Um olhar sobre as diferenças




A muda da minha rua falou-me das estrelas,
com ela aprendi a escutar o rio da minha infância










Por Francisco Perna Filho




Ao nascermos, a primeira leitura que fazemos do mundo é a leitura sensorial: os sons, as cores, os cheiros, a temperatura, as texturas, os sabores. Daí, passamos para abstração do mundo, começamos a sair do concreto para o abstrato, vamos eliminando as figuras; passamos ao simbólico, às sentenças, ao descortínio do que se nos apresenta implícito, nas entrelinhas. Tornamo-nos críticos do mundo e das coisas, senhores do nosso nariz, da nossa boca, do nosso paladar, do nosso cheiro, do nosso som. Espelhos de uma sociedade perfeita, aparelhada de um estado perfeito, de uma justiça perfeita, de um legislativo perfeito, portanto de homens perfeitos. Democraticamente perfeitos.

Descoberto um mundo não tão perfeito, ou quase imperfeito, modificamos a nossa crença, antes absoluta, para um aprendizado de realidades outras: os nossos pares são tão imperfeitos quanto nós, mas não se dão conta disso, até serem colocados à prova da convivência, quando os pré-conceitos afloram, quando a razão é imperativa e degrada, alija e maltrata.

Começamos a nos redescobrir como seres sensíveis, dotados de sentidos e de intuição; capazes de sentimentos e de reflexão. Passamos a valorizar o que somos e o que temos. Passamos a olhar o mundo, outra vez, com os olhos infantis para o descortino de um tempo ainda não corrompido. Um mundo vibrante, de formas e cores; de sons e cheiros. Redescobrimos a beleza do simples, para uma contemplação de plenitudes.

Reabilitamo-nos para a convivência plena: sem preconceito, sem discriminação, sem qualquer estigma. O outro nas suas particularidades, com as suas diferenças, com as suas idiossincrasias. O outro que - ao nos mostrar aquilo que somos - nos habilita para recifração de um mundo mais humano e pleno.




Imagem: Pieta - Jan Saudek, Fotografo Tcheco - born 1935-

Olhando o homem, o peixe se reconhece




Por Francisco Perna Filho






Há dias em que estamos mais leves, longe dos problemas comuns, libertos de toda preocupação, quando movidos pela busca da paz, da tranquilidade, buscamos nos acomodar à beira de um riacho, de um lago; à sombra de uma árvore ou guarda-sol, para deleitar as horas de harmonia com o universo.

Ciceroneado pelo amigo, poeta e jornalista, Sinésio Dioliveira, conheci um pesque-pague dos mais aprazíveis, em Goiânia, mais precisamente ao lado da Vila Muitirão. Foi uma surpresa, pelo fato de antes ele haver me convidado e eu nunca ter aceitado, ou melhor, nunca ter dado certo para que eu fosse conhecer aquele lugar tranquilo, de paz e muitas surpresas, a começar pela pescaria em si, atividade que o meu amigo Sinésio, segundo ele mesmo, é um expert.

Pois bem, chegamos ao local, ao pesque-pague, logo na entrada estava escrito: “Tambaquis e Tucunarés, só para pesca esportiva”. Entramos, o Sinésio pediu uma isca, algumas cervejas e fomos para a labuta; e que labuta! Armamos a tralha toda: anzol, chumbada, vara de pescar, carretilha e isca, tudo o que era preciso para uma boa tarde de pescaria, segundo os entendidos.

O meu amigo atirou a isca aos peixes, um silêncio apoderou-se da tarde, fez-nos contemplativos e esperançosos: dois homens e a vastidão do mundo, assombrados com o encantamento do lago, com a solidão da espera, prestes a refletir o peixe no seu morredouro: “morrer pela boca”, como diriam os nossos pais.

Estávamos ali, numa expectativa de águas, espectadores serenos da longa espera do peixe que não vinha; da linha frouxa a deslizar pela água fria, quando virei-me para ele, para dizer que talvez fosse eu o empecilho, talvez a minha energia o estivesse impedido de pegar muitos peixes, como era de costume, já que não sou afeito a jogos e pescarias, esta última só praticava quando criança, no Rio Tocantins. No que ele me tranqüilizou: “fique calmo, sempre que eu venho aqui pesco um bocado, logo vamos fisgar um”.

Após ser tranquilizado pelo amigo, continuamos nossa peleja: o homem, a linha, o lago e os peixes. Mais uma vez a isca fora atirada a esmo. Enquanto isso, a menos de duzentos metros, um senhor fazia a festa na pesca esportiva: pescava e soltava os pescados, ou melhor, os grandalhões, principalmente as Caranhas. E nós? nada! Continuávamos na longa espera, fisgados pelos peixes que tentávamos pescar, já que alguns deles, à nossa frente, alegres e saltitantes pareciam saber do nosso intento e, por isso, ironizavam a nossa labuta.

O amigo Sinésio, na sua paz e calma interior, tranqüilizou-me dizendo que era assim mesmo, logo fisgaríamos um grande. Tentamos, fisgamos dois, mas eram fortes e escaparam, um deles levou o anzol. Ficamos boquiabertos, mas tudo era festa, confraternização. O amigo saiu, foi ao bar e pediu para fritarem um peixe do estoque deles, por sinal, muito saboroso. Continuamos na lida: isca aos peixes, cerveja como refresco; peixe na linha, só no pensamento.

Já escurecia, quando a linha ficou tesa, sentiu-se um puxão, e ali estava o bruto, o gigante, o inominado prêmio das águas, um peixe pesando “meio quilo”, uma Caranha de dar água na boca, para alegria do meu amigo, que já se tinha como um grande contador de histórias, história de pescador.


Impression, Sunrise, 1872 - Claude Monet, Pintor Francês (Impressionismo) - 1840-1926 - (Musee Marmottan, Paris)


Ouvindo a própria voz



Por Francisco Perna Filho












Tudo foi muito estranho e engraçado, lembro-me bem, eu estava na rodoviária de Miracema do Norte, não posso precisar o ano, década de 70, quando vi pela primeira vez um gravador e ouvi a gravação que dele saía. Fiquei encantado. Como seria possível aquilo?

Cheguei em casa deslumbrado com o novo conhecimento, com a nova tecnologia. Meses depois, meu Pai foi a Goiânia e nos presenteou com um belo gravador, último tipo, genuinamente japonês, uma maravilha. Passamos a gravar todos os sons que encontrávamos, que fazíamos acontecer, desde batidas em latas, até o som da descarga do banheiro, tudo com muito entusiasmo e graça.

Passamos a gravar as nossas conversas, as conversas dos vizinhos. Brincávamos de espiões, cantávamos e nos dizíamos cantores, artistas. Enquanto isso, uma montoeira de fitas K-7 ia se acumulando nas estantes da casa, compondo a nossa coleção. O certo é que éramos puro entusiasmo, o mesmo que tínhamos pelos inúmeros livros da minha infância.

São agradáveis lembranças, mas, o mais agradável, o inusitado, o puro estranhamento, deu-se na fazenda Caridade, do meu avô materno, quando, à noite, nas reuniões que fazíamos, sob a luz dos candeeiros e lamparinas, no pátio da casa grande, o meu pai, Francisco Nolêto Perna; meus avós, vovô Antônio Nolêto e vovó Euzébia Nolêto; minha mãe, Adalgisa Nolêto; meus irmãos; meus amigos que levávamos; os vaqueiros; e os trabalhadores da fazenda estávamos conversando e, depois de muita conversa, após termos ouvido o pífaro de taboca do seo Tonhão, meu pai pediu silêncio. Todos silenciaram, e ele, meu pai, apertou o PLAY do gravador para ouvirmos as nossas falas, as conversas ali travadas, o som ancestral do seo Tonhão. Foi o êxtase total, uma cena indescritível, se considerarmos o rosto, o deslumbramento de cada um. Deus ali se manifestara, o mito, a cosmogonia, os espíritos ancestrais orquestravam aquele evento.

Talvez, se fosse hoje, nada de extraordinário aconteceria, ainda mais por se tratar de ouvir a própria voz, uma simples gravação não causaria tanto entusiasmo, numa época de instantaneidade, de tecnologias que capturam a voz, a imagem, os movimentos e, para muitos, a aura de cada um.

As lembranças da infância são para sempre, não se apagam, boas ou ruins, estarão sempre presentes, como podemos ver no filme O Caçador de Pipas (The Kite Runner), Direção de Marc Forster, baseado no romance do afegão Khaled Hosseini (2003), que conta a história de Amir (Khalid Abdalla), um garoto Pashtun rico de Wazir Akbar Khan, distrito de Cabul, que é atormentado pela culpa de ter traído seu amigo de infância, Hassan, filho do empregado do seu pai, Hazara Uma história comovente, de perdas encontros e desencontros.

Falo do filme, porque foi ele que me fez reviver este fato do gravador, uma história não de tristeza, mas de alegria, de boas lembranças, quando silenciávamos para ouvir a nossa voz, amparados pela luz das lamparinas, dos candeeiros e, muitas vezes, da lua cheia que nos acompanhava. Uma lembrança gostosa de descoberta e aprendizado.



Imagem: Vincent's Room, Arles, 1888 - Vincent Van Gogh, Pintor Holandês (Pós-Impressionismo) -1853-1890 - (Van Gogh Museum, Amsterdam, Netherlands).

Ternura, talvez seja o que nos falta


Por Francisco Perna Filho











Cada um deve comportar os seus abismos, apesar da insuficiência de muitos, que, a reboque, carregam uma dor bem maior do que suportam e, por isso, precisam de ajuda, de compreensão, de quem lhes garanta o pão de cada dia e a doce palavra de consolo.

Talvez não saibamos, ainda, da nossa impotência. Do tempo que, célere, nos conduz. Das tragédias diárias que teremos de enfrentar. Da dor progressiva de quem chora a depressão. Do triste olhar de quem há muito perdeu a esperança. Pouco sabemos da nossa desumanidade, já que o nosso interesse é pelo corpo, pela forma, pelo poder e dinheiro.

Se pouco sabemos, é porque a nossa ignorância é bem maior do que a vontade de enxergar a miséria humana - tão próxima de nós, tão dentro de nós – colocar-se no lugar do outro. Ser mais solidário, altruísta, sensato e irmão. Ninguém vence o mundo sem vencer-se a si mesmo. Ninguém dá carinho sem conhecê-lo.

Nada do que fazemos passa incólume aos olhos da natureza. Toda ação gera uma reação, isso é mais do que sabido. As nossas inimizades são do tamanho dos inimigos que possuímos. Os nossos delírios, aos olhos alheios, não passam de loucura. Ama-se o aprazível, o que é belo, o fácil.

Quantos se julgam dono do saber, do conhecimento, do estabelecimento que dirigem, da repartição onde trabalham. Quantos maltratam por insegurança, por incompetência e, por que não dizer, por pura maldade. Quantos, por inveja, desprezam, ofendem e, covardemente, perseguem.

Amar aquilo que se faz é, no mínimo, compreensível, agora, aceitar o outro nas suas diferenças, nos seus delírios, na sua impaciência, são atitudes enlevadas, dignas de humanidade, de sensatez, de libertação.

O mundo, as artes e o saber não têm donos, estão aí para os homens de fé, de coragem, de determinação e sensatez, apesar dos abutres que rondam as nossas cabeças tentando uma brecha para sua devoção.

Ternura, talvez seja o que nos falta, ou pelo menos, um pouco daquilo que necessitamos para enfrentar a turbulência da nossa desumanidade. Juntando a ela um pouco de carinho, afeto, atenção e empatia, sem sombra de dúvidas, o mundo tornar-se-ia mais mundo e menos imundo.




Imagem: The Helping Hand, 1881 - Emile Renouf, Pintor Francês - 1845-1894

CRIAÇÃO


Dá ao rei, ó Deus, o teu dom de julgamento,

E ao filho do rei o teu senso de justiça

(salmo 72 (71) – O Reino do Rei Messias)






Francisco Perna Filho



A madrugada é louça mal acabada,

e o oleiro tenso arremata o sonho,

moldando o barro da própria existência.


Deus de si mesmo, julga-se

capaz das próprias inconclusões

ao acompanhar o martelar das horas que ainda estão por vir.


Ele só, sozinho só, ali

atento aos ruídos de sua rudeza,

nos arredores de si mesmo,

silencia em pó, em pós, no reino.



The Creation of Adam, detail of Adam , 1508-12 - Michelangelo Buonarroti (Painter) Pintor, Escultor e Arquiteto Italiano (Alta Renascença) 1475-1564 - Sistine Chapel Ceiling - (Vaticano, Rome, Italy).

FRAGMENTOS


Francisco Perna Filho









O meu amor é feito de fragmentos,

mosaico de bocas e pernas

que foram ficando nas bancas de revistas,

torres de catedrais,

portos de rio,

e na celebração das praças.

No meu amar estou eu,

multiplicado cem vezes por mim,

temporal e relativo,

composto de absoluto.



Imagem: Study of a young Man Beside the sea. Hippolyte Flandrin. Pintor Francês 1809-1864 - (Musée du Louvre, Paris, France)

KOSOVO

Francisco Perna Filho












A dor da separação

castiga minh'alma.

A raça à qual pertenço

condena os meus passos.

A água que me dessedenta

congelou o meu grito.

Sirenes, explosões, desolação e mortes

eis o meu cardápio.

Que mal fiz aos adultos do mundo?

com cinco anos

e já participo das primeiras lições de ódio,

onde se urde, secretamente,

o desdém (DRESDEM) à raça humana.

Quisera ter nascido árvore,

sem clamor, sem dor,

sem família.

Quisera ter nascido lama

e, dessa forma, sem precisar

conviver com irmãos..

apodrecendo em cativeiros da loucura humana.

Quisera ter nascido pedra

para não ter de ver

tantos corações empedernidos

por ideologias.

Quisera não ter nascido!

Deus meu,

clamo pelo colorido das praças,

pela mesa posta em família,

pelos clows nas tardes de Domingo.

Clamo por todos aqueles que se perderam

no labirinto e, cativados pelo minotauro,

foram seduzidos ao ódio de uma guerra,

uma guerra, uma guerra.

Estou com cinco anos:

a lua acaba de se apagar.



In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.93-4.

Imagem: http://www.geocities.com/SoHo/Den/8823/kosopic.jpg

RUAS DE DOMINGO


Francisco Perna Filho













Ruas em movimento:

arredondadas, ovais, curvas

como os carros que comportam.

Por serem ruas, vias, caminhos

transportam o cheiro salobro do desencanto;

A fúria magenta da depressão,

o desejo compacto das virgens.

A carne das ruas é de metal pesado,

composta em vírgulas e interrogações,

Mal-passada, às vezes;

esturricada, outras,

mas sempre rua.

Olhando-as de cima, parecem riscos.

De baixo, rios infindáveis,

transportando almas.

As ruas suam ao meio-dia,

são turvas ao anoitecer,

são curvas na madrugadas,

e morrem a cada domingo,

a cada feriado,

trespassadas por si mesmas.



Imagem:http://i34.tinypic.com/10dfep2.jpg

O que sabemos a respeito de nós mesmos?



No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
Solitário, sem sol e sem saída.
(Dante Alighieri)





Por Francisco Perna Filho


A luz, que para muitos pode cegar, torna-se essencial para outros, já que enxergar é ir além do que a vista alcança, quando, ao traduzir o visível, ampliamos o sentido das coisas e, com elas, compomos a alegoria da existência.

Tudo o que sabemos a respeito de nós, de algum modo, nos foi dado a partir dos outros, a despeito de qualquer vontade nossa. Impressões que vão compondo os esteriótipos do mundo, apesar de serem, muitas vezes, rasas demais.

É bem certo que não sabemos quase nada, mas algumas respostas poderemos encontrar, quando passarmos a observar o mundo mais detidamente, e isso, de certa forma, poderemos aprender com a arte, bendito fruto dos nossos artistas, tributadores da nossa inexperiência, do nosso convívio, das nossas diminutas percepções. São eles redesenhadores de um mundo que sempre quisemos e queremos, coberto de humanidade.

Talvez jamais saibamos, embora necessitemos de um mínimo de compreensão para suportarmos essa árdua caminhada, arrebatados que estamos pelo mercado que nos segrega pela fúria de um capital que nos diferencia, pelo abismo imposto por todas essas diferenças que a “modernidade” nos impõe.
Quantas obras literárias teremos de ler para que alcancemos uma compreensão do que é humano, para saber que Quixotes são necessários à nossa sobrevivência, que as utopias alimentam a ilusão da nossa perenidade e, que com elas, refazemos, a cada dia, os nossos moinhos de vento?

De quantos Míchkin necessitaremos para humanizar o mundo? De quantos Riobaldos para nos revelar a profunda geografia das nossas obtusas almas? Quantos Lorcas para nos dizer das agruras de uma morte inocente? De Jivagos, laras, Kareninas, Bovarys, para sabermos o quanto dói a perseguição, a calúnia, a ofensa e a maldade que, nos nossos dias, têm sido freqüentes?

Tudo isso nos leva a refletir sobre o valor da arte, sobre as possibilidades que o artista tem para transformar as coisas. Tudo isso nos faz crer na transformação do espírito, nas cores de um novo amanhecer. Só a arte nos livra do tenebroso anoitecer da ignorância, só ela nos faz avançar para além do que nos prende.


ENRIQUECIMENTO DE URÂNIO - CONTO


Francisco Perna Filho










Urânio, até os 12 anos, era um menino retraído, raquítico, sem perspectiva nenhuma. Vivia numa casinha velha, de pau-a-pique, e não conhecia cidade grande. Cresceu ouvindo história de trancoso, superstições e outras inculcacões. Sempre dormiu em rede e criou-se andando a cavalo, correndo pelas quintas do seu avô, e nadando nu pelos riachos das cercanias.

Aos oito anos, ganhou da sua avó um pente de chifre e um espelhinho, daqueles ovalados, com a foto de uma mulher pelada. Depois disso, precipitava-se pelos córregos, matas, banheiros, buracos de portas, fechaduras, rachaduras nas paredes, debaixo das camas, sempre querendo roubar, nem que fosse por pequeno espaço de tempo, algum seio, bunda ou, simplesmente, a ligeira visão de uma comportada ou esvoaçada penugem.

Contava as horas para o banho das suas vizinhas, sempre com um olhar ligeiro, galopante nas suas fantasias. Inclinou-se, desde logo, para aquilo que ele viria, mais tarde, a chamar de predestinação: um empresário de corpos. Passou observar o sexo das éguas, cadelas e porcas, tentava fazer comparações com os de suas vizinhas, analisava tudo.

Descobriu algumas revistas de conteúdo explícito sobre sexo no armário do seu pai, roubando-as para folheá-las, quando ficava sozinho em casa. Passou a taramelar a porta do quarto e ficar horas trancado, chegando, muitas vezes, a causar preocupação à sua mãe, que, ao passar pelo quarto, ouvia o rangido das molas da cama, uns gemidos esquisitos e, logo após, um breve silêncio.

Passou a observá-lo mais, até descobrir que as meias do filho estavam desaparecendo, sem que ela soubesse como, só vindo a saber mais tarde, quando, por displicência de Urânio, que deixara a porta aberta, surpreendera-se com o filho deitado na cama, com o pênis vestido pela meia, cavalgando nas fantasias dele. Tentou voltar, mas já era tarde.

Urânio, aos 15 anos, invocou-se com a bailarina de um circo, que passava pela sua cidade, ficando preso a ela por um longo tempo, enclausurado, só saia à noite, quando ela precisava trabalhar. Apesar de a sua mãe implorar para que ele voltasse para casa, Urânio, contrariando os ensinamentos maternos, começou a dividir a amada com os colegas de rua, em troca de uns míseros reais. Não demorou muito, e toda a cidade passou a freqüentar a “Rua de Baixo”, e os fartos trechos de Ema, alcunhada de senhora dos aflitos.

Os negócios progrediam, e a notícia de Urânio se espalhou pelas cidades vizinhas, atraindo jovens, adolescentes, senhores, trabalhadores do campo, empresários; todos querendo alguns instantes de prazer e carinho; outros, atraídos pela curiosidade, do que para muitos não passava de especulação: bandinha, a “moça” que só tinha uma banda do sexo, que, por muitas noites tirou o sono de Urânio. Como ela, também tinha Pichula, uma anã de bunda farta, atração à parte, pela forma peculiar de olhar, seus olhos eram diferentes: um verde e o outro azul. Carmem, ou “cara quadrada”, era bastante gorda e fogosa, destacando-se pela forma do rosto e pelos sons que produzia quando fazia “amor”. Maria Angolista, uma sublimidade na cama, poço de lirismo e libido, que, ao chegar ao orgasmo, cantava: Tô fraca! Tô fraca! Tô fraca!. Tonha Vaga-lume, diziam, quando abria as pernas, uma luzinha acendia lá no fundo. Também tinha “Jurema Olho-de-porco”, umas das mais procuradas, pela peculiaridade do seu serviço; sem falar na descomunal “Lupéria Taturana-Bezerra”.

Urânio viveu dias de glória e reconhecimento, apesar da ingenuidade para certos assuntos, conseguia se sair muito bem com o negócio ao qual se propusera, chegando a ser cotado para prefeito da sua cidade, mesmo contrariando o padre, o pastor e alguns moralistas, que, mais tarde, também passaram a usufruir dos serviços da “Casa da Rua de baixo”.

Urânio tornou-se um poço de alegria e poder, cada vez mais solicitado e influente, ditava os dias de silêncio e as noites de gritos e descobertas, principalmente por ter a seu favor as molas do mundo: dinheiro e sexo. Viu-se convidado para tudo, inclusive, para apadrinhar crianças e noivos; já não distinguia as amizades do interesses. A todos tratava bem, quando era destratado, encarregava a Pau-de-Goiaba, um brutamonte maneta, de cabeça chata, e sem um fio de cabelo na cabeça, umas três sessões de descarrego no Lago da Piabinha.

Os tempos foram mudando, e Urânio sentiu necessidade de expandir os negócios, passou a importar travestis, transexuais e drag-queens, apaixonou-se, assim que viu “Olga Tamanduá Bandeira”, uma raridade na fauna daquela região. Por conta disso, descobriu-se bi, bitolado, amarrado, chegando a ponto de ser padrinho, em São Paulo, da Parada Gay. Foi quando se viu indignado ao ler numa manchete de Jornal: “Bush se diz contra o enriquecimento de urânio para fins bélicos”. Quase explodiu, queria saber o porquê daquele despeite, será que as pessoas não podiam ganhar dinheiro honestamente? Foram precisos dias para que ele pudesse entender que a manchete não se referia a ele.

Passado o constrangimento, Urânio viu-se envolvido num dos mais enigmáticos episódios de sua vida: numa sexta feira treze, quando cavalgava tranqüilo pela partes de Olga, sentiu-se como uma formiga, comprimido pelas garras e sugado pela tromba da sua amada, literalmente transformada em um tamanduá. Foi um “deus-nos-acuda”, uma verdadeira gritaria, até que alguém que já sabia da transformação, Zé Lambu, chegar com uma espingarda e desferir, com bala de prata, um tiro mortal na testa de Olga, que logo voltou à aparência humana, só que sem vida.

Depois daquele episódio, Urânio nunca mais foi o mesmo, foi outro. Envolvera-se em vários episódios não convencionais como seguir formigas em correição para devorá-las, abraçar por longas horas árvores e animais, e, de vez em quando, ficava de quatro para transportar folhas no seu dorso: do quintal para sentina, quando ali as depositava, voltado à forma ereta.

Sempre que se sentia só, ele saia pelas ruas enviesadas da imaginação, parava na velha igreja, no final da cidade, um olhar para além do que compreendia. Naquela tarde, ele parecia determinado a se ausentar de vez, cumpriu o que prometera, fincou os dedos na terra e, mortificado, ficou ali por toda noite, armazenando uma claridade intensa em todo o seu corpo. Já não se lembrava de mais nada, somente fitava o horizonte, o céu de um azul cobalto, até explodir em série, em risos, em Césio.




SÍNCOPE - CONTO



Francisco Perna Filho










As pernas não respondiam. Por mais que tentasse, nada. Estavam ali imobilizadas, soltas, distendidas, presas à cama. Algo que ele demorou a compreender. Somente tomando consciência da real situação em que se encontrava, quando, num átimo, sentiu um leve formigamento na perna esquerda, o que o fez, subitamente, tentar tocá-la, mas não pôde, estava preso, do tronco para baixo, totalmente à mercê do que ele sempre temera: a total dependência dos outros.

O quarto velho e desgastado compunha um ambiente triste e desolador, imprimindo no branco manchado de suas paredes a história de muitas vidas que por ali passaram. Do teto, também pintado de branco, um pouco mais conservado, pendiam duas finas correntes, nas quais os tubos de soro eram fixados, servindo, muitas vezes, aos olhos toldados de algum paciente, como apêndice dos seus delírios.

Era longe demais para chorar, para lembrar-se de qualquer coisa que o tornasse ao comum, ao familiar. Uma feição grave se apossou do seu rosto, parecia desconhecer tudo, inclusive a si mesmo, de quem não lembrava o nome. Tudo era muito longe, diria distante, como os dedos dos pés que não se mexiam, não serviam para nada, totalmente inúteis. Quem o teria deixado ali, que mal fizera para que um filho da puta qualquer o imobilizasse daquela maneira? Se pelo menos ele pudesse se lembrar de alguma coisa, um nome que fosse; quem sabe o dele.

Um desespero tomou conta de si, precisava acalmar-se, o corpo estava molhado de suor. Alguém veio, caminhou em sua direção, estacou ali, bem próximo dele, mas nada disse. Uma fragrância silvestre invadiu o quarto. Tinha de se segurar, não havia nada a fazer, era só esperar. Talvez alguém que viera acabar de fazer o serviço. Bastariam mais dois passos, o travesseiro, e pá! Acabou. Um verdadeiro pânico sobre ele se abateu.

Acenderam as luzes, e ele, como que aliviado, mas ainda sem saber de nada, contemplou os grandes olhos verdes da enfermeira que esboçara um sorriso, depositando a bandeja de remédios e seringas na mesinha ao lado da sua cama, quando, delicadamente e satisfeita, inoculou a agulha da seringa no tubo de soro, posteriormente prometendo que ele ficaria bom. Logo tudo acabará! Sentiu-se aliviado.

Por um momento, certo torpor, uma quentura percorrera-lhe o corpo, foi quando pôde divisar, do outro lado, numa cama parecida com a sua, um senhor de uns setenta anos, cabelo branco e escasso, todo entubado e amarrado pelos pulsos. Estava num sanatório, num hospício, pensou. Sua cabeça girou, sentiu o que lhe restava do corpo bambo, mas um sentir sem muita esperança. Um sentimento alheio a tudo, como aquele que se tem quando reencontramos pessoas que há muito não víamos, que por elas alimentávamos muita feição e encantamento, mas que, ao revê-las, descobrimos que o nosso poder criador é lastimável, o que amávamos era o longe, o distante.Naquele momento conseguimos varrer os últimos vestígios de uma existência, de um compartilhamento. Adormeceu.

Acordou com uma grande vontade de esvaziar a bexiga, foi ao desespero. Como? Como sairia dali para mijar? estava paralisado, preso duplamente pelas pernas e pelo soro que o obrigava a conservar a mão esquerda sobre o lençol, sobre o colchão da cama. Ouviu um som vindo de fora, percebeu que se tratava de um rádio, um programa religioso. Muita gritaria. Inquietou-se. Sua bexiga iria estourar, o que fazer? Tentou chamar a enfermeira, mas o som ficara preso na garganta, estava muito fraco, debilitado. Com uma mão começou a pressionar o pinto, que também estava adormecido. Que loucura! Do outro lado, o senhor da cama estrebuchava, tentava se soltar, fazendo um alarido estranho, um som esquisito, um piado, um chiado, sabe-se lá, eram espasmos seguidos, parecendo que após tamanho esforço, o homem não se restabeleceria, mas contrariando as previsões, ele se acalmara, o cansaço se esvaíra, e ele voltara a dormir.

Também não resistiu, deixou-se abater, mijou-se todo, mas também nada mais importava, estava ali mesmo, imobilizado, inútil, desprezado. Por um bom tempo quedou aliviado, era o que parecia. Uma sensação de bem estar, de alívio. Mas a felicidade durou pouco, fora arrastado por um sentimento de perda, de desprezo. O coração era puro ruído, como uma velha máquina de arroz, ia e vinha, parecendo querer arremessá-lo para outra realidade, talvez menos cruel. Não tinha certeza de qual. Viver era mesmo muito difícil, principalmente na condição em que se encontrava. Ali, preso, sozinho. Ao som do seu coração, mais uma vez adormeceu.

Bom dia! Bom dia! Fora acordado pelos berros do médico que o saudara. Como vai o meu paciente? Parece-me muito bem! Ouvia tudo aquilo ainda desconfiado, sem saber bem ao certo do que se tratava. Tentou virar-se subitamente, mas fora impedido por uma dor bem aguda, vindo da sua virilha; nisso percebeu que tinha conseguido mexer a perna, os dedos dos pés. Não podia acreditar naquilo que estava fazendo, ele que há tão pouco estivera em pânico, sem ninguém, imobilizado, a mercê dos outros. Agora ali, sentindo dor, mexendo com as partes baixas.

Levou a mão ao pinto, pôde senti-lo. Apalpou o saco, estava crescido, suado, grudado na sua perna nua. Um sentimento de alegria tomou conta de todo o seu ser. O médico a tudo assistia sem entender nada, estava ali, contemplando aquele homem que se redescobria. Mais uma vez falou: vejo que a anestesia já passou, deixe-me ver o corte, puxou de supetão o curativo. Perfeito! a cirurgia foi um sucesso, não há mais hérnia, agora é só repouso. Você está de alta, vou pedir a enfermeira para tirar o seu soro, na próxima semana você vem para tirarmos os pontos.

Um telefone tocou, deu-se conta que estava na mesinha ao lado da sua cama. Pôde reconhecê-lo como seu, um celular. Esticou o braço direito para pegá-lo. Alô! Disse ele. Uma voz melodiosa respondeu: Amor, estou indo buscá-lo, preparei um café da manhã delicioso para você. Por um momento, contemplou os raios de sol que entravam pelo velho vitrô, sorveu o ar da manhã e sorriu aliviado.



ALHEAMENTO



Francisco Perna Filho












Insabível.
É esta a palavra.
Talvez encolhido na sua timidez,
o cavaleiro não ultrapasse os riscos da ferradura.


Nunca.
É esta a palavra.
Ninguém, jamais ninguém,
saberá como dão-se os esquecimentos.


Asilo.
É esta a palavra.
Calar-se em ecos,
enquanto divide saudades.




In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.41


Foto by Francisco Perna Filho - Buenos Aires - Caminito de La Boca: tango.

VESTÍGIO



Francisco Perna Filho













Ubíquo mar,
sedento de barcos,
de seixos e seios.
Vesgo olhar de conchas,
tração de maresia.
Mar de algas.


ondeando em manchas de ódios
areando em arpões sonolento.
(recolhendo-se à espuma)


travesso mar,
de porões encardidos,
golpeando os náufragos
que a ti se lançam.
Mar de ferrugem,
de fuligem,
de ressaca.
Vestígio.



In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.35


RUMOS







Francisco Perna Filho






Multifários caminhos

que os olhos perseguem,

uns de puro concreto,

outros de água de rio.

Alguns deságuam no nada,

nenhum se perde.

Caminhos de Miracema

de infância travessa.

Caminhos de José Décio*

em vielas poéticas.

Doces caminhos,

de livrarias e discotecas.

Noltálgicos,

nos antiquários

e no mofo das bibliotecas.

Humanos, nas filas-de-bancos,

no aperto dos coletivos...

caminho.


*Poeta Vilaboense



In.Refeição. Goiânia:Kelps,2001,p.115.

Foto by Francisco Perna Filho. Buenos Aires: Luminária da Praça de Maio.

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