NAVEGANTE



Francisco Perna Filho












                     I


Meu coração é um navio azul, 
alimentado de velhas caixas e revistas. 
Nas pulsações mais fortes, 
mergulha nos tomates podres das feiras 
e velhos mercados. 
Compraz-se nas garrafas abandonadas 
de molhos e cervejas. 
O mar que o transporta tem cor de chumbo. 
Possui salas radiantes 
que a ele não são dadas conhecer. 
Meu coração navega nesse mar de coisas. 



                     II


Navio azul 
trazendo a dor de longínquas cidades. 
olhar de descobrimentos. 
Plúmbeo mar! 
conduz esta minha embarcação 
pelos portos tremeluzentes de orgasmos e discórdias. 
Pelos asilos, presídios e manicômios. 
Grande mar! 
daí a esta embarcação 
um pouco da tua força, 
um pouco da tua alma 
para um aprendizado de maresia 


ECOS



Francisco Perna Filho

















Habitando os cafés 
e refletindo as manhãs 
com restos da noite, 
ambientou-se ao não-ser, 
traçou a inexistência, 
ficou entre parênteses. 
Silente e absorto, 
refez os becos 
de um dia oco e pesado. 
Inquieto, 
alimentou-se de acasos: 
sorveu as praças, 
o cinza das chaminés 
e amargurou-se com o lamento 
pulverizado dos meninos 
da grande cidade. 
Chorou a salobra 
segunda-feira, 
feita de vagidos 
e tormentos. 
Desse modo, 
por muito tempo, 
passou a repetir 
as noites, 
nos olhos avulsos 
do esquálido cão, 
que cismara em perseguir. 
Um dia, 
ao tentar recompor sua história, 
morreu de esquecimento. 


MONTANHA


Francisco Perna Filho

 

 




A palavra pesada

persegue a pedra,

revela o austero pulsar do silêncio

e, com ele, inaugura um olhar de montanha.

Do alto, a alma encanta-se

e o olhar precipita-se em direção ao luzir da cidade.

Do baixo, o corpo, enfermo, claudica

e os braços perdem-se na impotência primordial

de uma escalada.

A montanha é sentida

e nela diviso o inferno e o paraíso

da Babel recriada.

Estando no centro,

a minha alma assesta a caverna

na recomposição do paraíso Dantesco.

Dessa forma,

a montanha enternece o poeta

e a palavra mais leve

revela a montanha/palavra

Refletida no olhar.


Foto by Francisco Perna Filho - Montanha Lageado - Tocantins

DESCONFORTO



Francisco Perna Filho








 

 
 


Vazio de cidade, 
há uma desordem em mim. 
Contemplador de desvãos, 
vou esculpindo infrutíferas buscas. 
O que há de encontro na minh’alma 
é só o apóstrofo. 
Busco desvencilhar-me da ferrugem da estrada, 
do ferrolho das minhas ausências, 
quando substantivo a vontade. 
Há em mim doença de lagarta, 
predisposição para casulo, 
pretensão para eterno. 
Voar é o meu destino. 
Rastejante, carrego primórdios, 
contemplo a estrada. 



II 


Toda estrada traz o peso dos passos, 
a solidão da espera, 
a aflição da permanência. 
Toda estrada atende determinações. 
Carrega um amargor de épocas, 
apêndice de partidas. 
Toda estrada transporta um ser aprisionado, 
voz de encontro, 
razão para perder-se. 
Intensifico minha pretensão de perpetuação. 
Rastejante, apresento-me à parede. 
há um desejar de minha parte: 
de gestar esta metamorfose. 
Há uma rejeição paredal. 
Apresento-me ao fio elétrico, 
há uma mútua atração, 
uma revelação primal: 
a técnica natural se afeiçoa da modernidade 
para parir um vôo de destinação. 
A vida se faz múltipla, 
apesar da indiferença humana. 
 
 
 
 

POR UM SONO


Francisco Perna Filho

 



 





 

O pássaro pousa no sonho

um cantar de prata,

e a densa plumagem que o abriga

é de um verde inacabado,

de um amarelo rubro,

de presumida ferida.

O homem que sonha o pássaro,

aos olhos do pássaro,

é um gigante e,

por um instante,

parece tocá-lo com um grito.

O pássaro sonhado carrega

nas asas muitas pedras,

perseguições

e desencantos,

por estar preso ao sonho,

a um visgo tão ilusório quanto a sua existência.

O homem ainda é um menino

e acostumou-se a sonhar pássaros

para aprisioná-los nos seus poemas.


Fonte da imagem: http://ipt.olhares.com/data/big/262/2625793.jpg


ESTADO

Francisco Perna Filho
 











Embora presa,
a água borbulha solta na chaleira
enfervecente.
É de fora
a sua natureza líquida.
Não há fôrma que a aprisione,
não há temperatura que a molde.

Embora verso,
embora prosa,
A poesia sabe-se leve,
sabe-se solta.
Amorfa,
não se prende ao vocábulo.


Foto by Francisco Perna Filho - todos os direitos reservados.

A CIDADE - ÚLTIMA PARTE


 Francisco Perna Filho








              



                   III



A cidade enforquilhada,

enrodilhada,

trapaceada,

submetida,

subjugada,

argumenta as suas origens,

os seus papéis,

os seus bordéis,

bordados,

boquifendidos,

inesitantes,

inescusáveis,

sempre prontos,

sempre postos,

via livre,

libertação.

 

A cidade

 religiosamente tensa

atesta as suas crenças,

o demencial momento

do estapafúrdico comércio da fé,

em sinos,

em símbolos,

em siglas,

computa

o vil metal.

  

A cidade morre

nos seus ciúmes,

na represália do amor passante

do que não lhe pertence,

do que não lhe é de direito.

A cidade assiste,

assustada,

o féretro que passa,

o Solitário silêncio de quem vai,

a paz desbotada de quem fica.

A cidade sempre chora,

sempre só.

As primeira chuvas chegam,

vesga e borrada a cidade é só ternura

computando os seus dias de seca,

suas ressacas homéricas,

seu delitos,

Seus dilúvios.

 

A cidade

às vezes solitária

chora, serenamente,

os seus domingos,

compasso de espera,

revés de toda sorte,

como manchete estampada

nos principais diários

de uma Segunda feira

qualquer,

como passatempo para historiadores

e poetas.

  

A cidade líquida,

corrente,

acostumada à sirenes

e infidelidades,

reprisa os seus pontos de ônibus,

seus terminais urbanos,

a alegoria dos seus governantes

                                              em traços de Art déco.


Fonte da imagem: http://img98.imageshack.us/img98/1619/102197664cc72ed566bbux2.jpg

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