A MORTE NÃO MANDA AVISOS
Antes de sair ontem da fazenda para Araguaina um uivo comprido e fino de romper tímpanos espetou a madrugada. Da cama, protegido do frio do cerrado pelo cobertor, pus sentido nele. Não perdeu forças até findar de repente. Outros vieram depois lúgubres e prolongados como o primeiro. Percebi lá fora no pátio a inquietação dos cachorros, Tupã e Diana, guardiães da sede, desafiados. Alvoroçaram-se em volta da casa latindo forte para os rumos do riacho e da mata da reserva legal quatrocentos metros além. Latidos intermitentes, como para coser a paz rompida da alvorada. No oitão esquerdo da casa o garanhão bateu cascos no chão do piquete endurecido pela estiagem. Também trotou nervoso na escuridão roçando o corpo ancho nos caniços secos do capim andropogon. Tudo ali pertinho de mim, o uivo parecendo brotar da escuridão do corredor da casa que leva aos quartos.
Quem desafiava assim a paz da madrugada? Imediatamente, pelos latidos dos cachorros, elucidei o enigma de dias antes, na noite do desaparecimento do vaqueiro, encontrado morto na faixa de domínio da TO-080 dois dias depois de se acidentar com a própria moto, seis quilômetros distantes da fazenda. Aqueles uivos não eram os primeiros. Na ocasião do desaparecimento do vaqueiro foram interpretados por minha sogra como presságios da Diana.
À mesa no café da manhã, ela me olhou com o véu da superstição ainda diante dos olhos. A claridade do sol fora incapaz de varrer-lhe da face os últimos vestígios da noite mal dormida pelo sumiço do funcionário.
— Você ouviu a Diana?
— Ouvi.
— Aquilo é mau agouro... o homem desaparecido. Isso não pode ser coisa boa.
Persignou-se em seguida.
Procurei aliviar a angústia dela.
— Pareceu-me que ela sentiu o frio da madrugada.
Sacudindo negativamente a cabeça, contra-atacou com certa razão:
— Mas há tempos faz frio. Por que só agora com o desaparecimento do vaqueiro ela veio chorar assim tão feio?
Não desvendei o mistério antes porque os cachorros não latiram na noite do desaparecimento do vaqueiro. O uivo prolongado e triste não se repetiu naquela noite. Na madrugada de ontem foram ao menos três. Se a sogra não tivesse viajado antes de mim, com certeza tentaria impugnar meu retorno a Araguaina dirigindo o carro pela BR 153. Diria: “É mau agouro, não vá. Não viu o que aconteceu com o vaqueiro?”
Ainda na cama, evitando mudar de posição para não tocar a colcha fria fora do corpo, abri um sorriso: “Ah, não foi a Diana naquele dia. Foi o guará quem uivou”. Ladino, o lobo sondava uma vez mais o terreno. Queria constatar a vigilância frouxa ou a inexistência dela para abocanhar facilmente as galinhas no poleiro ou os leitões na pocilga.
A primeira coisa que fiz depois de levantar foi abrir a porta da varanda e, como sempre, Diana e Tupã me recepcionarem com a esperteza de sempre, o rabo oscilando alto de felicidade por me verem, foi afagar-lhes a cabeça e deitar antecipadamente na vasilha a ração matinal dos dois.
Podem ter estranhado a recompensa antes da hora, mas com certeza ficaram felizes.
Imagem: by JJ. Leandro
Excelente escolha, Chico Perna!!
ResponderExcluirLi Memórias de Petelico, do JJ, e quase que de uma tacada só. Adorei!!
O lobo pode perder os dentes...sua natureza jamais,diz um ditado romeno. :)
Um abraço.