As manifestações do fantástico no conto “o albino”, de Heleno Godoy
Francisco Perna Filho - Ensaio Literário
As manifestações do fantástico no conto “o albino”, de Heleno Godoy
CRÔNICA, UMA TEORIA
Por Francisco Perna Filho
Hoje, no período da manhã, fiz uma palestra para os alunos do 2º período do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Tocantins, atendendo ao convite do amigo e professor Dr. Fábio Dabadia. Falei da minha experiência como escritor, poeta e cronista. Mais especificamente como cronista, já que a aula tratava desse assunto. Foi uma experiência encantadora: pude conhecer o pensamento e os anseios dos alunos que ali estavam. Vi o quanto o tema é apaixonante e desperta tanto interesse. Por ser tão instigante e fazer parte do nosso cotidiano, resolvi teorizar sobre o assunto.
CRÔNICA
- O que é crônica?
- Existe uma estrutura para escrever uma crônica?
- Como se escreve uma crônica?
- Crônica: jornalismo ou literatura?
- Crônica: razão ou emoção?
- O que inspira uma crônica?
1.O próprio nome já nos remete para um significado, porquanto crônica vem de Cronus deus do tempo, chegando para nós como uma modalidade narrativa curta, de caráter pessoal e lírica. Primando por recortes de realidade e abordando uma temática variada. Às vezes, pode trabalhar com relatos do cotidiano, mas sempre iluminada pelo toque especial do autor.
3.Como se escreve qualquer texto, o autor deve ter um conhecimento do assunto a ser abordado, dominar o código lingüístico e, acima de tudo, primar pela clareza e objetividade.
4.Pode-se considerar tanto jornalismo quanto literatura. Por ocupar um espaço no jornal, constituindo material desse veículo e refletindo as características desse espaço, a crônica é matéria jornalística “não referencial”, primando, às vezes, pela coloquialidade e pelo aspecto conotativo da linguagem. Literária por trazer em essência a percepção lírica do autor, portanto subjetiva, e a criatividade, de estrutura curta, como o conto, embora desse se distanciando pela simplicidade e fluidez.
5.Razão e emoção. Racionaliza-se ao projetar o texto, ao determinar para que público ele se destina, ao estruturá-lo como feição estilística. Emoção pelo tema trabalhado, pela subjetividade do autor, pelos elementos conotativos e pela expressividade da linguagem.
Primeiras leituras, relatos de reconhecimento
Francisco Perna Filho
Como em todo campo artístico, a literatura também tem o seu período de formação, sofre e exerce influências, carrega marcas do tempo em que foi gerada, modifica vidas, reflete tendências, ultrapassa fronteiras. Portanto, muitas são as fontes formadoras; muitos são os pais, inúmeros são os filhos.
A literatura universal está cheia de relatos das mais diversas "experiências iniciáticas" como foi o caso de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, François Mauriac, todos eles, de alguma maneira, trazem lembranças agradáveis das primeiras leituras, quase sempre adquiridas na infância, ao passo que avaliam o quanto elas foram fundamentais para que eles chegassem onde chegaram.
Todos têm uma história para contar, apoiados que estão nas suas experiência vividas e lidas, como é o caso do Escritor e Jornalista Inglês Graham Greene (Pontos de Fuga, Record, 1980), ao relatar magistralmente as suas leituras de mundo: Haiti, Vietnam, Praga, Paraguai, Quênia, África, numa demonstração de que a precisão da vida está em enfrentá-la.
Quem nunca sofreu influência? O que é um texto, senão um mosaico de citações, na fala de Júlia Kristeva? O que é ser original? O que é estilo? São questionamentos feitos por músicos, artistas de toda ordem, poetas, como os goianos: Brasigóis Felício, Gabriel Nascente e Valdivino Braz, que falaram sobre as influências sofridas, as leituras basilares, fundamentais para a formação de cada um. Todos são filhos de um ou muitos pais intelectuais, também são pais intelectuais e, por serem autores, coisa bem diversa de narrador, instância ficcional, na vida real, também são pais, homens amorosos, dedicados às suas famílias, daí, cada um deles, em algum momento, ter dedicado poemas aos filhos. Valdivino, para Caroline, Randal e Jiuliano; Brasigóis, para Pettras, e Gabriel, para Thiago.
Os poetas por eles mesmos
Valdivino Braz
Minhas primeiras leituras, após a Primeira Cartilha, de Theobaldo Miranda Santos, e a Cartilha Sodré, de Benedicta Stahl Sodré, edição de 1952, foram obras da coleção Tesouros da Juventude, bem como de Julio Verne “Vinte mil léguas submarinas”, Lewis Carrol “Alice no país das maravilhas” e Monteiro Lobato. Li um pouco de tudo isso na biblioteca do Grupo Escolar Coronel José Teófilo Carneiro, onde estudei, em Uberlândia (MG).
Por volta dos 17 anos de idade, comecei a ler romances condensados na revista Seleções do Reader´s Digest, além de outras revistas como Quem foi?, Suspense, Magazine – “Mistério Magazine” de Ellery Queen, todas voltadas para histórias policiais, de crime, mistério e suspense. Daí vieram os pocket books do gênero, com aquele clima de detetives, antes de eu chegar às obras de Agatha Christie, George Simenon, Arthur Conan Doyle (com Sherlock Holmes) e outros.
Influências literárias
Fui influenciado pelas revistas de crime, mistério e suspense, que comecei a escrever contos, ainda em Uberlândia, e rasguei todos (hoje me arrependo) às vésperas de mudar-me para Goiânia. Me lembro de três deles (os melhores de minha lavra), intitulados, pela ordem de produção: Os herdeiros; A Moeda; e Depois da meia-noite. Já em Goiânia, em 1964, descobri Ernest Hemingway e, com sofreguidão, li tudo dele, inclusive biografias. Vieram de Hemingway as influências para o meu primeiro livro de contos, Cavaleiro do sol, publicado em 1977. Mais tarde descobri Joyce e outros gênios da prosa moderna. Desde então as coisas em minha literatura mudaram de figura.
POEMAS
CARACOL
Ah, esta fala inaugural de Caroline! Retine. Clara voz em linha de caracol, na casa dos quatro anos - cabelos "arrumados" pelo sono, cachos com filigranas de sol. Cocon para dizer botão, papom para dizer batom, pepoj para dizer bigode, mimalte para dizer esmalte, memelho para dizer vermelho, quicido para dizer vestido, panquega para dizer manteiga, quimiga para dizer formiga, pipieta para dizer borboleta, quicone para dizer telefone, Ó Queus! Para dizer Ó Deus!
(In A Dança do Intelecto,1996)
CAFÉ DA MANHÃ
Eu me reconheço nestes moços. No perfil de Randal e até nos ossos de suas omoplatas. Me escondo ali na sombra do outro, no seu jeito circunspecto. Me lembra o homem que nos envelhece um pouco antes do menino. Eu me redescubro no modo calado de Juliano. Ó folhas do tempo, não são os retratos que nos realçam, mas estes rostos, espelhos em que me contemplo, reflexos dos meninos que passam.
(In A Dança do Intelecto,1996)
Brasigóis Felício
Tudo começou antes que chegasse a amar os Beatles e os Rolling Stones. Trabalhava em uma papelaria, onde também se vendiam livros: o Bazar do Estudantes, em Campinas. Um dia, ao acaso, abri um livro, uma coletânea de contos de Machado de Assis. Entre maravilhado e espantado por existir aquela dimensão tão maravilhosa da vida, li o conto Uns braços. Não parei mais. Tomado por vertigem e volúpia, ao perceber tanta beleza e sensibilidade, traduzidas em linguagem, passei a devorar, com avidez, os clássicos da ficção e da poesia. Nacionais, ou não. Castro Alves, com seus vôos condoreiros e seu romantismo, Álvares de Azevedo, com seu spleen e melancolia, Casimiro de Abreu, com seu lirismo... depois, Cecília Meirelles, lírico-mística, Manuel Bandeira, magia do coloquial, Lima Barreto, sátira e amargura, sempre voltando ao velho Machado, mestre maior de todos nós.
Influências literárias
Porém, foi ao ler Crime e castigo, de Dostoievski, senti vertigens. Fiquei quase um mês fora de órbita, meio que alucinado, não sabendo se vivia naquela Rússia czarista em que havia tanta miséria humana, em meio a tamanho delírio idealista, ou se na miséria brasileira mesmo, sempre muito parecida com a da Rússia, sendo os dois povos iguais, em sua alma mística. Foi a leitura que mais produziu impacto em todo o meu ser, deixando marcas profundas, dentre elas a certeza de ser este o meu destino, a minha lenda pessoal: ser poeta, escritor. Eu me enfurnava nos cantos baldios da livraria, escondia-me no banheiro, e roubava todos os livros que podia roubar, levando um a cada dia, sob a camisa. Tornei-me irrecuperável, em ser outsider, estrangeiro em mim mesmo, em meu país, em minha cidade, em minha casa doméstica. Sonhando em que um dia todos caminhariam pelos jardins da beleza, dos ideais elevados, e das sublimes fantasias.
Vieram, a seguir, leituras também arrasadoras, agitaram, convulsionaram a minha mente fervilhante: Os irmãos Karamazov, Memórias do subsolo, e Recordações da casa dos mortos, de Dostoiévsky, Almas mortas, de Nicolai Gogol, Pais e filhos, de Turgueniev, contos de Tchekov... para não falarem que não falei nos franceses: Balzac, Flaubert, Sartre, Camus. Outros torpedos que me levaram a entrar na noite escura da alma: Baulelaire, Rimbaud, Edgar Allan Poe. Mais tarde, outro encontro mágico, que me deixou viciado em viver vertiginosamente: Henry Miller, com sua prosa caótica, fragmentária, seus insigths de poeta-profeta, seu amoralismo pérfido de artista da raça dos malditos. Muitos outros, dentre eles outro maldito brasileiro, Lúcio Cardoso, em seu clássico Crônica da casa assassinada, fizeram com que visitasse o céu e o inferno, em estadas terríveis, que deixaram marcas em minha alma ardente. Todos eles fizeram com que eu me tornasse este anjo (ou demônio) escrevedor que eu quis ser, e SOU.
Poemas
Lição de claridade
(Ao Pettras, meu filho)
Vi dormir meu filho, um dia,
numa noite, desesperado.
havia calma em seu berço.
Foi como se viajasse
em sua entrega fragílima
e de repente ficasse puro.
Havia calma, em seu berço
esta calma sereníssima
só dos anjos rebelados.
E como habitasse meu corpo
um turbilhão de demônios
quase fugi, arrependido
de fitá-lo, agoniado.
Vi dormir meu filho, um dia,
numa noite, desesperado.
foi como se viajasse
ao rio (morto) da infância.
(In Escrito no muro, 1980)
Gabriel Nascente
A minha formação cultural começou quando, nos primórdios dos anos 60, eu juntava aí perto de 15 anos. Recém-chegado ao curso de Aprendizagem Industrial, da então Escola Técnica de Goiânia, por admissão ao ginásio, era órfão de pai, pobre e filho de marceneiro, sem jamais saber que a “Canção do Exílio” era de autoria do romântico poeta Gonçalves Dias, tamanha a minha ignorância literária. Foi então que, nessa quadra da adolescência, escrevi os meus primeiros poemas e publiquei “Os gatos”. Um espanto, geral, entre amigos de aula, professores e tudo; pois nada, absolutamente nada, eu sabia sobre literatura (Muito menos que existiam escritores em Goiás). Motivo pelo qual fui condenado a um divã psiquiátrico. Até aí, confesso: o meu índice de leitura era zero. A partir daí, da publicação do meu primeiro livro “Os gatos” em 1966, eu me endoidei por leitura, e caí-me, de sorvo, sugando tudo que vinha às mãos.
Influências Literárias
Li, fervorosamente, alguns clássicos da literatura ocidental, principalmente, Franz Kafka, o orelhudo de Praga; depois, Kalil Gibran Kalin (oriental), o genial aviador Saint-Exupéry, pai do “Pequeno Príncipe”, “Terra dos homens” etc., o jesuíta francês Teilhard de Chardin, os portugueses Guerra Junqueira e Antero de Quental, e ainda os poetas Augusto dos Anjos, Álvares de Azevedo e Poe – autores que exerceram, em mim, verdadeiras overdoses de fomento e alento, para a formação intelectual da minha visão de mundo, o cosmológico dentro da óptica do espírito poético. Também me fixei, apaixonadamente, na leitura de Hemingway e Camus, antípodas um do outro, em estilo e conteúdo. Já o meu contacto com os gregos veio um pouco tardo, bem depois, quando descobri Homero, Sócrates e Platão.Daí pra frente, nunca mais abandonei o hábito da leitura, mesmo porque é nela (na leitura) que eu me encasulo, espiritualmente, livre, enquanto leio, das espurcícias do mundo. Ah, eu ia me esquecendo, a “Bíblia” e Shakespeare, “Dom Quixote” e “Os sertões”, também andaram adubando a luz dos meus olhos.
Poema para Thiago
I
Me dê cá a mão, filho.
A caminhada depois da infância é dura.
O sonho depois da infância é duro.
A vida depois da infância é dura.
Depois da infância
a infância é dura.
II
Filho, me dê cá a mão.
Do berço à maturidade celestial de teus olhos,
caminharás pelas escarpas do mundo
com teu pesadíssimo fardo de sonhos e medo.
III
É inútil, filho, combater os fantasmas
dentro da luz. O ódio, a traição e a morte
são invisíveis na trajetória da vida,
apesar do velho lume estendido na cabeça
deste planeta.
É inútil, filho,
beijar a face de Eros,
melhor seria libertar o pensamento
do maior subversivo da história
que ainda jaz sangrando na cruz,
ou no fundo de alguma prisão.
IV
Reza. Reza, filho meu,
para que não faltem cereais e pão
na mesa, onde um dia, jogarás
os proventos de teu próprio suor.
A humanidade, filho,
é carente de um só
veículo: amor.
(In Pastoral, Ed. Oriente, 1980)
Fonte da imagem: http://amorinhas.files.wordpress.com/2009/02/alfredomunhoz-caminhos.jpg
TOCANTINS
há tanto que eu o persigo,
desde suas nascentes,
quando é apenas um fio,
passando por transformações,
nas corredeiras,
Vejo-o indo,
sempre indo.
Às vezes, terno;
muitas vezes rompe o próprio leito.
O rio que corre em mim
é ancestral,
é pura simbologia,
retrato de épocas,
de lutas,
e de sonhos.
O rio da minha infância
ainda corre tímido,
em alguns pontos,
segregado, aborrecido.
Da margem de cá,
da margem de lá,
é sempre rio.
E assim me rio
dos inavegáveis trechos,
santificado em águas profundas.
Rolam águas,
rolam sonhos,
rolam peregrinos.
Bem-te-vi,
bem te vejo,
benfazejo,
como um estirão,
um grito longo
precipitando-se
repercutindo
O rio da minha infância
Francisco Perna Filho
Oh, Jerusalém!
A palestina sangra na menina dos teus olhos.
E pálida fica a tarde aturdida pelos canhões
amortecidos nos corpos espalhados pelo rio dos meus sentimentos.
Sentir o arranque do carro,
a distância da bala consumida pelo peito inocente da menina que vende flores
Praga
E em toda primavera nos sentimos invadidos
pelos soldados da incompreensão,
que marcham enraivecidos como os canhões na praça vermelha;
como os pássaros nas torres gêmeas;
quando as suas caras pálidas transbordam incertezas,
soldados que estão na própria máquina que conduzem.
Deuses do próprio umbigo,
amaldiçoados em rastros de ferro e fogo.
Famintos,
Os governantes desconhecem as águas na quais se banham.
Infelizes, não se comovem com o aboio da terra maltratada,
estriada, ressequida.
Infames, são a pura erva que mata o gado que somos.
Muitas outras dores passam a largo,
E não há remédio que possa acalmá-las.
Muitos outros gritos repercutem,
Como a mulher que grita desesperada
Pelas ruas de Bagdá.
Somente a idéia dos reis em marcha,
Os santos quebrados a cada um que se desfaz.
As aldeias estão às escuras,
A estrela não brilha mais,
E os homens gravitam no velho ábaco.
Olvidados o grito da terra,
Os sons metálicos das dores milenares,
e a menina órfã é rasgada como brinquedo de exploradores,
tão sedentos como os senhores da guerra.
Cravam-nas, as lanças, fardo de suas misérias capitalistas,
no corpo ingênuo da menina
de pernas finas,
bracinhos frágeis,
ventre deformado,
gestando o martírio de cana e etanol.
Oh, malditos!
Cearão a lama que produzem,
Nadarão nos tanques dos seus martírios.
Depois, embriagados chorarão a fome
A miséria da alma,
Os sons da fúria de uma cegueira ensaiada.
Oh, infames!
Visionários da própria destruição.
Assestarão os seus olhos para além do que podem entender,
E não enxergarão nada mais do que terra degradada,
Silêncio em decomposição,
Saudade e desmantelo
Na dor profunda do cerrado que se desintegra.
Ei boi! Ei boi! Ei boi!
O Rio Tocantins engoliu meu Avô
Francisco Perna Filho
Os rios, naturalmente, correm. É da natureza deles o livre curso. Não tem nada que os impeça, rompem qualquer obstáculo que se lhes apresente. Não fazem distinção de tempo e leito, não consideram castas nem poder, retumbam os gritos ancestrais; não param nunca, mesmo quando lhes desviam o curso, mesmo quando desembocam no mar.
Pelos rios, os homens descobriram outras terras, alimentaram descobertas e distâncias. Neles, depositaram esperanças, viram-se refletidos e morreram inúmeras vezes, como o meu avô, Manoel de Sales Perna, um exímio nadador, a quem o rio não deu guarida, engolido pelo Tocantins ao salvar a minha prima, Maria Úrsula, bem próximo à cidade de Carolina, no Maranhão.
As pessoas morrem, os rios são perenes. A qualquer tempo, estão
Dele sei pouco, mas sempre pude imaginá-lo, quando não pelas histórias contadas pelo meu pai, Francisco Nolêto Perna, pela fotografia ampliada que o meu tio, Tito Perna, traz emoldurada na sala de sua casa e, mais recente, sendo redescoberto, por obra da ficção, pelo escritor Bernardo Carvalho, no premiado “Nove Noites”, Companhia das Letras (2003), quando o engenheiro Manoel Perna, que na vida real era barbeiro, pôde contar a história do antropólogo americano Buell Quain, discípulo de Ruth Benedict da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, que se suicidou em 1939, aos 27 anos, poucos dias após deixar a aldeia Krahô, a caminho de Carolina, no Maranhão, para se encontrar com o meu Avô. Fato que, embora sirva à ficção de Carvalho, aconteceu na vida real, como atestam os documentos e o testemunho do meu pai.
Apesar de não ter podido conhecê-lo em vida, vejo-o sempre em meu pai, em mim, nos meus filhos e irmãos. Vejo-o no rio que o engoliu, pois passou a fazer parte dele, uma vez que o seu corpo nunca foi encontrado. Eternizou-se nas suas corredeiras, imortalizou-se no seu remanso, como na mitologia: os rios da eternidade.
Vejo-o sempre quando vou a Miracema do Tocantins, quando miro o rio do Porto do Padre, da Praia de Areia, do Flutuante do “Seu” Manoel, da Praia do Urubu, da Usina do Lajeado. Muitos desses lugares, que agora citei, já não existem mais, mas vivem na minha memória, como o meu avô, que, pela obra da ficção, virou personagem e “zombou” do rio que o engoliu.
fonte da imagem:http://2.bp.blogspot.com/_RJ1gFmh-xQw/SgxD305IjaI/AAAAAAAAAhE/K9xoCKOxmVE/s1600-h/riotocantins2.JPG
Cafarnaum
velhos armários,
guardando nas suas gavetas
o cheiro aveludado de tantos invernos,
esculpidos em retratos sonâmbulos,
carpidos no ranger de redes
e no murmúrio oblongo de potes de barro.
Nada há de velho que não enterneça.
nem o mofo,
nem o lodo,
nem os anos embotados no imaginário humano.
Nada passa que não nos faça avançar para antes,
para uma anterioridade lírica,
sob a luz das lamparinas
talhadas em ausências e muita solidão.
Nada há de novo que não nos mostre o velho,
o passado,
o que fomos nós,
nos passos tênues dos nossos avós,
no lastimoso grito memorial
dos nossos corpos na dança secular;
dos nossos corações empedernidos
pelas inúmeras cicatrizes
que clamam refeição.
O que há em nós
é um imenso desejo de reconstituição
de refazimento.
Um desejo
de saciar a nossa fome ancestral,
agora, no presente futuro.
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