Francisco Perna Filho

Francisco Nolêto Perna


Do meu caminhar

Os pais são sempre os filhos refletidos, se não na aparência, ao menos na vontade, na doce vontade de perpetuação. Os pais nunca morrem, partem para uma outra dimensão que não conhecemos, apenas imaginamos e torcemos para que o voo seja pleno de encantamento.

Quem poderá dizer mais de mim do que os traços que trago da minha ancestralidade? Cada passo, cada olhar, um semblante às vezes esmaecido pelo sentimento do mundo, tudo comporta um traço de quem a mim deu o muito do meu caminhar.

O meu pai é puro fluxo das longínquas corridas deste rio Tocantins, parte também dos meus antepassados. Do grito de tantos outros gritos da minha descendência. Meu pai foi o responsável por parte da minha ousadia, da minha predileção pelas letras, do meu entusiasmo pelo mundo e pela coragem que tenho trazido para romper difíceis dias de abandono.

"O homem precisa ser ousado” Era assim que ele dizia, mas a sua ousadia não poderia prescindir do caráter, da ética, do respeito ao próximo, da sabedoria que só os mais velhos e o tempo trazem. Ele me ensinou que o trabalho dignifica, a solidariedade fortalece, o amor nos encoraja e nos conduz.

Meu pai está escrito nos portais de cada casa, de cada árvore, de cada rua desta nossa Miracema. Ele está no Correntinho, na Vitamina, no banho do rio, na Caridade, no Ouro Verde, na feira, no bolo de arroz, no vinho de caju, no licor de casca de laranja, nas missas de domingo, nos remédios caseiros, nos carnavais. No meu pai está a nossa indelével alegria. Nele estamos nós. Com ele se vão o nosso imenso amor e nossa eterna gratidão, conosco fica a sua perpetuação na grandeza de espírito e o imenso azul dos seus olhos.

Lêdo Ivo - Poema

Rodoviária

 Os Pobres na Estação Rodoviária



Os pobres viajam, Na estação rodoviária
eles alteiam os pescoços como gansos para olhar
os letreiros dos ônibus. E seus olhares
são de quem teme perder alguma coisa:
a mala que guarda um rádio de pilha e um casaco
que tem a cor do frio num dia sem sonhos,
o sanduíche de mortadela no fundo da sacola,
e o sol de subúrbio e poeira além dos viadutos.
Entre o rumor dos alto-falantes e o arquejo dos ônibus
eles temem perder a própria viagem
escondida no névoa dos horários.
Os que dormitam nos bancos acordam assustados,
embora os pesadelos sejam um privilégio
dos que abastecem os ouvidos e o tédio dos psicanalistas
em consultórios assépticos como o algodão que
tapa o nariz dos mortos.
Nas filas os pobres assumem um ar grave
que une temor, impaciência e submissão.
Como os pobres são grotescos! E como os seus odores
nos incomodam mesmo à distância!
E não têm a noção das conveniências, não sabem
portar-se em público.
O dedo sujo de nicotina esfrega o olho irritado
que do sonho reteve apenas a remela.
Do seio caído e túrgido um filete de leite
escorre para a pequena boca habituada ao choro.
Na plataforma eles vão o vêm, saltam e seguram
malas e embrulhos,
fazem perguntas descabidos nos guichês, sussurram
palavras misteriosas
e contemplam os capas das revistas com o ar espantado
de quem não sabe o caminho do salão da vida.
Por que esse ir e vir? E essas roupas espalhafatosas,
esses amarelos de azeite de dendê que doem
na vista delicada
do viajante obrigado a suportar tantos cheiros incômodos,
e esses vermelhos contundentes de feira e mafuá?
Os pobres não sabem viajar nem sabem vestir-se.
Tampouco sabem morar: não têm noção do conforto
embora alguns deles possuam até televisão.
Na verdade os pobres não sabem nem morrer.
(Têm quase sempre uma morte feia e deselegante.)
E em qualquer lugar do mundo eles incomodam,
viajantes importunos que ocupam os nossos
lugares mesmo quando estamos sentados e eles viajam de pé.

In. A Noite Misteriosa, 1982.

Memória - Crônica de Francisco Perna Filho





Os olhos que me olham





As cidades são mágicas, carregam segredos e histórias, depositárias de sonhos e esperanças, estão sempre abertas para quem deseja explorá-las. Confesso que não é tão fácil assim conhecê-las. É preciso ter sensibilidade, tempo e coragem. É preciso estar aberto para o velho e para o novo; resistência para perscrutar becos e ruas, ladeiras e solidões.


Imagine as pessoas que nelas vivem, uma mistura de raças, credos e linguagens. Imagine os pontos de ônibus fervilhando de gente. Os cafés, os bares, os mercados, as feiras e algaravia que lá se forma. Imagine o olhar do pedinte e o semblante do arrogante ao negar-lhe o pão. Imagine uma brisa alegre, uma manhã de sol, um céu bem azul e límpido.


Pois é, foi assim que eu redescobri a Nova Suíça, bairro que conheci pelos idos de oitenta, mais precisamente em 1984, em companhia da minha grande amiga Luciene, quando fazíamos Faculdade de Letras, e eu era convidado a comer as deliciosas panquecas feitas por Dona Terezinha, sua Mãe, logo ali, na rua C-234.


O tempo passou, a casa da Dona Terezinha resiste intrepidamente ao assédio das grandes construtoras imobiliárias. Os vizinhos são desconhecidos, anônimos: coisas do concreto e da modernidade. Logo à frente, a tradição de se fazer uma fezinha no jogo do bicho perdura, a banquinha, ao lado da Panificadora Della, resiste. Enquanto houver sonho ela haverá de resistir.

A Praça Wilson Salles continua ali, circundada pelo comércio promissor de um grande bairro. Tem de tudo: açougue, panificadora, verdurão, supermercados, loja de pneus, concessionária de automóveis, locadora de carros, escolas. Tudo numa efervescência humana. Seres que se aglomeram para comprar, comer estudar e se divertir. Um lugar alegre e de muito progresso.


Andar pelas Ruas da Nova Suíça é sentir-lhe o tempo, as emoções, e uma certa nostalgia. Principalmente quando passamos pela Rua C-165, e avistamos a Escola Municipal Maria Thomé Neto, seu muro longo e chapiscado. Foi nesta escola, um dos meus primeiros empregos como professor. Caminho um pouco mais e, na Rua C-252, reencontro-me com a fé, pois ali está a Capela de Nossa Senhora Aparecida e Santa Edwirges, dos Padres Estigmatinos, onde o meu irmão casou-se, e muitas vezes o meu saudoso Sogro assistiu às missas tão bem celebradas. Bons Tempos aqueles! Acelero um pouco os meus passos, paro, olho para cima e começo a contemplar prédios de muita beleza, cada um trazendo a sua imponência nos nomes que ostentam: Ilhéus, Aldeia do Lago, Pontal do Lago, Miami Beach e tantos outros, contrastando com belas casinhas, que ainda conservam o gosto das tardes entre amigos, sentados nas suas portas.


Tudo passou muito depressa, a cidade cresceu, o bairro foi super valorizado, as pessoas se orgulham de dizer que aqui moram e que são muito felizes, apesar dos roubos e de alguns atos de violência, que não são exclusividade do nosso bairro, mas de todo país. A verdade é que as pessoas parecem viver em muita harmonia, buscando, no corre-corre de um dia longo, as respostas para uma vida curta, o sustento para a sobrevivência.


Já passa da meia noite, e aqui estou eu, na sacada do meu quarto, a contemplar a noite, o silêncio rompido por algum notívago, que costura a noite com os roncos dos seus motores. Um gato cruza a T-62, dá uma espichada, e chega ao Setor Bueno. Tudo muito engraçado, porquanto não sabemos que linha separa um bairro do outro, o amor do ódio, a vida da morte. Os meus filhos já estão dormindo; A minha esposa ensaia uma leitura. E eu, sob o olhar dos prédios, acabo de concluir esta crônica.



Graciliano Ramos - Conto



Primeira aventura de Alexandre


Ney Latorraca

Aquela noite de lua cheia estavam acocorados os vizinhos na sala pequena de Alexandre: seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e mestre Gaudêncio curandeiro, que rezava contra mordeduras de cobras, Das Dores, benzedeira de quebranto e afilhada do casal, agachava-se na esteira cochichando com Cesária.

— Vou contar aos senhores... principiou Alexandre amarrando o cigarro de palha.

Os amigos abriram os ouvidos e Das Dores interrompeu o cochicho:

— Conte, meu padrinho.

Alexandre acendeu o cigarro ao candeeiro de folha, escanchou-se na rede e perguntou:

— Os senhores já sabem por que é que eu tenho um olho torto? 

Mestre Gaudêncio respondeu que não sabia e acomodou-se num cepo que servia de cadeira.

— Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo hoje, porque essa história nasce de outra, e ó preciso encaixar as coisas direito. Querem ouvir? Se não querem, sejam francos: não gosto de cacetear ninguém.

Seu Libório cantador e o cego preto Firmino juraram que estavam atentos. E Alexandre abriu a torneira:

— Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa, como não ignoram. A nossa fazenda ia de ribeira a ribeira, o gado não tinha conta e dinheiro lá em casa era cama de gato. Não era, Cesária?

— Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.

Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:

— Hoje é isto. Você se lembra do nosso casamento, Alexandre?

— Sem dúvida, gritou o marido. Uma festa que durou sete dias. Agora não se faz festa como aquela. Mas o casamento foi depois. É bom não atrapalhar.

— Está certo, resmungou mestre Gaudêncio curandeiro. É bom não atrapalhar.

— Então escutem, prosseguiu Alexandre. Um domingo eu estava no copiar, esgaravatando as unhas com a faca de ponta, quando meu pai chegou e disse:

— "Xandu, você nos seus passeios não achou roteiro da égua pampa?" E eu respondi: — "Não achei, nhor não "

— "Pois dê umas voltas por aí, tornou meu pai. Veja se encontra a égua." — "Nhor sim." Peguei um cabresto e saí de casa antes do almoço, andei, virei, mexi, procurando rastos nos caminhos e nas veredas. A égua pampa era um animal que não tinha agüentado ferro no quarto nem sela no lombo. Devia estar braba, metida nas brenhas, com medo de gente. Difícil topar na catinga um bicho assim. Entretido, esqueci o almoço e à tardinha descansei no bebedouro, vendo o gado enterrar os pés na lama. Apareceram bois, cavalos e miunça, mas da égua pampa nem sinal. Anoiteceu, um pedaço de lua branqueou os xiquexiques e os mandacarus, e eu me estirei na ribanceira do rio, de papo para o ar, olhando o céu, fui-me amadornando devagarinho, peguei no sono, com o pensamento em Cesária. Não sei quanto tempo dormi, sonhando com Cesária. Acordei numa escuridão medonha.Nem pedaço de lua nem estrelas, só se via o carreiro de Sant'Iago. E tudo calado, tão calado que se ouvia perfeitamente uma formiga mexer nos garranchos e uma folha cair. Bacuraus doidos faziam às vezes um barulho grande, e os olhos deles brilhavam como brasas. Vinha de novo a escuridão, os talos secos buliam, as folhinhas das catingueiras voavam. Tive desejo de voltar para casa, mas o corpo morrinhento não me ajudou. Continuei deitado, de barriga para cima, espiando o carreiro de Sant'Iago e prestando atenção ao trabalho das formigas. De repente conheci que bebiam água ali perto. Virei-me, estirei o pescoço e avistei lá embaixo dois vultos malhados, um grande e um pequeno, junto da cerca do bebedouro. A princípio não pude vê-los direito, mas firmando a vista   consegui distingui-los por causa das malhas brancas. — "Vão ver que é a égua pampa, foi o que eu disse. Não é senão ela. Deu cria no mato e só vem ao bebedouro de noite." Muito ruim o animal aparecer àquela hora. Se fosse de dia e eu tivesse uma corda, podia laçá-lo num instante. Mas desprevenido, no escuro, levantei-me azuretado, com o cabresto na mão, procurando meio de sair daquela dificuldade. A égua ia escapar, na certa. Foi aí que a idéia me chegou.

— Que foi que o senhor fez? perguntou Das Dores curiosa.

Alexandre chupou o cigarro, o olho torto arregalado, fixo na parede. Voltou para Das Dores o olho bom e explicou-se:

— Fiz tenção de saltar no lombo do bicho e largar-me com ele na catinga. Era o jeito. Se não saltasse, adeus égua pampa. E que história ia contar a meu pai? Hem? Que história ia contar a meu pai, Das Dores?

A benzedeira de quebranto não deu palpite, e Alexandre mentalmente pulou nas costas do animal: 

— Foi o que eu fiz. Ainda bem não me tinha resolvido, já estava escanchado. Um desespero, seu Libório, carreira como aquela só se vendo. Nunca houve outra igual. O vento zumbia nas minhas orelhas, zumbia como corda de viola. E eu então... Eu então pensava, na tropelia desembestada: — "A cria, miúda, naturalmente ficou atrás e se perde, que não pode acompanhar a mãe, mas esta amanhã está ferrada e arreada." Passei o cabresto no focinho da bicha e, os calcanhares presos nos vazios, deitei-me, grudei-me com ela, mas antes levei muita pancada de galho e muito arranhão de espinho rasga-beiço. Fui cair numa touceira cheia de espetos, um deles esfolou-me a cara, e nem senti a ferida: num aperto tão grande não ia ocupar-me com semelhante ninharia. Botei-me para fora dali, a custo, bem maltratado. Não sabia a natureza do estrago, mas pareceu-me que devia estar com a roupa em tiras e o rosto lanhado. Foi o que me pareceu. Escapulindo-se do espinheiro, a diaba ganhou de novo a catinga, saltando bancos de macambira e derrubando paus, como se tivesse azougue nas veias. Fazia um barulhão com as ventas, eu estava espantado, porque nunca tinha ouvido égua soprar daquele jeito. Afinal subjuguei-a, quebrei-lhe as forças e, com puxavantes de cabresto, murros na cabeça e pancadas nos queixos, levei-a para a estrada. Aí ela compreendeu que não valia a pena teimar e entregou os pontos. Acreditam vossemecês que era um vivente de bom coração? Pois era. Com tão pouco ensino, deu para esquipar. E eu, notando que a infeliz estava disposta a aprender, puxei por ela, que acabou na pisada baixa e num galopezinho macio em cima da mão. Saibam os amigos que nunca me desoriento. Depois de termos comido um bando de léguas naquele pretume de meter o dedo no olho, andando para aqui e para acolá, num rolo do inferno, percebi que estávamos perto do bebedouro. Sim senhores. Zoada tão grande, um despotismo de quem quer derrubar o mundo — e agora a pobre se arrastava quase no lugar da saída, num chouto cansado. Tomei o caminho de casa. O céu se desenferrujou, o sol estava com vontade de aparecer. Um galo cantou, houve nos ramos um rebuliço de penas. Quando entrei no pátio da fazenda, meu pai e os negros iam começando o ofício de Nossa Senhora. Apeei-me, fui ao curral, amarrei o animal no mourão, cheguei-me à casa, sentei-me no copiar. A reza acabou lá dentro, e ouvi a fala de meu pai: — "Vocês não viram por aí o Xandu?" — "Estou aqui, nhor sim, respondi cá de fora." — "Homem, você me dá cabelos brancos, disse meu pai abrindo a porta. Desde ontem sumido!" — "Vossemecê não me mandou procurar a égua pampa?" — "Mandei, tornou o velho. Mas não mandei que você dormisse no mato, criatura dos meus pecados. E achou roteiro dela?" — "Roteiro não achei, mas vim montado num bicho. Talvez seja a égua pampa, porque tem malhas. Não sei, nhor não, só se vendo. O que sei é que é bom de verdade: com umas voltas que deu ficou pisando baixo, meio a galope. E parece que deu cria: estava
com outro pequeno." Aí a barra apareceu, o dia clareou. Meu pai, minha mãe, os escravos e meu irmão mais novo, que depois vestiu farda e chegou a tenente de polícia, foram ver a égua pampa. Foram, mas não entraram no curral: ficaram na porteira, olhando uns para os outros, lesos, de boca aberta. E eu também me admirei, pois não.

Alexandre levantou-se, deu uns passos e esfregou as mãos, parou em frente de mestre Gaudêncio, falando alto, gesticulando:

— Tive medo, vi que tinha feito uma doidice. Vossemecês adivinham o que estava amarrado no mourão? Uma onça-pintada, enorme, da altura de um cavalo. Foi por causa das pintas brancas que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela égua pampa. 

Fonte da imagem SlidesShere

A Revista Banzeiro Textual tem o prazer de apresentar inéditos (em livro) do Poeta Marcelo Vieira Ribeiro, natural de Ouro Preto/MG, que vive no Rio de Janeiro/RJ, desde 1997, onde trabalha como funcionário público federal. Engenheiro civil e advogado, é poeta tardio, tendo começado a escrever regularmente em 2012. Desde então, costuma publicar seus poemas em sua página no Facebook. Foi um dos 15 classificados no Prêmio Off-Flip 2014.



Marcelo Vieira Ribeiro





No cinzeiro




Sobrou no cinzeiro,
a ponta do cigarro.
A memória,
perdeu-se por inteiro
no alcatrão
e na nicotina.
Nada retém
a fumaça da história,
apenas o catarro
e o pulmão,
negro e refém
de sua própria sina.


A crise do poeta


O poeta está em crise:
faltam-lhe o verso e o pão.
Traz na valise
dívidas e nenhum perdão,
e à mão,
ainda mais vazia,
a folha que lhe consome
a noite e o dia.
Para o poeta em crise,
o poema se faz no branco senão
da fome.
Dilema


A mão costura
sobre a folha
as linhas
de mais um poema,
esta urdidura
de tinta e fonema,
que mal umedece
a celulose
e já se coloca em dilema:
pertencerá
a quem a tece
ou se abrirá
à escolha
do que, na leitura,
as linhas,
uma a uma, descose?

 
 O Grau da Escritura

A gota de sal
na página.

Suor
ou ponto final
do poema,

escritura
em grau
de fervura?

Menos
seria palavra fria,
banal:

não salga,
não sua,
não dura.

Não queima.



Não Há Barganha

O inseto
derrotado
na teia

é um feto
preparado
para a ceia.

Barganha
não há
se há fome,

ou a aranha
é má
por que come?


 


O peso da sombra


A sombra pesa o peso
do que lhe grava o chão,
como o verso retesa
na folha o arco da mão.

Sombra é corpo indefeso,
poema preso ao chão,
e em sua palavra pesa
o peso de sua tensão.

O verso adensa a folha
como uma sombra o chão
e entre eles a escolha

do que se ter à mão:
poemas em recolha
ou corpos sobre o chão.

 


Essa voz




Essa voz
no meu ouvido,
antes ruído
atroz,

ganhou sentido
após
eu tê-la assumido.
Vamos nós

agora
na sintonia
mais pura,

como iam outrora
a poesia
e a loucura.

 


Francisco Perna Filho - Conto

POR AMOR?



Bullet


Nada arrefece o ódio, principalmente quando ele é de morte. O que vale é a intenção, a vontade de consumar o ato. A certeza de que não vamos falhar. Dependendo da vítima, o projétil pode ser de chumbo, prata ou ouro, mas para ele, como dissera o legista: foi de chumbo mesmo. Um único e exclusivo tiro, à queima-roupa: pá! Assim mesmo, seco, como a batida de uma acha de lenha.

Eu me lembro bem: era sexta feira e eu acabara de deixar a Faculdade do Largo São Francisco, quando ouvi pelo rádio do carro a notícia fatídica. Fiquei atônita, enfiei as mãos na buzina, joguei o carro no acostamento.  Não sabia mais o que fazer e só pensava no pior. Inúmeros os cadáveres, uma verdadeira chacina, não se sabe ao certo quantos os mortos, informava o locutor da Rádio Bandeirantes.

Mesmo que não tivesse sido à bala, uma, duas, não importa a quantidade, o calibre, não importa como, o certo é que ele está morto, sem ninguém para reivindicar a autoria, seria mais digno, mas não, ninguém veio, nenhuma única palavra, nenhum sinal, nunca ouviram falar sobre ele. Foi  o que disseram.

Quando abri os olhos, o ambiente era outro, calmo, as pessoas de branco. Levantei um pouco a cabeça e pude ver a minha mãe que se aproximava, parecia um tanto abatida, quis chorar mas não o fiz, dei-me conta de que estava num hospital, de que havia batido o carro. Ele morreu, o Marquinhos morreu, o seu primo estava entre os mortos do Carandiru, disse a minha mãe. Foi brutalmente assassinado, como qualquer um ali.Tinha apenas vinte e dois anos! Não acreditei! O que era flash foi tomando consistência, lembrei-me da notícia ouvida no rádio do carro. Quis levantar-me, mas fui contida pela enfermeira.

 Talvez se não tivesse sido ele, outro estaria aqui sendo ignorado, um mundaréu de curiosos imaginando a cena, cada um a seu modo: um tapa, uma traição, um tropeção, uma dívida, droga, qualquer coisa, a imaginação humana não tem limite, o que importa mesmo é o espetáculo, neste mundo onde apenas mata-se ou morre-se. Ou você está do lado de cá ou você está do lado de lá. Matar ou morrer pode ser conjugado a qualquer tempo, em qualquer lugar. Pode ser agora, como ele aí, alheio a tudo. Pode ser depois, no futuro, a qualquer tempo.

Ainda era cedo, acabáramos de transar, porque amor mesmo eu não fazia. Eu não trazia este sentimento comigo, até porque eu não estava ali para amar, apesar dos momentos agradáveis que vivemos e dos presentes que ele me dava. Eu já havia me vestido, ele insistira em deitar-se no sofá, falei para ele do recado da secretária eletrônica, da declaração de amor que ficara gravada. Perguntei quem era aquela mulher. Ele gritou comigo, chamou-me de paranóica, ciumenta, que daquele jeito não dava mais para continuar. Pedi explicação, ele se esquivou, gritei que não aceitaria aquela vagabunda entre a gente, ele retrucou.

Ninguém escapa ao destino, ao sucesso, ao infortúnio. Cada coração bate no ritmo das suas sentenças. Assim como ele, todos os outros, centenas deles, caídos, mortificados, desprezados, sem ninguém; todos cumprindo a sorte de estarem ali na hora errada, no pavilhão errado; de estarem do outro lado.

Levantou-se bruscamente, veio em minha direção, dei um passo para trás, peguei a arma que ele guardava na estante lateral, engatilhei-a, ele tentou me conter, pediu por favor, disse que me amava. Naquele momento, só me lembrava do coronel autorizando a invasão ao presídio, talvez ele imaginasse que estivesse fazendo uma limpeza justa. Eram todos bandidos, mesmo, só não pensou nas consequências, pensou que aqueles ali não tivessem família, que ninguém choraria por eles. Mais grave, entre os mortos, muita gente era primária, estava ali por interpretações mal feitas de algum juiz.

Foram 111 presos mortos no pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, um dia para não esquecer:  2 de outubro de 1992.

Lembro-me bem, foi nos Jardins, na casa de um ex-professor da faculdade, que era muito amigo do coronel. A partir dali, ensaiei cada lance, cada jogada. Muitas vezes vacilei, senti vergonha de mim, mas resisti.

Se eu me arrependo? Claro que não, só sinto por não estar atenta às câmeras de segurança. Vacilei, mas quem não vacila?



Raul Bopp - Poema

DIAMBA 



Negro velho fuma diamba
pra amassar a memória.

O que é bom fica lá longe…

Os olhos vão se embora pra longe.
O ouvido de repente parou.

Com mais uma pitada
o chão perdeu o fundo.
Negro escorregou.
Caiu no meio da África.

Então apareceu no fundo da floresta
uma tropa de elefantes enormes
trotando.
Cinquenta elefantes
puxando uma lagoa.

– Para onde vão levando esta lagoa?
Está derramando água no caminho.

A água do caminho juntou
correu, correu.
Fez o rio Congo.

Águas tristes gemeram
e as estrelas choraram.

- Aquele navio veio buscar o rio Congo!
Então as florestas se reuniram
e emprestaram um pouco de sombras pro rio Congo dormir.

Os coqueiros debruçaram-se na praia
para dizer adeus.


In. Urucungo (19320) Poemas negros


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