Apesar de seus longos anos em Paris, Cortázar continuava sendo essencialmente um argentino. Penso que isto está suficientemente claro, para que não se insista a respeito. Basta ler seus contos, seus romances e seus poemas para compreendê-lo, para espantar-se com o fato de certos espíritos estreitos terem reprovado seu afrancesamento e terem rasgado as próprias vestes, como os fariseus escandalizados.
Era, claro, um argentino que tinha incorporado à sua cultura tudo o que a Europa pode oferecer – literatura, arte, música, velhas catedrais e séculos de história concentrados numa pedra coberta de limo visitada por um gato, no sorriso de um ancião que bebe seu copo de vinho na taverna de um vilarejo do Midi – mas que no fundo de si mesmo sabia que sua alma estava pregada para sempre no Cruzeiro do Sul.
Daí a necessidade de criar “passagens”, zonas misteriosas que conduzem diretamente da galeria Güemes de Buenos Aires às galeries Vivienne de Paris, pontilhões que se apóiam no Sena e que permitem cruzar o Riachuelo da Boca, em Buenos Aires. Daí essas caminhadas que começam no Pont dês Arts e terminam no Once, ou os pesadelos nos quais um índio mexicano acredita haver escapado da faca ritual de pedra porque durante algumas horas conseguiu se refugiar numa cidade que ainda não existia.Foi numas quadras, depois musicadas por Edgardo Cantón, que Julio cantou, assim, suas inesgotáveis saudades de Buenos Aires:
Sinto falta do Cruzeiro do Sul
Quando a sede me faz erguer a cabeça
Para beber teu vinho negro meia-noite.
E sinto falta das esquinas com armazéns dormilões
Onde o perfume do mate treme na pele do ar.
Compreendo que isto está sempre lá
Como um bolso onde a cada instante
A mão busca uma moeda o canivete o pente
A mão infatigável de uma estranha memória
Que reconta seus mortosCortázar foi, tanto em sua literatura como em sua ação política, um revolucionário. Num artigo publicado depois da morte de Julio no suplemento literário do New York Times, Carlos Fuentes escreveu o seguinte: “Suas posturas políticas e sua arte poética configuram-se nesta convicção: a imaginação, a arte, a forma são revolucionárias, destroem as convenções mortas, nos ensinam a enxergar, a pensar e a sentir de novo. “ Cortázar tinha crescido perto das lições do surrealismo e sua intenção era manter unido o que ele chamava de “a revolução de fora e a revolução de dentro”.
Não foi um ingênuo, como alguns pretendem, e nunca compactuou com moinhos de vento. Conhecia perfeitamente bem os perigos que espreitam os processos revolucionários, isso que ele chama de quitinización, algo assim como uma subtração, e cada vez que pôde, cada vez que acreditou que era seu dever alertar e dizer, alertou e disse. Porém, não para somar sua voz ao coro dos arrependidos que acham que mostram generosidade criticando, mas para alertar os condutores desses processos, para contribuir, na medida em que ele se considerava capaz de fazê-lo, para vitalizá-los, para impedir que as burocracias sempre ávidas se instalem em remotos gabinetes, sempre inacessíveis ao povo.
Em um artigo publicado no dia 9 de outubro de 1983, no jornal El País, de Madri (cujo pretexto mais evidente era a conjunção astral do título do romance de George Orwel, 1984, com o ano que despencava sobre nós com suas apocalípticas ameaças), Cortázar explicou claramente sua postura:
Eu me movimento no contexto dos processos libertadores de Cuba e da Nicarágua, que conheço de perto; se critico, é por esses processos, e não contra; aqui se instala a diferença com a crítica que os rejeita de saída, embora nem sempre o reconheça explicitamente.
E concluía assim:
Frente a esta perspectiva, só creio no socialismo como possibilidade humana; mas esse socialismo deve ser uma fênix permanente, deixar atrás a si própria no processo de renovação e de invenção constantes; e isso apenas poderá ser obtido através de sua própria crítica, da qual estas anotações são vagos fragmentos.
Julio Cortázar era um militante apaixonado por aquilo que considerava as causas mais justas da América Latina, mas detestava ser qualificado de “escritor comprometido”, pelo que a expressão supõe de acatamento. Em uma carta enviada a seu amigo Roberto Fernández Retamar e publicada na revista da Casa das Américas, de Cuba, em 1967, definiu claramente sua postura:
Aceito, então, considerar-me um intelectual latino-americano, mas mantenho uma reserva: não é só por isso que direi o que quero dizer aqui. Se as circunstâncias me situam nesse contexto e dentro dele devo falar, prefiro que se entenda claramente que o faço como um ser mortal, digamos claramente, como homem de boa fé, sem que minha nacionalidade e minha vocação sejam as razões determinantes de minhas palavras
E, um pouco mais adiante, acrescentava:
(...)
Até amanhã!
In.O Fascínio das palavras.Trad.: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p.11-13
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