humor, depois dessa receptividade toda por parte dela, já começava a melhorar.

Trocamos mais algumas palavras, falamos do óbvio, nos aquietamos nos nossos afazeres, e o tempo passou. Era mesmo um dia frio, frio não somente pela temperatura do ar condicionado naquela sala, exageradamente 17º graus, mas pelo clima que se instalara ali, não sei se somente da minha parte, uma vez que as outras pessoas sorriam, trocavam palavras, olhares. O que sei, de fato, é que o mar parecia não estar para peixe, muito menos para pescador.

O telefone tocou, não o meu, o da sala, e todos, absortos nos seus afazeres, permaneceram ali, sentados, totalmente alheios ao que se passava exterior aos seus afazeres. Tive de me levantar, atravessei a sala, entrei na cabine de vidro, onde o chefe ficava, e atendi o bendito, digo, o estridente telefone. Ninguém, simplesmente ninguém, do outro lado da linha. Era mesmo uma manhã atípica. Não me aborreci, simplesmente voltei para o meu lugar e prossegui viagem nos meus afazeres.

Mais uma vez tive de ausentar-me da sala, mas deixei um recado, eu precisava ir urgente ao banheiro. Logo na saída esbarrei com a moça do café, que vinha abarrotada de garrafas e odores, contagiando todo o corredor por onde passara. Olhamo-nos, ela entrou, eu saí apressadamente. Como diz o ditado: “um pé lá, outro cá”. Foi desse jeito, eu estava muito envolvido com o meu trabalho e tinha pouco tempo para realizar aquela atividade. A minha pesquisa, aparentemente banal, me tomaria muito tempo ainda.

Quando voltei, recebi um recado: “durante a sua ausência Maurício tentou falar com você”. Eu pensei comigo, esse cara é muito estranho. Nós estávamos tão próximos, ele sabia que eu estava ali, anunciou quando chegou, passamos, desde a sua chegada, mais de duas horas próximas, para ele só puxar conversa quando eu me fizera ausente. Isso só pode ser gozação, pensei. Mas tudo bem!

Depois dessa do Maurício, eu resolvi agir. Pensei comigo mesmo: você não vai perder nada, muito pelo contrário, você só tem a ganhar. Arrisquei uma conversa com o Bôsco: olá! mas nada de resposta. O camarada simplesmente não me respondeu, achei-o grosseiro, mal educado e prepotente. Nada disso, era só julgamento precipitado, na verdade, o cara não havia percebido que eu falava com ele, estava mergulhado até a tampa nos seus afazeres, mas, após uns dois minutos, ele me respondeu: amigo, desculpe-me, é que eu precisava entregar um relatório agora de manhã, sem falta, e tive de terminá-lo com urgência, os homens precisavam dele.

Fiquei aliviado, era só impressão minha. Talvez com os outros também ocorresse o mesmo. Cada um nos seus afazeres, prioritariamente o ganha-pão, depois as conversas, as piadas, as gozações. Falamos amenidades, refletimos sobre o momento político, sobre os desmandos e escândalos: tudo igual, só o disfarce é que muda, disse-me.

Perguntou-me o que eu iria fazer no final da tarde, eu disse que não tinha nada programado, que pensava em sair para tomar uma cervejinha. Tudo bem, disse ele, é isso mesmo, uma cervejinha. Aonde vamos, perguntou-me. Não sei ainda, respondi. Que tal o Toscana? emendei. Perfeito, disse ele. - Então tá combinado, respondi. Voltamos para os nossos afazeres.

Depois daquele caloroso bate-papo, resolvi passar tudo a limpo, sem receio nenhum, chamei para conversar: Karine, Rosana, Jádson, Paulo, Rodrigo e Marcelo, com todos eles tive papos para lá de amistosos, reconhecemos que estávamos em dívida uns com os outros, que precisávamos sair, nos falar mais, foi quando eu lhes comuniquei que havia marcado com o Bôsco, no Toscana, eles acharam maravilhoso. Combinamos às seis.

Eu simplesmente estava feliz, quase feliz, pois ainda faltava o Maurício, que estava ausente. Resolvi ligar para ele, falou-me que teve de sair às pressas, pois tinha uma audiência às 9h30, e que não podia se atrasar. Falei do nosso encontro, ele acenou positivamente.

Estavam o Jádson, o Maurício e a Karine, todos muito animados, quando eu cheguei. Abraçamos-nos, foram minutos de sorrisos e brincadeiras. Nisso foram chegando os outros: Paulo, Rodrigo, Marcelo, Rosana e Madel. Foi uma grande festa, juntamos mais duas mesas, e a diversão havia começado sem tempo para acabar. Varamos a noite, já passava das duas, quando resolvemos ir embora.

Embalados pelos chopes, nos despedimos com promessas de nos encontrarmos mais vezes. Desejamos-nos boa sorte, felicidades. Mais uma vez, abraçamo-nos, pedimos a atenção de cada um ao volante, e o cuidado com os bafômetros. Em coro, cantamos: Se vai dirigir, não beba; Se vai beber, não dirija, e completamos: mas se já bebeu e tem de dirigir, vá belezinha pra casa. Foi quando a Madel falou: Amigos, a amizade tem de ser presencial, vamos nos encontrar mais vezes, chega de Messenger.


Imagem: Codificação de Guerra - Jandira - Faro, Portugal

Murilo Mendes - Poema



Murilo Mendes
















Minha Órfã


Porque não quis te olhar, ficaste cega.
Sei que esperas por mim
Desde o tempo em que usavas tranças e brincavas com arco.

Sei que esperas por mim,
Mas eu não quis olhar
Porque me debrucei sobre o mito de outras,
Porque não me sabes dar, pobre amiga,
O sofrimento e a angústia que formam a catástrofe.

Roxelane, Roxelane:
Porque tens olhar morto e cabelos sem brilho,
Boca sem frescura e sem expressão,
Eu te desdenhei e não ouvi teu apelo,
Teu último apelo vindo da solidão e da infância remota.

Roxelane, Roxelane:
Tua tristeza recairá sobre mim, assumirei tua orfandade,
conhecerás o gozo e verás desdobrar-se a esperança,
Enquanto eu recolherei para sempre
A tua, a minha e a miséria de outros,
Triste e apagada Roxelane, vitoriosa Roxelane.


In. As Metamorfoses. Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 25

Sinésio Dioliveira - Fotopoema




Sinésio Dioliveira











MALQUERENÇA

Em vez de pedras,
quero borboletas nas mãos.
As pedras não vão longe;
as borboletas sim:
sozinhas e voando.

A dor da pedra
fere apenas a pele.
A dor da borboleta
machuca o coração.
(E por isso pode até virar flor...)


Foto by Sinésio Dioliveira - Todos os direitos reservados



Sinésio de Oliveira - Fotopoema





Sinésio Dioliveira















ANTROPOFAGIA

No princípio
só havia olhares.
O desejo, demônio faminto,
se aproximou mais:
dos olhos chegou às bocas.

Foram poucas palavras distantes
daquilo que os olhos gritavam.

O verbo então se fez carne...



Foto by Sinésio Dioliveira - Todos os direitos reservados

Luis Antonio Cajazeiras Ramos - Poema


Luís Antonio Cajazeiras Ramos







Em Luís Antonio Cajazeiras Ramos, a evidente sensibilidade lírica e o extremo domínio retórico, atributos que nem sempre se reúnem no mesmo escritor, revelam-se qualidades indissociáveis. Para além do espontaneísmo informe e confessional, ou da mera habilidade versejadora, sua poesia navega no território próprio: uma implacável máquina do poema, que retrata, com humor, farsa e melancolia, as vias e os desvios de um sujeito lírico em confronto, o mais das vezes, irônico frente ao mundo.
Antonio Carlos Secchin




Efígies


A égua, que passeia nos desfiladeiros
domina altiva o vale e a montanha,
quando sobe ao cimo do mais alto cume.
Seus relinchos se guardam para as nuvens
das manhãs, tendo o Sol por estribilho,
ao deslizar o trato de seus cascos livres
sobre os talos e a relva do caminho,
à contraluz que brilha no costado largo
de fulva crina, arrepiada cordilheira.

A águia, que paira sob o céu mais límpido,
deusa distante em voo de eterna glória,
mais que domina o céu, reina na terra
com seu olhar farol, coroa e lança.
O temor espalha e o fulgor impregna,
irradiados da envergadura mirífica,
e seu voo plano e silente hipinotiza,
magistral, com as asas peregrina
ondulando no raro vento das alturas,
onde atinge a dimensão de estrela.

A serpente, que arrasta o ventre liso
sobre o limo das pedras da floresta
e a escaldante rocha do deserto,
abriga-se nas sombras mais furtivas
com a calma da vigília distendida
e os olhos da certeza satisfeita.
Apõe-se contra a crosta dos dejetos
e a superfície das camadas de ruínas.
Opõe-se à égua arisca e à águia sidérea
e impõe veneno no banquete edênico.



In. Mais que sempre. Luís Antonio Cajazeiras Ramos. Rio de Janeiro:7 Letras, 2007, p.85.
Imagem: Águia

Luis Antonio Cajazeiras Ramos - Poema


Luis Antônio Cajazeiras Ramos







O verso de Luís Antonio não é sentencioso, mas incisivo e lapidar. Percorre, sem hierarquias, um espectro de situações que ora flertam com o sublime, ora namoram o vulgar e o irrisório. Tudo se equivale, ou melhor, no poema, é como se tudo se equivalesse, já que o simulacro ficcional, paralelo à existência, se apresenta mais intenso e real que a própria vida.
Antonio Carlos Secchin


Anátema


Vogo na idéia vaga e vã do eu,
como se houvesse em mim um ser e um cerne,
uma alma inominada, em corpo inerme,
amálgama de fiat lux et breu.

Mimo a mim mesmo com um mimoso engano:
que o mundo existe como um fato meu;
que a vida é a imagem de ilusório véu,
tecido por mim (fio) o mundo (pano).

Fio-me que penso e existo e assim sou algo;
desfio meus véus, em busca de meu âmago,
mas desconfio que apenas seja imago...

Meu sumo é um oco totem hamletiano.
Do imane e ameno cenho, emana a senha:
a senda é ser não sendo e Eu seja sonho.



In. Mais que sempre. Luís Antonio Cajazeira Ramos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007, p.142.

Hermann Hesse - Poema

Hermann Hesse



(...)





Na poesia como na prosa, Hermann Hesse, suíço (1877-1962) de língua alemã (Prêmio Nobel em 1946), mostrou-se permanentemente preocupado com a busca de um sentido para a vida, levando-o essa busca a preferir a solidão, longe das aglomerações urbanas que lhe eram penosas de suportar. Poesia e prosa parecem ter andado sempre de mãos dadas, em toda a existência de Hermann Hesse - que se dizia, ele mesmo, um poeta das nuvens, sem raízes e sem pátria-lar: a ausência da pátria-lar (Heimat) é uma constante na obra desse auto-condenado ao degredo perpétuo no mundo dos homens. (...)
Geir Campos



Perdimento



Sonâmbulo tateio entre bosque e barranco,
há um halo de magia aceso ao meu redor:
sem reparar se sou bem aceito ou maldito,
sigo à risca o meu próprio mandato interior.

Quantas vezes veio chamar-me a realidade
em que vós existis, para me comandar!
Dentro dela eu ficava assustado e sem forças,
e logo descobria um jeito de escapar.

Ao meu país ardente, do qual me privais,
ao meu sonho de amor, do qual me sacudis,
como as águas retornam sempre para o mar
também meu ser retorna usando mil ardis.

Amigas fontes guiam-me com seu cantar,
aves de sonho as plumas de luz a ruflar:
de novo faz-se ouvir o som da minha infância
- em áurea rede, ao doce zumbir das abelhas,
junto de minha mãe volto enfim a me achar.



In. Andares - Antologia poética. Hermann Hesse. 2ª ed., Trad.: Geir Campos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,s/d p.108.
Imagem: Ancoradouro

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