Julio Florencio Cortázar





Nesta parte do texto, Omar mostra um Cortázar consciente, combativo, voltado para as causas da América Latina. Um revolucionário da política e das artes.






“Suas posturas políticas e sua arte poética configuram-se nesta convicção: a imaginação, a arte, a forma são revolucionárias, destroem as convenções mortas, nos ensinam a enxergar, a pensar e a sentir de novo."

(Carlos Fuentes)




(...)


Apesar de seus longos anos em Paris, Cortázar continuava sendo essencialmente um argentino. Penso que isto está suficientemente claro, para que não se insista a respeito. Basta ler seus contos, seus romances e seus poemas para compreendê-lo, para espantar-se com o fato de certos espíritos estreitos terem reprovado seu afrancesamento e terem rasgado as próprias vestes, como os fariseus escandalizados.

Era, claro, um argentino que tinha incorporado à sua cultura tudo o que a Europa pode oferecer – literatura, arte, música, velhas catedrais e séculos de história concentrados numa pedra coberta de limo visitada por um gato, no sorriso de um ancião que bebe seu copo de vinho na taverna de um vilarejo do Midi – mas que no fundo de si mesmo sabia que sua alma estava pregada para sempre no Cruzeiro do Sul.

Daí a necessidade de criar “passagens”, zonas misteriosas que conduzem diretamente da galeria Güemes de Buenos Aires às galeries Vivienne de Paris, pontilhões que se apóiam no Sena e que permitem cruzar o Riachuelo da Boca, em Buenos Aires. Daí essas caminhadas que começam no Pont dês Arts e terminam no Once, ou os pesadelos nos quais um índio mexicano acredita haver escapado da faca ritual de pedra porque durante algumas horas conseguiu se refugiar numa cidade que ainda não existia.Foi numas quadras, depois musicadas por Edgardo Cantón, que Julio cantou, assim, suas inesgotáveis saudades de Buenos Aires:


Sinto falta do Cruzeiro do Sul

Quando a sede me faz erguer a cabeça

Para beber teu vinho negro meia-noite.

E sinto falta das esquinas com armazéns dormilões

Onde o perfume do mate treme na pele do ar.

Compreendo que isto está sempre lá

Como um bolso onde a cada instante

A mão busca uma moeda o canivete o pente

A mão infatigável de uma estranha memória

Que reconta seus mortos

Cortázar foi, tanto em sua literatura como em sua ação política, um revolucionário. Num artigo publicado depois da morte de Julio no suplemento literário do New York Times, Carlos Fuentes escreveu o seguinte: “Suas posturas políticas e sua arte poética configuram-se nesta convicção: a imaginação, a arte, a forma são revolucionárias, destroem as convenções mortas, nos ensinam a enxergar, a pensar e a sentir de novo. “ Cortázar tinha crescido perto das lições do surrealismo e sua intenção era manter unido o que ele chamava de “a revolução de fora e a revolução de dentro”.

Não foi um ingênuo, como alguns pretendem, e nunca compactuou com moinhos de vento. Conhecia perfeitamente bem os perigos que espreitam os processos revolucionários, isso que ele chama de quitinización, algo assim como uma subtração, e cada vez que pôde, cada vez que acreditou que era seu dever alertar e dizer, alertou e disse. Porém, não para somar sua voz ao coro dos arrependidos que acham que mostram generosidade criticando, mas para alertar os condutores desses processos, para contribuir, na medida em que ele se considerava capaz de fazê-lo, para vitalizá-los, para impedir que as burocracias sempre ávidas se instalem em remotos gabinetes, sempre inacessíveis ao povo.

Em um artigo publicado no dia 9 de outubro de 1983, no jornal El País, de Madri (cujo pretexto mais evidente era a conjunção astral do título do romance de George Orwel, 1984, com o ano que despencava sobre nós com suas apocalípticas ameaças), Cortázar explicou claramente sua postura:



Eu me movimento no contexto dos processos libertadores de Cuba e da Nicarágua, que conheço de perto; se critico, é por esses processos, e não contra; aqui se instala a diferença com a crítica que os rejeita de saída, embora nem sempre o reconheça explicitamente.



E concluía assim:



Frente a esta perspectiva, só creio no socialismo como possibilidade humana; mas esse socialismo deve ser uma fênix permanente, deixar atrás a si própria no processo de renovação e de invenção constantes; e isso apenas poderá ser obtido através de sua própria crítica, da qual estas anotações são vagos fragmentos.



Julio Cortázar era um militante apaixonado por aquilo que considerava as causas mais justas da América Latina, mas detestava ser qualificado de “escritor comprometido”, pelo que a expressão supõe de acatamento. Em uma carta enviada a seu amigo Roberto Fernández Retamar e publicada na revista da Casa das Américas, de Cuba, em 1967, definiu claramente sua postura:


Aceito, então, considerar-me um intelectual latino-americano, mas mantenho uma reserva: não é só por isso que direi o que quero dizer aqui. Se as circunstâncias me situam nesse contexto e dentro dele devo falar, prefiro que se entenda claramente que o faço como um ser mortal, digamos claramente, como homem de boa fé, sem que minha nacionalidade e minha vocação sejam as razões determinantes de minhas palavras


E, um pouco mais adiante, acrescentava:


(...)


Até amanhã!


In.O Fascínio das palavras.Trad.: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p.11-13

Imagem:http://floresderetorica.files.wordpress.com/2007/06/cortazar6.jpg

Julio Florencio Cortázar





Com a sensibilidade de um grande jornalistar, Omar prego relata momentos de itimidade do autor argentino. Como o entusiasmo de Julio com o projeto da capa do livro "Os autonautas de La cosmopista", escrito a quatro mãos com a mulher Carol Dunlop. Mostra um Cortázar sensível, reflexivo, crente na influência do astros em sua vida.





“Estou agora sob a influência de uma constelação ruim. E isso, há anos. Espero que mude”

Certa manhã, antes de começar a trabalhar, mostrou-me um projeto de capa da edição espanhola de Los autonautas de La cosmopista, em cuja contracapa aparece uma bela foto de Carol. Julio está sentado em primeiro plano, em sua cadeira de balanço favorita, com os braços dispostos de tal forma que a mão esquerda se levanta até seu ombro direito, ali, onde podemos imaginar que um instante estava pousada a mão direita de Carol, que está de pé, atrás da cadeira, um pouco à direita. O braço de Carol se apóia no ombro esquerdo de Julio, mas não há peso. Olhando com atenção, podemos reparar que a posição dos braços de ambos se corresponde de tal maneira que parecem formar um desenho, há uma continuidade do traço que sai da mão de Julio, sustenta seu cotovelo esquerdo, prolonga-se pela mão pousada no ombro, se entrelaça com a mão de Carol (embora na realidade haja apenas um contato de dedos) e se prolonga no braço direito de Carol, para voltar a fechar no braço esquerdo apoiado no ombro de Julio. Os dois estão nos olhando, quer dizer, olhando fixamente para a objetiva da câmara de Carlos Freire. Há uma luz rasante que vem da direita, que golpeia as figuras imóveis e que, inevitavelmente, faz lembrar o museu de província que Diana visita em “Fin de etapa”, nessa cidadezinha que parece “fora do tempo”, uma luz que parece haver se concentrado nos olhos de Carol e Julio. Os dois estão olhando fixamente a câmara com uma expressão que poderia ser descrita como sendo de serena determinação. É um olhar de intensa felicidade e, ao mesmo tempo, de temeroso desafio, como se no lugar de estar olhando para a câmara (ou seja, para nós) estivessem olhando para uma presença que houvesse se materializado de repente nesta slaa clara, austera, de paredes brancas, deslizando-se em silêncio para se manter em pé, um pouco atrás do fotógrafo, demasiado ocupado com suas alquimias de diafragmas, velocidades e campos para perceber essa aparição casual e instantânea.

Olham, pois, essa presença sem se surpreender, sem pestanejar frente a seu olhar esquisito e de certa forma possessivo, sem sobressaltos ou desafios, aceitando-a mas dispostos a enfrentá-la com as únicas armas de que dispõem, as de seu amor. Não a temem nem se aborrecem com ela, sabem que ela os espreita há tempos, aprenderam a reconhecê-la num instante, já que lutaram contra ela e estão decididos a continuar o combate, a driblar suas astúcias de viúva inconsolável.

Estou agora sob a influência de uma constelação ruim. E isso, há anos. Espero que mude”, disse. Depois falamos sobre outras coisas e não lembro se voltamos ao assunto. Mas naquele dia, ao sair da casa de Julio, comecei a andar pelo boulevard Magenta, até a gare de l’Est. Vi então um desses furgõezinhos usados pelas videntes e quiromantes para trabalhar. Em cima da porta estava escrito “Josiane”, que devia ser o nome da mulher. O furgão estava parado na esquina de rua Saint Laurent. Como não associar o nome ao de Josiane de “El outro cielo”, com o misterioso Laurent que assassinava prostitutas com um método diabólico e infalível no bairo de La Bolsa e na zona das galerias cobertas da rua Vivienne e na Passage de Panoramas? Decidi contar a Julio no dia seguinte o que tinha visto. Não sei por que, não contei nunca. Freud sabe coisas que a razão ignora.

Creio que Julio morreu finalmente sem saber (sem querer aceitar) que morria. Pelo menos não parecia acreditar, na última vez em que nos vimos, nos hospital Saint-Lazare. Sua mulher Carol, sim, sabia o que estava acontecendo, mas ela morreu antes e preferiu não falar nada, quando ainda era possível. Limitou-se a esperá-lo em sua tumba do cemitério de Montparnasse, em cuja lápide de mármore estava escrito apenas o seu nome. Carol Dunlop, seguido de um sinal que chamamos de ‘hífen’ (embora aqui eu prefira a expressão francesa trait d’union), ao qual agora foi acrescentado o nome de Julio Cortázar.


In.O Fascínio das palavras.Trad.: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p.10-11.


Flashes Culturais





RESULTADO DO 37º FESTIVAL DE CINEMA DE GRAMADO














Melhor Filme: "Corumbiara" de Vincent Carelli
Melhor Diretor: Vincent Carelli por "Corumbiara" e Paulo Nascimento por "Em Teu Nome"
Melhor Ator: Leonardo Machado por "Em Teu Nome"
Melhor Atriz: Vivianne Pasmanter, por "Quase Um Tango..."
Melhor Roteiro: Sérgio Silva, por "Quase Um Tango..."
Melhor Fotografia: Katia Coelho por "Corpos Celestes"
Prêmio Especial do Júri: "Em Teu Nome", de Paulo Nascimento
Melhor Diretor de Arte: Fabio Delduque, por "Canção de Baal"
Melhor Trilha Musical: Andre Trento e Renato Muller por "Em Teu Nome"
Prêmio da Crítica: "A Canção de Baal", de Helena Ignez
Melhor Filme do Júri Popular: "Corumbiara" de Vincent Carelli
Melhor Filme do Júri de Estudantes de Cinema: "Corumbiara" de Vincent Carelli
Melhor Montagem: Mari Corrêa, por "Corumbiara"



Longa Metragem Estrangeiro:


Melhor Filme: "La Teta Asustada", de Claudia Llosa
Melhor Diretor: Claudia Llosa, por "La Teta Asustada"
Melhor Ator: Horacio Camandule, por "Gigante" e Matías Maldonado, por "Nochebuena"
Melhor Atriz: Magaly Solier de "La Teta Asustada"
Melhor Roteiro: Adrián Biniez, por "Gigante"
Melhor Fotografia: Guillermo Nieto, por "Lluvia"
Prêmio Especial do Júri: "La Próxima Estación" de Fernando E. Solanas
Prêmio da Crítica: "Gigante", de Adrian Biniez
Melhor Filme do Júri Popular: "Lluvia" de Paula Hernández
Melhor Filme do Júri de Estudantes de Cinema: "La Teta Asustada" de Claudia Llosa


Curta Metragem


Melhor Filme: "Teresa" de Paula Szutan e Renata Terra
Melhor Diretor: Paula Szutan e Renata Terra, por "Teresa"
Melhor Ator: Miguel Ramos, por "Teresa"
Melhor Atriz: Juliana Carneiro da Cunha, por "O Teu Sorriso"
Melhor Roteiro: Davi Pires e Diego Müller, por "Teresa"
Melhor Fotografia: Andre Luiz de Luiz, por "Ernesto no País do Futebol"
Prêmio Especial do Júri: "Olhos de Ressaca" de Petra Costa
Melhor Diretor de Arte: Diogo Viegas, por "Josué e o Pé de Macaxeira"
Melhor Trilha Musical: Leonardo Mendes, por "Josué e o Pé de Macaxeira"
Melhor Montagem: Gustavo Ribeiro, por "Teresa"
Prêmio da Crítica: "O Teu Sorriso", de Pedro Freire
Melhor Filme do Júri Popular: "Josué e o Pé de Macaxeira" de Diogo Viegas
Melhor Filme do Júri de Estudantes de Cinema: "Olhos de Ressaca" de Petra Costa
Mostra Gaúcha:
Melhor Filme: "De Volta ao Quarto 666", de Gustavo Spolidoro
Melhor Direção: Leonardo Remor, por "Sobre Um Dia Qualquer"
Melhor Ator: Nelson Diniz, por "Quiropterofobia"
Melhor Atriz: Sissi Venturin, por "Sobre Um Dia Qualquer"
Melhor Roteiro: Davi Pires e Diego Müller, por "Teresa"
Melhor Fotografia: Matheus Massochini, por "Sobre Um Dia Qualquer"
Melhor Direção de Arte: Guilherme Pacheco, por "Sobre Um Dia Qualquer"
Melhor Música: Sérgio Rojas, por "Jogo do Osso"
Melhor Montagem: Marcos Lopes, por "Sobre Um Dia Qualquer"
Melhor Edição de Som: Cristiano Scherer, por "Livros no Quintal"
Melhor Produtor / Produtor Executivo: Regina Martins, por "Mapa-Mundi"



Julio Florencio Cortázar

Nesta parte do texto, Omar fala do dia-a-dia com Cortázar, da predileção dele (Cortázar) pela música, especialmente pelo jazz.Toca em um dos pontos que mais incomodavam o escritor argentino: a ditadura militar no seu país. Boa Leitura!





(...)



Começamos a trabalhar nos primeiros dias de julho, na sua casa da rua Martel. A casa de Julio ficava num daqueles edifícios antigos de Paris, com uma dessas pesadas portas com barras de ferro esverdeadas, enferrujadas em alguns pontos, que dava para amplo corredor que se abria em sucessivos pátios internos. O edifício estava cheio de escritórios de empresas têxteis, de modo que a partir das seis da tarde, quando terminava o expediente, tinha-se a impressão de estar entrando no edifício mais solitário do mundo. O apartamento de Julio ficava nos fundos, no pavilhão C. Era preciso subir uma larga e interminável escada de madeira, cujos degraus pareciam lixados por inúmeros passos. O apartamento de Julio era muito grande. Tinha um hall rodeado por estantes abarrotadas de livros que iam até o teto e em seguida um vasto salão, com janelas altíssimas. À esquerda havia um móvel de madeira que dividia o ambiente. Atrás ficava a cozinha. Na sala de estar havia grandes poltronas, um equipamento de som e estantes cheias de discos e fitas, cuidadosamente classificados. Esta era a região preferida pela gata de Aurora Bernárdez.

Trabalhávamos em um escritório espaçoso, de paredes brancas como o resto da casa, e duas delas estavam ocupadas por estantes que iam até o teto. Numa terceira parede havia armários onde Julio guardava pastas com recortes de jornais e revistas, e uma biografia de Keats, o poeta romântico inglês, que ele havia escrito na década de 1950, em Buenos Aires, antes de se mudar para Paris. O telefone não tocava nunca (havia uma secretária eletrônica) e as únicas pessoas que andavam pela casa eram Aurora Bernárdez, que ofereceu a Julio toda sua atenção e amizade, e uma mulher extremamente discreta que vinha fazer a limpeza e deixar a casa em ordem. Aurora ia cedo para seu trabalho na Unesco – mais de uma vez encontrei-os tomando café da manhã – depois de verificar que tudo estava em ordem.

Trabalhávamos quase sem pausa por três ou quatro horas. Julio sentava-se em sua poltrona giratória, de costas para uma janela que se abria para a rua do Paradis. Nos primeiros tempos, nos meses de julho e agosto, Julio parecia estar bem, aceitava de bom grado as perguntas e tenho a impressão de que pouco a pouco foi se deixando tomar pela idéia de que o livro – que já havia sido aceito pela Editora Gallimard – podia ser uma boa oportunidade para dizer algumas coisas que tinha guardado até então.

“Nunca tinha dito isso antes”, “estou dizendo isso pela primeira vez”, falava às vezes. E mais de uma vez começamos a nossa conversa voltando a um tema do dia anterior, a pedido do próprio Julio: “As melhores resposta me ocorrem depois de você ter ido embora”, dizia. Um dos poucos temas que decidimos deixar para depois, para uma ou duas entrevistas de balanço final e encerramento, foi o de sua viagem à Argentina em dezembro de 1982, após uma longa ausência imposta por aqueles anos sombrios e terríveis da ditadura militar e dos esquadrões da morte, essa alucinante noite de terror que tanto o machucava e acossava, e cuja angústia pode ser sentida em alguns de seus contos mais recente, como “Graffiti” ou “Segunda vez”. De qualquer maneira, no seu regresso, falamos um pouco sobre o que encontrara na Argentina. “A Argentina mudou, é claro. Está começando a sair de um pesadelo de ditadura e tirania. Há muitíssimo para ser feito.” Mas ele se mantinha alerta, com se temesse o regresso dos velhos demônios. “Eu não acredito que a palavra “esquerda” tenha deixado de ser maldita em meu país. Espero o dia em que isso acabe”, me disse em outro dia.

Tinha planejado uma nova viagem para março, e confiava em que os argentinos não apenas compreenderiam que a palavra “esquerda” não era maldita, mas, “uma das melhores que existem na linguagem política, talvez a melhor”. Disse-me também que essa oportunidade que os argentinos estavam tendo era provavelmente a última: “Se o governo de Raúl Alfonsín tropeçar numa oposição cega e negativa, eu não estranharia se daqui a pouco tivéssemos de novo os militares, que estão esperando a sua vez agrupados nos quartéis.”

Muitas vezes me perguntei (e mais ainda me pergunto agora, nesse desolado vazio em que sua morte deixou) se Julio suspeitava que a morte o rondava, como havia feito dois anos antes com Carol. Em todo caso, nunca me disse nada. Estava muito magro, com os ossos dos ombros marcando o pulôver, com se quisessem sair da pele. Os pômulos, larguíssimos, tinham se acentuado e a espessa baraba negra marcava-lhe o rosto, ocultando as faces abatidas. Ele se queixava de uma incômoda coceira e às vezes trazia uma garrafa de água mineral e dois copos, e de vez em quando bebia calmamente, enquanto eu fazia uma pergunta ou mudava a fita.

Algumas vezes, ao terminar a jornada de trabalho, sentávamos na sala para tomar uísque. “Acho que merecemos”, dizia Julio e sorria. Nesses momentos não falávamos de literatura, nem de política: falávamos de música, invariavelmente. Julio tinha uma coleção fora do comum de discos e fitas de jazz, de música clássica e tangos, e explicou que gostava de sentar para escutar dois ou três discos à noite, colocando os fones de ouvido para não atrapalhar os vizinhos.

Além disso, tinha descoberto que escutar música com fones de ouvido era “uma coisa”. Em seu livro póstumo Salvo El crepúsculo”, escreveu um capítulo inteiro sobre esse assunto, explicando como a música ouvida com fones parece brotar do interior do cérebro, ao invés de vir de fora: “Árvore interior: o primeiro emaranhado instantâneo de um quarteto de Brahms ou de Lutoslavski, dando-se em toda sua ramagem.”

Apenas uma vez, lá por setembro de 1983, me telefonou para cancelar um encontro, e depois eu soube que ele tinha passado mal. E em outra ocasião interrompemos uma entrevista porque percebi que ele estava muito cansado. Naquele dia, ao nos despedirmos, Julio disse: “Hoje não fomos muito bem, mas não importa, descontaremos na próxima.” Ele se ocupava muito com que tudo ficasse claro e, mais de uma vez, quando citava algum autor ou recordava alguma passagem de um de seus livros, levantava-se para ir buscar o volume em questões e verificar a citação.


(...)


Amanhã tem mais !



In.O Fascínio das palavras.Trad.: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p.7-9.

Foto by Pierre Boulat - Paris, 1969.

Julio Florencio Cortázar


Como eu havia prometido, continuamos com o texto de Omar Prego sobre o encontro dele com Julio Cortázar em Paris. As fotos, também tiradas na Cidade Luz, em 1969, são de autoria de Pierre Boulat.


A todos, boa leitura!





(...)

Nós tínhamos nos conhecido em fevereiro de 1974, numa exposição de hiper-realistas norte-americanos, na Fundação Rockefeller de Paris. Ele era exatamente igual às fotografias: desmesuradamente alto, ossudo, desajeitado, e parecia caminhar com o permanente receio de esbarrar em algo. Naquela época tinha sessenta anos, mas ninguém lhe daria mais do que 45.

Lembro-me de ter esperado que terminasse sua visita – estava com um amigo – para me aproximar. Disse-lhe que eu era (um jornalista uruguaio que acabava de desembarcar em Paris) e expliquei-lhe a razão de estar importunando-o. Acabavam de prender, em Montevidéu, o escritor Juan Carlos Onetti, sob a absurda acusação de pornografia, pelo fato de haver sido jurado num concurso de contos organizado pelo semanário Marcha, de longa tradição de luta e dignidade e que fora fechado naquela mesma ocasião. Contei que também Carlos Quijano, diretor e fundador do semanário, estava preso.

Ouviu-me com cortesia, disse-me que já estava a par dos fatos, mas pediu-me mais dados e garantiu que iria fazer o que estivesse ao seu alcance para alertar a opinião pública. A promessa foi escrupulosamente cumprida, como todas que fez. Recordo-me que falamos numa grande escadaria de mármore na entrada, de pé, junto a uma escultura hiper-realista que representava um típico turista norte-americano, vestido com bermudas e uma vistosa camisa havaiana, óculos escuros, um boné com viseira, igual aos dos jogadores de beisebol, e uma ou duas máquinas de fotografia (de verdade) cruzadas no peito. A escultura parecia interessada em nossa conversa e estar disposta a participar dela, a qualquer momento.

Depois, continuamos a nos encontrar com certa freqüência, e acabamos ficando amigos. Em dezembro de 1982, depois da morte de Carol, propus a ele que fizéssemos uma longa entrevista, um livro que pudesse abarcar (se isso fosse possível, eu sabia muito bem que muitas coisas ficariam de fora) sua vida de escritor e combatente das causas que considerava mais justas no mundo, sobretudo o frágil processo nicaragüense, que o deixava muito angustiado naquele momento, e a defesa dos direitos humanos.

Concordou sem vacilar, mas me adiantou que em princípio teria que ser “um livro muito louco”. Combinamos fazer um número indeterminado de entrevistas – dez ou 12 no mínimo – que marcaríamos ao longo do trabalho, encaixando-as nos escassos intervalos de sua agenda, onde aliás nunca sobravam momentos livres.

Foi então, enquanto olhávamos as pilhas de encontros marcados, compromissos de militância em sua maioria, que ele me disse: “Estou pensando em transformar o ano que vem em um ano sabático. Sinto necessidade de me recolher para escrever um romance, custe o que custar.” Perguntei se já havia começado a escrever e respondeu que não. “Algumas anotações. Mas comecei a pensar nisso. Vejo o romance como uma nebulosa.”

Advertiu-me que provavelmente não poderíamos começar a trabalhar antes do verão. Tinha primeiro que terminar o texto que a morte de Carol deixara inacabado (Los autonautas de La cosmopista), um belíssimo livro onde é narada a viagem entre Paris e Marselha em uma Kombi desengonçada – realizada em 33 dias sem nunca sair da estrada e com escala em dois estacionamentos a cada dia, sendo que era obrigatório dormir no segundo – e que, no fundo, é uma comovedora história de amor. Depois, pensava em viajar para a Nicarágua e, no seu regresso à Europa, descansar alguns dias em casa de amigos, na Espanha.


(...)

Até amanhã!



In.O Fascínio das palavras. Omar Prego. Trad.: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 5-6.
Foto by Pierre Boulat - Paris, 1969.

Julio Florencio Cortázar

Ontem, vimos o belo texto de Eric Nepomuceno, na orelha do livro de Omar Prego “O Fascínio das palavras” sobre o Escritor argentino Julio Cortázar. Hoje, é o próprio Omar Prego quem fala sobre Julio Cortázar, mais precisamente sobre a amizade deles dois (Omar e Cortázar). O texto, postado a seguir, faz parte da Introdução ao livro.

Por ser muito interessante tudo o que Omar Prego diz sobre o autor de “O Jogo da Amarelinha (no original, Rayuela – 1963), acho importante presentear os leitores do Blog transcrevendo aqui esse depoimento. Por ser o texto um pouco extenso, levaremos alguns dias para publicá-lo por inteiro. Sendo assim, peço um pouco de paciência, na certeza de que, ao final, todos sairão mais enriquecidos e humanizados.





(...)



Nós nos encontramos pela primeira vez na sexta-feira, 20 de janeiro de 1984, em seu pequeno quarto no hospital Saint-Lazare, em Paris, que está a uns parcos 150 metros de sua casa na rua Martel. Não me lembro exatamente a que horas nos despedimos. Não havia nenhuma razão especial para que eu anotasse esse detalhe, mas de qualquer maneira devia ser lá pelas sete da noite, quase esbarrei no enfermeiro que trazia a comida.

Julio estava sozinho, sentado numa poltrona, o olhar perdido na janela que dava para um pátio interior sombreado, como se escutasse a chuva. Vestia um roupão velho e parecia mais animado que no dia anterior, quando eu havia estado ali com minha mulher. Ele tinha nos contado, na presença de Saul Yurkievich e sem nenhum rodeio, que quase morrera durante um dos exames que fizera na seção de gastroenterologia do hospital, considerada uma das melhores de Paria.

“Fiquei sem pulso e todos pensaram que eu ia morrer ali mesmo”, nos disse.

Porém, naquela sexta-feira, 20 de janeiro, as coisas pareciam estar um pouco melhores. “Estou farto dessa comida e do barulho que essas moças fazem de manhã. As enfermeiras daqui parecem não conhecer as solas de borracha. Sapateiram e cantam pelos corredors sem o menor cuidado”, lamentou-se com resignação.

Ficamos conversando durante uma meia hora, mas ele estava visivelmente cansado. “Quero dormir, não sei se vou conseguir. E essa comida, melhor nem falar! Não é que seja ruim. Mas, quando eu chegar em casa, a primeira coisa que vou fazer é preparar um belo bife, bem alto. Seja como for, saio amanhã. Meu médico, professor Modigliani – já pensou? Modigliani! Tenho uma espécie de sina com os pintores -, me mandou para casa, desde que eu volte, semana que vem, todos os dias para continuar com os exames.”

Combinamos que Julio me telefonaria quando saísse do hospital. Ele se levantou para me estender mão, e nos despedimos. “Quando tudo isso acabar, vamos passear num bosque. Não precisa ser muito longe: Vincennes ou Fontainebleau. O que eu quero é ver árvores”, disse. Deixei o Le Monde para ele, com uma entrevista de Antônio Cândido. Antes de sair, vi que em seu criado-mudo havia uma pequena pilha de livros e algumas cartas, escritas à mão.

Essas são as últimas palavras que lembro dele: “Eu quero ver árvores.” Morreu no domingo, dia 12 de fevereiro, pouco depois do meio-dia, e o enterramos no cemitério de Montparnasse, às onze e meia da manhã, na tumba de sua mulher, Carol Dunlop, que morrera em novembro de 1982. Era uma manhã fria, mas de uma luminosidade quase que sobrenatural para quem está acostumado com o céu acinzentado e pesado de Paris no inverno. O sol batia nas arestas de mármore dos panteões e nas chapas e bronze, e somente as copas das árvores se moviam levemente na brisa matinal. O mais impressionante, porém, era o silêncio. Desde que o cortejo se pôs em marcha na entrada do cemitério e nos encaminhamos para a tumba recém-aberta, não me lembro de ter escutado uma única palavra. O único ruído, semelhante ao do mar numa praia pedregosa, era dos pés se arrastando pelo caminho principal, atrás do furgão mortuário. Depois, cada um dos amigos deixou cair uma flor sobre o caixão de madeira polida, e fomos embora. Minha mulher e eu ficamos um pouco afastados, e, quando aquela zona do cemitério ficou vazia, dois ou três gatos esquálidos e friorentos apareceram entre as tumbas e nos olharam à distância, indiferente.


(...)

Continuaremos amanhã





In.O Fascínio das Palavras.Omar Prego. Trad.: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p.4-5.

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