Francisco Perna Filho - Ensaio Literário












JOÃO DE DEUS: UMA HESITAÇÃO DOS DIABOS  
As manifestações do fantástico no conto “o albino”, de Heleno Godoy


Introdução

A Narrativa Fantástica é uma modalidade narrativa em que o caráter do extraordinário vem à tona; o incrível é preponderante. Quando falamos em fantástico, logo de imediato nos vem à mente o extraordinário, o que foge à compreensão, algo que perpassa a qualquer explicação que se queira dar. Muitos estudiosos já buscaram definir o que vem a ser o fantástico, elaboraram teorias, mas, muitas vezes, essas teorias não foram suficientes para abarcar com precisão o assunto.

A literatura reflete quase sempre os anseios de seu criador em criar mundos, ambientes, personagens mágicos ou não, uma vez que o compromisso que tem é apenas com o ficcional. Para o artista tudo é possível. Lembremos Aristóteles, em sua Poética (1990, Canto IX, p.28), para distinguir a literatura de outros escritos, traça a seguinte diferença entre o poeta e o historiador:

        (...) A obra do poeta não consiste      em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade. (...) Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam acontecer.Sendo assim, a narrativa fantástica afasta-se desse preceito de verossimilhança clássica, já que algumas categorias do mundo real foram suprimidas, como diz Filipe Furtado no seu livro A Construção do Fantástico na Narrativa (1980,p.44):


(...) O fantástico propõe ao destinatário da enunciação um universo em que algumas categorias do real foram abolidas ou alteradas, passando a funcionar de uma forma insólita, aberrante, inimaginável.


Percebe-se que o fantástico afasta-se da lógica racional, do con­ceito puro de padrão de realidade e desemboca em algo que poderia se chamar de incrível, extraordinário. E é embasado nesses estudos, nos vá­rios pontos de vista dos mais diversi­ficados estudiosos dessa modalidade literária, que, nesse trabalho, levan­tam-se os elementos ficcionais do con­to "O Albino", de Heleno Godoy.

João de Deus: uma hesitação dos diabos

Ao analisar-se o conto "O Albi­no", de Helena Godoy, inicialmente atenta-se para o nome deste, "O Albi­no", aquele que sofre de albinismo, au­sência hereditária, total ou parcial do pigmento tanto da pele como dos pê­los e da íris. Um nome que irá refletir, como se verá no decorrer da análise, o traço diferenciador da personagem principal, o Que evidencia as ausên­cias, as faltas e, por conseguinte, um deslocamento diante da realidade que o oprime.
É interessante observar, já no primeiro parágrafo, a caracterização do ambiente onde os acontecimentos se darão:

(...) O pai iria se lembrar, de­pois, que a lua tinha sido cheia, na noite de seu nascimento. As lembranças da mãe teriam como ponto de referências os latidos insistentes dos cães, que duraram horas. Ele duvi­dava, ela não queria pensar a respeito (p. 123).


As referências feitas à lua cheia e ao latido dos cães já remetem o lei­tor a um clima insólito, reforçado pela figura de um narrador privilegiado que, de uma posição bastante cômoda (pa­rece instalar-se na consciência das personagens - no caso os pais), nar­ra os acontecimentos a partir da lem­brança destes e revela o que eles sen­tem, por meio do discurso indireto li­vre, como se pode comprovar:

(...) Se por quatro vezes ela havia ficado grávida e tivera seus filhos em partos normais, qual o motivo daquela diferen­ça? (p. 123)

O narrador, assumindo essas características, revela o estado men­tal das personagens e o distanciamento dos acontecimentos no tempo, o que, para estabelecer o fantástico, é um recurso de muito valor, já que tan­to mais distantes forem os acontecimentos, mais probabilidades eles te­rão de falsear a realidade, enfatizan­do o caráter ambíguo na narrativa. É preciso entender que esse distancia­mento pode se dar tanto no tempo (passado ou futuro) como em lugares longínquos: países, cidades etc.


Ausências e Ambigüidades

Focalizada a história em um passado longínquo, caracterizado o ambiente onde tudo se passa, feita uma reflexão sobre o nome do conto godoyano, buscar-se-á os aspectos do fantástico por intermédio da persona­gem João de Deus, a sua importância para a construção desse gênero como elo entre leitor e narrativa, levando-se em conta o que diz Filipe Furtado (1980, p.85):

(...) uma das formas mais se­guras de conduzir o destinatá­rio da enunciação à incerteza quanto ao teor da ocorrência extranatural consiste em susci­tar nele a identificação com a personagem que melhor reflita a percepção ambígua dessa ocorrência e a conseqüente perplexidade perante a coexis­tência das duas fenomenologias contraditórias que aparente­mente a confrontam. (...) a fi­nalidade básica das caracterís­ticas atribuídas à personagem é sempre facilitar essa adesão a que se pretende levar o leitor real e que, embora visada por qualquer texto narrativo, desem­penha um papel de particular relevo na ficção fantástica.

Refletindo as colocações de Fi­lipe Furtado, é interessante atentar-se ao modo pelo qual a narrativa fantás­tica vai se instalando a partir da atua­ção da personagem João de Deus da sua inserção na narrativa, o que, de certa forma, a modificará como um to­do, já que João de Deus é visto como alguém estranho ao grupo, diferente, e que, por esse motivo, de imediato chama a atenção para si. Imprime-se, partindo do seu nascimento, um certo roteiro para que o leitor mergulhe no emaranhado de um universo ambí­guo, dividido entre o real e o sobre­natural. Observe-se a descrição do seu nascimento:

(...) Ela demorou a ter aquele menino, o quinto em cinco anos. (...) O dia já estava lon­ge e o trabalho parado, quan­do a mulher deu um gemido forte e ele ouviu a voz da par­teira "Virgem Maria!" sair num susto e grito (p. 124).

Vê-se aqui a referência temporal feita pelo narrador, a marcação desse tempo: a demora, a preparação para o estabelecimento de uma certa ex­pectativa em relação ao porvir; eis que, de forma surpreendente, a inserção de algo incomum, num ambiente até en­tão tranqüilo, modifica todo o curso da narrativa. Instaura-se na mente do lei­tor - em decorrência da perplexidade que o nascimento da criança causa ­um estado de apreensão ante os acon­tecimentos posteriores. Tal fato é refor­çado no diálogo entre o pai do garoto e a parteira, logo após o seu nascimento:
(...) - Um menino doente, mas parece que vai ficar bem.
- Doente?
(...) - Até os cabelos. Todo branquinho. As mãos, os pés, as pernas, tudo (p. 124).

De imediato, cria-se um estado de hesitação pelo fato de o menino ser diferente: ausência do pigmento tanto da pele como dos pêlos. Instala-se, na cabeça das. pessoas, a dúvida sobre o estado de normalidade do garoto: é normal ou não? O que causará muita controvérsia em relação ao nome que será dado à criança:

(...) João de Deus, sugeriu, era um nome mais apropriado e conforme, e eles ainda esta­riam dedicando ao Senhor aquele menino diferente. (...) O menino era desvalido e se­ria desamparado se não lhe dessem muito carinho, se não tivessem para com ele paciên­cia e cuidado (p. 125).

O nome do garoto é represen­tativo para o estabelecimento do fan­tástico em "O Albino": João de Deus, um eufemismo utilizado pelo autor pa­ra a manutenção da ambigüidade, já que o nome é um contraponto ao que irá ser evidenciado com relação a uma série de acontecimentos insólitos, os quais são atribuídos ao garoto. Perce­be-se isso no diálogo que se estabele­ce entre o pai e a mãe:

(...) - Você viu como chorou quando o padre fez o si­nal da cruz?
                                                                                    - Gritou, chorar não chorou.
(...) - E quando jogou a água benta?
        - Besteira, menino grita em batizado mesmo (p. 125).


Observando a conversa dos pais, nota-se a manutenção da ambi­güidade; fica claro, nas insinuações da mãe, que o menino tem algo de sobre­natural. Além de sua aparência estra­nha, ele possui uma forte aversão a tudo o que é sagrado, o que de imedi­ato é refutado pelo pai - refutação ne­cessária para o restabelecimento da tranqüilidade -, garantindo o estado de hesitação por parte do leitor: é ou não é diferente? O garoto tem ou não tem aversão ao sagrado?
Mais à frente essa tranqüilida­de esvai-se e dá lugar a uma certa ten­são narrativa. A cidade vê-se tomada por uma série de acontecimentos insó­litos - pessoas sendo atacadas, mor­didas; animais aparecendo mortos sem nenhuma gota de sangue – ao passo que João de Deus vai ficando cada vez mais distante, indiferente, tendo por companhia somente os cães. Fatos que para a mãe intensifi­carão a sua desconfiança:

(...) João de Deus havia che­gado tarde naquela tarde, mui­to depois dos irmãos. Pensou que ele havia perdido o ônibus. Viu sua roupa suja de man­chas escuras, que passou a achar fossem de sangue. Já ti­nham aparecido nas roupas dele e ela não acreditava em acasos. Podiam ser provenien­tes de ferimentos, a pele dele era fraca, feria-se facilmente. Depois lembrou-se de o mari­do dizer, tempos antes, que as galinhas perdiam seus pinti­nhos, patinhos apareciam com pescoço estraçalhado, peque­nos animais surgiam mortos no quintal ou eram encontra­dos agonizantes. Sangue por perto, no entanto, nenhum (p. 131 ).

Vê-se aqui as reflexões da mãe sobre as ausências do filho, a série de acontecimentos que se avolumam a cada dia. A cidade parece não ter nenhuma dúvida com relação às res­ponsabilidades dos fatos, o que do ponto de vista da narrativa parece ca­minhar para um final onde tudo seja esclarecido, fato que vem ameaçar a manutenção do fantástico. Mas isso não ocorre, pois, mais uma vez, o dis­curso muda de tom com a interferên­cia do pai. Observe-se o diálogo en­tre o pai do menino e o delegado:

(...) - Estão dizendo que fo­ram os cachorros do meu filho?
- Pior, estão dizendo que foi seu filho.
- Isso não tem cabimen­to, delegado, meu filho não é doido.
- Quem sabe se não é? Quem sabe ele pensa que é mais do que um
doido? Quem sabe lá o que ele pensa? Será
que ele pensa que é um vampiro?
- Uma estupidez, isso não existe.
Vamos ver isso tam­bém. Não existe, mas
ele pode ser um.
- Não existe, mas pode ser. Como? E podem provar? O senhor tem provas? (p. 138)


Nessa perspectiva de dúvidas, de relatos inconsistentes, de uma não resolução para os conflitos é que a narrativa vai firmando-se como fantás­tica, o que é corroborado por Louis Vax (apud Furtado, 1980, p. 64):

(...) o fantástico vive sobretu­do do seu adormecimento, da sua inanição perante o impen­sável, da sua impotência para, frente à subversão do real, re­correr a uma explicação plau­sível que a destrua.

Mais à frente tem-se uma ten­tativa de explicação para o que está ocorrendo, a partir das palavras do novo padre da cidade:


(...) O problema, para ele, não era de possessão demoníaca, como queriam algumas velhas piedosas, lideradas pela espo­sa do juiz, mas de desinforma­ção. Nada daquilo era verdade, vampiros não existiam,afirma-lhe o padre, o diretor do colégio também, o promotor e o próprio Juiz (p. 139).

    Todo o alvoroço provocado pelas pessoas da cidade e a explicação do padre - que tenta dissuadir a população da existência de lobisomem, vampiro etc - são imprescindíveis para o res­tabelecimento da ordem na cidade e, ao mesmo tempo, servem para con­firmar o estado de dúvidas que se ins­taura na cabeça do destinatário.
    À medida que as acusações avolumam-se contra João de Deus, sua mãe, entremeada de dúvidas, as­socia-as a alguns fatos ocorridos, e a permanência do fantástico vai confirmando-se na narrativa.

(...) João de Deus não podia depender deles. Ela não se conformava que seu filho fos­se o que dizem, o que ele pare­cia ser, o que até ela está sen­do levada a achar que ele fos­se (p. 142).

A partir daí, a mãe começa a buscar uma forma de livrar o filho das perseguições, da não aceitação dele por parte das pessoas:

(...) João de Deus existia e fa­lavam sobre ele. Vinha daí, por isso, o desejo de eliminá-Io, por causa de sua diferença, que in­comodava? (...) Não acreditava em tudo que o acusavam de ter feito. Muita coisa devia ter sido praticada por outros, pensou,mas a culpa recaía sobre ele por conveniência. Ele era incon­veniente, quando estava por perto (p. 143).

A percepção que a mãe tem sobre o problema que o filho causava, quando estava por perto, e a atitude tomada para livrá-Io desses constran­gimentos rompem com as possibilida­des de uma explicação para os fatos insólitos, pois, apesar de vivenciar um estado de dúvidas, a mãe não hesita em matá-lo:

(...) Pegou um martelo, ao retomar para dentro de casa, de cima de uma prateleira, no quarto em que o marido guar­dava suas ferramentas, e ca­minhou vagarosamente para o do filho. (...) Entendeu que não seria necessária tanta força, o corpo do filho era tão frágil, podia espetar-lhe o pedaço de madeira quase como se espe­tasse uma agulha num pano branco que bordasse. Ficou assim uns poucos minutos, os dois braços levantados, as duas mãos segurando o toco de madeira sobre o peito de João de Deus. (...) Ninguém vai fazer-lhe mal agora, vai? (p.144)



Dessa forma Heleno Godoy contempla o leitor com a deflagração de um final interes­sante. Com a morte do filho pela mãe, esta vê-se aliviada de toda pressão recebida, o que evita uma tragédia maior: a morte do filho pelo povo, o que seria trágico tanto do ponto de vis­ta da história quanto da manutenção da ambigüidade, já que se isso ocor­resse poderia haver uma justificativa para o fato e uma quebra da hesitação por meio de um esclarecimento para o fenômeno. Da forma como aconte­ceu, a ambigüidade foi mantida e o fan­tástico efetivou-se nesse conto.

Conclusão

Heleno Godoy joga com as inú­meras possibilidades narrativas, den­tre as quais privilegia uma narrativa em terceira pessoa, mas, sempre que necessário, o narrador instala-se na mente das personagens e reflete a condição de cada uma, como se fos­sem presentificadas num determina­do momento e, de forma plena, explici­tassem os seus sentimentos, desejos, questionamentos existenciais, de maneira a aproximar cada vez mais o lei­tor dos acontecimentos ficcionais, o qual, na credulidade de uma realidade falseada, faz-se um aliado na manutenção do fantástico na narrativa.
Observando-se a estrutura nar­rativa, reflete-se a essencialidade da figura da mãe para a manutenção da ambigüidade, personagem muito bem construída, sobretudo se levar-se em conta que a figura materna é a que gera o filho, passa por todas as sensa­ções de uma gravidez, enfrenta as di­ficuldades do parto e, por conseguin­te, está autorizada a intuir sobre a rea­lidade do filho; aquela que tem os pés no chão. Por outro lado tem-se a figu­ra do pai: ser preocupado com o tra­balho, mas totalmente distante dos fi­lhos, pois, para ele, os meninos nada tinham de parecido com ele ou com a mãe, o que evidencia uma visão de superfície com relação a João de Deus. O pai é caracterizado como fi­gura primordial para o equilíbrio do discurso narrativo e a manutenção da ambigüidade. Em suma, a mãe é aque­la que vê, o pai o que não vê ou não quer ver.
    Traçar o perfil dos pais de João de Deus faz-se importante para uma, melhor compreensão da figura deste: uma criança aparentemente frágil, di­ferente e, por ser assim, excluída do grupo social, só relaciona-se bem com os cães, talvez por parecer-se com eles, características que, aos olhos do leitor, causarão mais simpatia e pena que asco ou terror, referência interes­santíssima para afastar cada vez mais as suspeitas contra João de Deus em relação à série de acontecimentos estranhos na cidade.
Faz-se mister atentar ainda para algo muito interessante: dentre todos os personagens da história, o único que possui um nome é João de Deus. Mas, em contra partida, somen­te ele não tem voz, tornando-se, as­sim, extremamente vulnerável a qual­quer acusação e aborrecimento.
Heleno Godoy avança na cons­trução das suas personagens, reflete a condição de cada uma no seu modo de ser e viver. Com isso eleva a condi­ção delas à importância dos aconteci­mentos na narrativa fantástica, o que, de  certa forma, vai contra o que diz Filipe Furtado (1980, p.86):

(...) O gênero privilegia o acon­tecimento, sobretudo as mani­festações extranaturais, em desfavor das personagens. Daí que, em geral, estes só atinjam uma certa relevância na estrutura da narrativa se servirem o objetivo de comu­nicar a ambigüidade ao recep­tor real do enunciado. Com efeito, as personagens pouco ou nada interessam ao discur­so fantástico enquanto figuras com vida própria, servindo-lhe sobretudo de veículos da per­plexidade perante o mundo alucinante em que se movem.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



ARISTÓTELES. A Arte Poética. In: A Poética Clássica. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo:Cultrix, 1990.

FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1960.
GODOY, Heleno. O Albino. In: O Amante de Londres. Goiânia: Kelps, 1996.
RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico.   São Paulo: Ática, 1988.

CRÔNICA, UMA TEORIA


Por Francisco Perna Filho







Hoje, no período da manhã, fiz uma palestra para os alunos do 2º período do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Tocantins, atendendo ao convite do amigo e professor Dr. Fábio Dabadia. Falei da minha experiência como escritor, poeta e cronista. Mais especificamente como cronista, já que a aula tratava desse assunto. Foi uma experiência encantadora: pude conhecer o pensamento e os anseios dos alunos que ali estavam. Vi o quanto o tema é apaixonante e desperta tanto interesse. Por ser tão instigante e fazer parte do nosso cotidiano, resolvi teorizar sobre o assunto.

 

 

CRÔNICA

 

 

  1. O que é crônica?
  2. Existe uma estrutura para escrever uma crônica?
  3. Como se escreve uma crônica?
  4. Crônica: jornalismo ou literatura?
  5. Crônica: razão ou emoção?
  6. O que inspira uma crônica?

 

 

1.O próprio nome já nos remete para um significado, porquanto crônica vem de Cronus deus do tempo, chegando para nós como uma modalidade narrativa curta, de caráter pessoal e lírica. Primando por recortes de realidade e abordando uma temática variada. Às vezes, pode trabalhar com relatos do cotidiano, mas sempre iluminada pelo toque especial do autor.

 

2. A crônica não deve ultrapassar “60 linhas”. Os parágrafos devem ser curtos e bem estruturados; a linguagem deve ser expressiva e elegante.

 

3.Como se escreve qualquer texto, o autor deve ter um conhecimento do assunto a ser abordado, dominar o código lingüístico e, acima de tudo, primar pela clareza e objetividade.

 

4.Pode-se considerar tanto jornalismo quanto literatura. Por ocupar um espaço no jornal, constituindo material desse veículo e refletindo as características desse espaço, a crônica é matéria jornalística “não referencial”, primando, às vezes, pela coloquialidade e pelo aspecto conotativo da linguagem. Literária por trazer em essência a percepção lírica do autor, portanto subjetiva, e a criatividade, de estrutura curta, como o conto, embora desse se distanciando pela simplicidade e fluidez.

 

5.Razão e emoção. Racionaliza-se ao projetar o texto, ao determinar para que público ele se destina, ao estruturá-lo como feição estilística. Emoção pelo tema trabalhado, pela subjetividade do autor, pelos elementos conotativos e pela expressividade da linguagem.

 

6. A vida em todos os seus aspectos: a mulher que passa, o olhar perdido e distante do oprimido, a desigualdade social, a incompreensão humana, a solidão, a alegria etc.. a própria crônica;

 

 

Primeiras leituras, relatos de reconhecimento

                                                         Francisco Perna Filho 

 
 





Como em todo campo artístico, a literatura também tem o seu período de formação, sofre e exerce influências, carrega marcas do tempo em que foi gerada, modifica vidas, reflete tendências, ultrapassa fronteiras. Portanto, muitas são as fontes formadoras; muitos são os pais, inúmeros são os filhos.  

A literatura universal está cheia de relatos das mais diversas "experiências iniciáticas" como foi o caso de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, François Mauriac, todos eles, de alguma maneira, trazem lembranças agradáveis das primeiras leituras, quase sempre adquiridas na infância, ao passo que avaliam o quanto elas foram fundamentais para que eles chegassem onde chegaram.  

Todos têm uma história para contar, apoiados que estão nas suas experiência vividas e lidas, como é o caso do Escritor e Jornalista Inglês Graham Greene (Pontos de Fuga, Record, 1980), ao relatar magistralmente as suas leituras de mundo: Haiti, Vietnam, Praga, Paraguai, Quênia, África, numa demonstração de que a precisão da vida está em enfrentá-la.  

Quem nunca sofreu influência? O que é um texto, senão um mosaico de citações, na fala de Júlia Kristeva? O que é ser original? O que é estilo? São questionamentos feitos por músicos, artistas de toda ordem, poetas, como os goianos: Brasigóis Felício, Gabriel Nascente e Valdivino Braz, que falaram sobre as influências sofridas, as leituras basilares, fundamentais para a formação de cada um. Todos são filhos de um ou muitos pais intelectuais, também são pais intelectuais e, por serem autores, coisa bem diversa de narrador, instância ficcional, na vida real, também são pais, homens amorosos, dedicados às suas famílias, daí, cada um deles, em algum momento, ter dedicado poemas aos filhos. Valdivino, para Caroline, Randal e Jiuliano;   Brasigóis, para Pettras, e  Gabriel, para Thiago.


Os poetas por eles mesmos

   

Valdivino Braz

Minhas primeiras leituras, após a Primeira Cartilha, de Theobaldo Miranda Santos, e a Cartilha Sodré, de Benedicta Stahl Sodré, edição de 1952, foram obras da coleção Tesouros da Juventude, bem como de Julio Verne “Vinte mil léguas submarinas”, Lewis Carrol “Alice no país das maravilhas” e Monteiro Lobato. Li um pouco de tudo isso na biblioteca do Grupo Escolar Coronel José Teófilo Carneiro, onde estudei, em Uberlândia (MG).

Por volta dos 17 anos de idade, comecei a ler romances condensados na revista Seleções do Reader´s Digest, além de outras revistas como Quem foi?, Suspense, Magazine – “Mistério Magazine” de Ellery Queen, todas voltadas para histórias policiais, de crime, mistério e suspense. Daí vieram os pocket books do gênero, com aquele clima de detetives, antes de eu chegar às obras de Agatha Christie, George Simenon, Arthur Conan Doyle (com Sherlock Holmes) e outros.  


Influências literárias


Fui influenciado pelas revistas de crime, mistério e suspense, que comecei a escrever contos, ainda em Uberlândia, e rasguei todos (hoje me arrependo) às vésperas de mudar-me para Goiânia. Me lembro de três deles (os melhores de minha lavra), intitulados, pela ordem de produção: Os herdeiros; A Moeda; e Depois da meia-noite. Já em Goiânia, em 1964, descobri Ernest Hemingway e, com sofreguidão, li tudo dele, inclusive biografias. Vieram de Hemingway as influências para o meu primeiro livro de contos, Cavaleiro do sol, publicado em 1977. Mais tarde descobri Joyce e outros gênios da prosa moderna. Desde então as coisas em minha literatura mudaram de figura.

  POEMAS 


CARACOL 

Ah, esta fala inaugural de Caroline! Retine. Clara voz em linha de caracol, na casa dos quatro anos - cabelos "arrumados" pelo sono, cachos com filigranas de sol. Cocon para dizer botão, papom para dizer batom, pepoj para dizer bigode, mimalte para dizer esmalte, memelho para dizer vermelho, quicido para dizer vestido, panquega para dizer manteiga, quimiga para dizer formiga, pipieta para dizer borboleta, quicone para dizer telefone, Ó Queus! Para dizer Ó Deus!

                                                 (In A Dança do Intelecto,1996)

  

CAFÉ DA MANHà

Eu me reconheço nestes moços. No perfil de Randal e até nos ossos de suas omoplatas. Me escondo ali na sombra do outro, no seu jeito circunspecto. Me lembra o homem que nos envelhece um pouco antes do menino. Eu me redescubro no modo calado de Juliano. Ó folhas do tempo, não são os retratos que nos realçam, mas estes rostos, espelhos em que me contemplo, reflexos dos meninos que passam.

                              (In A Dança do Intelecto,1996)

 

  

Brasigóis Felício 

 

Tudo começou antes que chegasse a amar os Beatles e os Rolling Stones. Trabalhava em uma papelaria, onde também se vendiam livros: o Bazar do Estudantes, em Campinas. Um dia, ao acaso, abri um livro, uma coletânea de contos de Machado de Assis. Entre maravilhado e espantado por existir aquela dimensão tão maravilhosa da vida, li o conto Uns braços. Não parei mais. Tomado por vertigem e volúpia, ao perceber tanta beleza e sensibilidade, traduzidas em linguagem, passei a devorar, com avidez, os clássicos da ficção e da poesia. Nacionais, ou não. Castro Alves, com seus vôos condoreiros e seu romantismo, Álvares de Azevedo, com seu spleen e melancolia, Casimiro de Abreu, com seu lirismo... depois, Cecília Meirelles, lírico-mística, Manuel Bandeira, magia do coloquial, Lima Barreto, sátira e amargura, sempre voltando ao velho Machado, mestre maior de todos nós.  


Influências literárias 


Porém, foi ao ler Crime e castigo, de Dostoievski, senti vertigens. Fiquei quase um mês fora de órbita, meio que alucinado, não sabendo se vivia naquela Rússia czarista em que havia tanta miséria humana, em meio a tamanho delírio idealista, ou se na miséria brasileira mesmo, sempre muito parecida com a da Rússia, sendo os dois povos iguais, em sua alma mística. Foi a leitura que mais produziu impacto em todo o meu ser, deixando marcas profundas, dentre elas a certeza de ser este o meu destino, a minha lenda pessoal: ser poeta, escritor. Eu me enfurnava nos cantos baldios da livraria, escondia-me no banheiro, e roubava todos os livros que podia roubar, levando um a cada dia, sob a camisa. Tornei-me irrecuperável, em ser outsider, estrangeiro em mim mesmo, em meu país, em minha cidade, em minha casa doméstica. Sonhando em que um dia todos caminhariam pelos jardins da beleza, dos ideais elevados, e das sublimes fantasias.

 

Vieram, a seguir, leituras também arrasadoras, agitaram, convulsionaram a minha mente fervilhante: Os irmãos Karamazov, Memórias do subsolo, e Recordações da casa dos mortos, de Dostoiévsky, Almas mortas, de Nicolai Gogol, Pais e filhos, de Turgueniev, contos de Tchekov... para não falarem que não falei nos franceses: Balzac, Flaubert, Sartre, Camus. Outros torpedos que me levaram a entrar na noite escura da alma: Baulelaire, Rimbaud, Edgar Allan Poe. Mais tarde, outro encontro mágico, que me deixou  viciado em viver vertiginosamente: Henry Miller, com sua prosa caótica, fragmentária, seus insigths de poeta-profeta, seu amoralismo pérfido de artista da raça dos malditos. Muitos outros, dentre eles outro maldito brasileiro, Lúcio Cardoso, em seu clássico Crônica da casa assassinada, fizeram com que visitasse o céu e o inferno, em estadas terríveis, que deixaram marcas em minha alma ardente. Todos eles fizeram com que eu me tornasse este anjo (ou demônio) escrevedor que eu quis ser, e SOU.  


Poemas 


Lição de claridade

(Ao Pettras, meu filho)

 

Vi dormir meu filho, um dia,

numa noite, desesperado.

havia calma em seu berço.

Foi como se viajasse

em sua entrega fragílima

e de repente ficasse puro.

Havia calma, em seu berço

esta calma sereníssima

só dos anjos rebelados.

E como habitasse meu corpo

um turbilhão de demônios

quase fugi, arrependido

de fitá-lo, agoniado.

Vi dormir meu filho, um dia,

numa noite, desesperado.

foi como se viajasse

ao rio (morto) da infância.

(In Escrito no muro, 1980)

  

Gabriel Nascente 


 

A minha formação cultural começou quando, nos primórdios dos anos 60, eu juntava aí perto de 15 anos. Recém-chegado ao curso de Aprendizagem Industrial, da então Escola Técnica de Goiânia, por admissão ao ginásio, era órfão de pai, pobre e filho de marceneiro, sem jamais saber que a “Canção do Exílio” era de autoria do romântico poeta Gonçalves Dias, tamanha a minha ignorância literária. Foi então que, nessa quadra da adolescência, escrevi os meus primeiros poemas e publiquei “Os gatos”. Um espanto, geral, entre amigos de aula, professores e tudo; pois nada, absolutamente nada, eu sabia sobre literatura (Muito menos que existiam escritores em Goiás). Motivo pelo qual fui condenado a um divã psiquiátrico. Até aí, confesso: o meu índice de leitura era zero. A partir daí, da publicação do meu primeiro livro “Os gatos” em 1966, eu me endoidei por leitura, e caí-me, de sorvo, sugando tudo que vinha às mãos. 
 

 Influências Literárias


Li, fervorosamente, alguns clássicos da literatura ocidental, principalmente, Franz Kafka, o orelhudo de Praga; depois, Kalil Gibran Kalin (oriental), o genial aviador Saint-Exupéry, pai do “Pequeno Príncipe”, “Terra dos homens” etc., o jesuíta francês Teilhard de Chardin, os portugueses Guerra Junqueira e Antero de Quental, e ainda os poetas Augusto dos Anjos, Álvares de Azevedo e Poe – autores que exerceram, em mim, verdadeiras overdoses de fomento e alento, para a formação intelectual da minha visão de mundo, o cosmológico dentro da óptica do espírito poético. Também me fixei, apaixonadamente, na leitura de Hemingway e Camus, antípodas um do outro, em estilo e conteúdo. Já o meu contacto com os gregos veio um pouco tardo, bem depois, quando descobri Homero, Sócrates e Platão.Daí pra frente, nunca mais abandonei o hábito da leitura, mesmo porque é nela (na leitura) que eu me encasulo, espiritualmente, livre, enquanto leio, das espurcícias do mundo. Ah, eu ia me esquecendo, a “Bíblia” e Shakespeare, “Dom Quixote” e “Os sertões”, também andaram adubando a luz dos meus olhos. 

    

Poemas 
 

Poema para Thiago 

            

             I 

Me dê cá a mão, filho.

A caminhada depois da infância é dura.

O sonho depois da infância é duro.

A vida depois da infância é dura. 

Depois da infância

a infância é dura.

         

           II

Filho, me dê cá a mão.

Do berço à maturidade celestial de teus olhos,

caminharás pelas escarpas do mundo

com teu pesadíssimo fardo de sonhos e medo. 

        III 

É inútil, filho, combater os fantasmas

dentro da luz. O ódio, a traição e a morte

são invisíveis na trajetória da vida,

apesar do velho lume estendido na cabeça

deste planeta. 

É inútil, filho,

beijar a face de Eros,

melhor seria libertar o pensamento

do maior subversivo da história

que ainda jaz sangrando na cruz,

ou no fundo de alguma prisão. 

          IV 

Reza. Reza, filho meu,

para que não faltem cereais e pão

na mesa, onde um dia, jogarás

os proventos de teu próprio suor. 

        

A humanidade, filho,

é carente de um só

veículo: amor. 

(In Pastoral, Ed. Oriente, 1980)

 

Fonte da imagem: http://amorinhas.files.wordpress.com/2009/02/alfredomunhoz-caminhos.jpg

TOCANTINS




Francisco Perna Filho










Um rio sereno corre nos meus dias,
há tanto que eu o persigo,
desde suas nascentes,
quando é apenas um fio,
passando por  transformações,
nas corredeiras,
nos montes de areia e cachoeiras.
Vejo-o indo,
sempre indo.
Às vezes, terno;
às vezes, retumbante,
muitas vezes rompe o próprio leito.
O rio que corre em mim
é ancestral,
é pura simbologia,
retrato de épocas,
de lutas,
e de sonhos.
O rio da minha infância
ainda corre tímido,
em alguns pontos, 
segregado, aborrecido.
Da margem de cá,
da margem de lá,
é sempre rio.
E assim me rio
dos inavegáveis trechos,
santificado em águas profundas.
Rolam águas,
rolam sonhos,
rolam peregrinos.
Bem-te-vi,
bem te vejo,
benfazejo,
como um estirão,
um grito longo
precipitando-se
em sonhos
repercutindo
em tessituras.
O rio da minha infância
é maior do que os meus braços,
do que os meus olhos,
do que o meu mundo.

Foto by Francisco Perna Filho

Francisco Perna Filho



  



   



Aboio


Oh, Jerusalém!
A palestina sangra na menina dos teus olhos.
E pálida fica a tarde aturdida pelos canhões
amortecidos nos corpos espalhados pelo rio dos meus sentimentos.

Sentir o arranque do carro,
a distância da bala consumida pelo peito inocente da menina que vende flores
em Copacabana.

Praga
se faz aqui,
E em toda primavera nos sentimos invadidos
pelos soldados da incompreensão,
que marcham enraivecidos como os canhões na praça vermelha;
como os pássaros nas torres gêmeas;
quando as suas caras pálidas transbordam incertezas,
soldados que estão na própria máquina que conduzem.
Deuses do próprio umbigo,
amaldiçoados em rastros de ferro e fogo.

Famintos,
Os governantes desconhecem as águas na quais se banham.
Infelizes, não se comovem com o aboio da terra maltratada,
estriada, ressequida.

Infames, são a pura erva que mata o gado que somos.
Muitas outras dores passam a largo,
E não há remédio que possa acalmá-las.
Muitos outros gritos repercutem,
Como a mulher que grita desesperada
Pelas ruas de Bagdá. 


Cavalos marcham em disparada.
Fora os ídolos!
Somente a idéia dos reis em marcha,
Os santos quebrados a cada um que se desfaz.
As aldeias estão às escuras,
A estrela não brilha mais,
E os homens gravitam no velho ábaco.
Olvidados o grito da terra,
Os sons metálicos das dores milenares,
e a menina órfã é rasgada como brinquedo de exploradores,
tão sedentos como os senhores da guerra.
Cravam-nas, as lanças, fardo de suas misérias capitalistas,
no corpo ingênuo da menina
de pernas finas,
bracinhos frágeis,
ventre deformado,
gestando o martírio de cana e etanol.

Oh, malditos!
Cearão a lama que produzem,
Nadarão nos tanques dos seus martírios.
Depois, embriagados chorarão a fome
A miséria da alma,
Os sons da fúria de uma cegueira ensaiada.

Oh, infames!
Visionários da própria destruição.
Assestarão os seus olhos para além do que podem entender,
E não enxergarão nada mais do que terra degradada,
Silêncio em decomposição,
Saudade e desmantelo
Na dor profunda do cerrado que se desintegra.

Ei boi! Ei boi! Ei boi!

Foto by Evandro Teixeira   http://www.nordesteweb.com/not10_1208/20081214Sertao.jpg

O Rio Tocantins engoliu meu Avô






Francisco Perna Filho








Os rios, naturalmente, correm. É da natureza deles o livre curso. Não tem nada que os impeça, rompem qualquer obstáculo que se lhes apresente. Não fazem distinção de tempo e leito, não consideram castas nem poder, retumbam os gritos ancestrais; não param nunca, mesmo quando lhes desviam o curso, mesmo quando desembocam no mar.


Pelos rios, os homens descobriram outras terras, alimentaram descobertas e distâncias. Neles, depositaram esperanças, viram-se refletidos e morreram inúmeras vezes, como o meu avô, Manoel de Sales Perna, um exímio nadador, a quem o rio não deu guarida, engolido pelo Tocantins ao salvar a minha prima, Maria Úrsula, bem próximo à cidade de Carolina, no Maranhão.

 
As pessoas morrem, os rios são perenes. A qualquer tempo, estão em movimento. Nunca se repetem, sempre impressionam, seduzem e devoram. Água não tem cabelo, professam os antigos, e se tivesse, sem hesitar, diria que o meu avô teria vivido um pouco mais, a tempo de me conhecer e poder falar um pouco sobre a sua vida, suas origens, e da afeição pelos índios Krahô.


Dele sei pouco, mas sempre pude imaginá-lo, quando não pelas histórias contadas pelo meu pai, Francisco Nolêto Perna, pela fotografia ampliada que o meu tio, Tito Perna, traz emoldurada na sala de sua casa e, mais recente, sendo redescoberto, por obra da ficção, pelo escritor Bernardo Carvalho, no premiado “Nove Noites”, Companhia das Letras (2003), quando o engenheiro Manoel Perna, que na vida real era barbeiro, pôde contar a história do antropólogo americano Buell Quain, discípulo de Ruth Benedict da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, que se suicidou em 1939, aos 27 anos, poucos dias após deixar a aldeia Krahô, a caminho de Carolina, no Maranhão, para se encontrar com o meu Avô. Fato que, embora sirva à ficção de Carvalho, aconteceu na vida real, como atestam os documentos e o testemunho do meu pai.

 
Apesar de não ter podido conhecê-lo em vida, vejo-o sempre em meu pai, em mim, nos meus filhos e irmãos. Vejo-o no rio que o engoliu, pois passou a fazer parte dele, uma vez que o seu corpo nunca foi encontrado. Eternizou-se nas suas corredeiras, imortalizou-se no seu remanso, como na mitologia: os rios da eternidade.


Vejo-o sempre quando vou a Miracema do Tocantins, quando miro o rio do Porto do Padre, da Praia de Areia, do Flutuante do “Seu” Manoel, da Praia do Urubu, da Usina do Lajeado. Muitos desses lugares, que agora citei, já não existem mais, mas vivem na minha memória, como o meu avô, que, pela obra da ficção, virou personagem e “zombou” do rio que o engoliu.

 
fonte da imagem:http://2.bp.blogspot.com/_RJ1gFmh-xQw/SgxD305IjaI/AAAAAAAAAhE/K9xoCKOxmVE/s1600-h/riotocantins2.JPG

Cafarnaum


Francisco Perna Filho






















velhos armários, 

guardando nas suas gavetas

o cheiro aveludado de tantos invernos,

esculpidos em retratos sonâmbulos,

carpidos no ranger de redes

e no murmúrio oblongo de potes de barro.

Nada há de velho que não enterneça.

nem o mofo,

nem o lodo,

nem os anos embotados no imaginário humano.

Nada passa que não nos faça avançar para antes,

para uma anterioridade lírica,

sob a luz das lamparinas

talhadas em ausências e muita solidão.

Nada há de novo que não nos mostre o velho,

o passado,

o que fomos nós,

nos passos tênues dos nossos avós,

                               no lastimoso grito memorial

                               dos nossos corpos na dança secular;

dos nossos corações empedernidos

pelas inúmeras cicatrizes

que clamam refeição.

O que há em nós

é um imenso desejo de reconstituição

de refazimento.

Um desejo

de saciar a nossa fome ancestral,

agora, no presente futuro.




Fonte da imagem: http://www.elizabethperry.com/magiclanternshow/3gardendoorway.jpg

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