Motivos Pascais
I
Faltavam vinte para as quatro
da manhã, quando ele acordou. Apesar de o relógio do celular estar programado
para despertá-lo às quatro, fora antecipado pelo seu relógio biológico. Não
hesitou, saltou da cama e caminhou para a sala. fixou-se no vidro de Wintomylon:
ácido nalidíxico: tomar de 6 em 6 horas, 7 ml, por 10 dias. Sentou-se na ponta da chese, apoiou
os cotovelos nas pernas e perdeu-se em divagações.
Havia pegado no sono, quando
um piado lhe trouxera de volta, olhou mais uma vez para o celular, foi como se
o tempo tivesse parado, apenas cinco minutos haviam passado. Voltou-se para o
vidro de antibiótico, era preciso acordar a filhinha dar-lhe o remédio; não
poderia vê-la assim definhando por causa de uma infecção intestinal. Bem que
ele intuíra que o salgado que ela havia comido poderia fazer mal, mas a fome da
criança era bem maior do que qualquer cuidado. Sacudiu a filha, chamou-a e ela
respondeu sonolenta, sentando-se na cama (um grande ovo de páscoa sobreveio à
resposta da filha. Um ovo grande, azul, embrulhado com motivos pascais), ele
engoliu em seco, travou a emoção, contentando-se em ajudá-la a levar o remédio
à boca. Ela ardia em febre, ele correu à caixinha de remédio, deu-lhe vinte
gotas da dipirona, alisou-lhe os cabelos, falou alguma coisa ao seu ouvido, e
ela voltou a dormir.
Ele precisava recobrar o
sono, ele tinha de esquecer os incômodos da semana passada: a filha doente,
febre de 40°, seguida de diarréia, de espasmos, e muita moleza. Na biblioteca,
ligou o computador, para depois aquietar-se nas suas teclas. Abriu a janela,
sentiu um calafrio, tentou recompor-se, mas nada lhe tirava da ideia uma forma
de reparação. A chuva começou a cair, trazendo-lhe frescor.
Após a chuva, lembrou-se do
sonho que tivera, quando, sob uma chuva grossa, percorria as ruas estreitas e
sinuosas de um lugarejo qualquer. Errara pela noite, com medo, sem saída, no
lugar desconhecido. Benzeu-se por três vezes, assim fazia, sempre que se achava
perdido, desiludido ou ameaçado. Rodopiou no seu pequeno espaço, pensou em
acender um cigarro, mas aquilo era abominável, foram anos para afugentar o
vício, e ele, ali, tendendo a uma recaída. Respirou fundo, levantou-se da velha
cadeira amarela e rumou em direção ao quarto: a criança dormia, a febre havia
cessado. Alguma luz entrou pela persiana, iluminando o armário embutido na
parede.
Na sala, recostou-se no sofá
e, devagarzinho, foi se entregando ao sono, que veio forte, naquele instante.
Fora sacudido pelo barulho do interfone. Correu a mão pelo sofá, pelos bolsos,
até dar-se conta de que os óculos estavam no seu rosto, dormira com eles. Foi à
mesa da sala em busca do controle remoto. Após certificar-se de que era mesmo a
sua empregada, Sandra, abriu o portão, deu-lhe bom dia e saiu para tomar banho.
II
“O Inferno é aqui, a gente
arde em brasa e ninguém faz nada”. disse-lhe uma aluna na faculdade. Assentira
com a cabeça, quando ela emendou: “aqui é a cidade mais democrática do mundo,
tem um sol para cada habitante”. Lembrou-se da Comala de Rulfo, do Inferno de
Dante. Sorriu e continuou a falar sobre coesão e coerência. A cidade se
desfazia em buracos, em locas e barrocas, mas não havia de preocupar-se com
isso, o prefeito já dissera, assim como o livro do Eclesiastes: há um tempo
para tudo, inclusive para os buracos. A ele, naquele instante, só interessava a
filha.
De volta para casa,
lembrou-se de que prometera à filha um ovo de páscoa, caso ela sarasse, uma
forma de motivá-la a comer, já que, até aquele instante, só se alimentara de
água de coco e algumas colheradas de sopa. A senhora do salgado não agira
propositadamente, estava ali, com seu carro aberto, com salgados frios e duros.
Lembrou-se da fala de sua aluna: “O Inferno é aqui, a gente arde em brasa e
ninguém faz nada”.
III
Já era sexta feira e ele,
tornara-se pensativo. Vez ou outra entrava no quarto da filha adormecida,
sentia o tempo listar sua vida, o passado, como um corante, tornara-se vivo,
foi quando ele entrou no carro e rumou para o lago. Tirou a roupa e ensaiou um
mergulho. Não dissera nada, silenciara ali. (Corpo é encontrado boiando no
lago, o que confirma o que dissera a vendedora de salgados, uma senhora de
sessenta anos, ao delegado Raul Campos. Segundo ele, um dia antes ela procurara
o 1º DP, levando consigo uma bermuda, camiseta e chinelos, que dissera ter
encontrado na beira do lago . Os pertences foram encontrados no banco de um
carro, que estava com a porta do motorista aberta. O delegado disse, ainda, que
no bolso esquerdo da bermuda, foram encontradas três folhas datilografadas, o
que, a princípio, a senhora, que mal sabia ler, imaginou, depois de ler apenas
o título: “Motivos Pascais” que fosse uma carta de despedida, revelara-se como
um conto, no qual, coincidentemente, a senhora dos salgados figurava como
protagonista. Segundo a autoridade, o rapaz, um professor universitário de 43
anos, perdera a filha, há dois anos, em decorrência de uma infecção intestinal,
e passava por tratamento psiquiátrico.
Imagem retirada da Internet: ovo de páscoa
Impressionante! A leveza e a facilidade de tal leitura, conjugada com o conto fascinante me prendeu do começo ao fim. Lembrou-me dois estilos de escrever, dos dois maiores escritores do mundo - na minha opinião: J. K. Rowling em sua primeira obra para adultos, Morte Súbita, e a obra completa de Dan Brown. A autora do romance de 501 páginas aborda o acontecimento trágico com tanta naturalidade quanto a própria vida o aborda. Já o renomado escritor de O Código da Vinci descreve cada detalhe geográfico como se tivesse os conhecido a fundo por anos e anos, e não há ninguém melhor para fazer suspense. Adorei o conto!
ResponderExcluirRodrigo Naves
Engenharia Civil (Primeiro Período) - FACTO/UBEC