Alberto Moravia - Conto

Fotogravura: Sentada de punho cerrado -1938 - Germany - By Willy Zielke
A MARCA DA OPERAÇÃO 



Marco soergueu-se, sentando-se na cama, e olhou através da penumbra o dorso da mulher, ainda adormecida. Era um dorso branco, demasiado branco, de uma brancura gorda e clara, como frequentemente acontece com mulheres louras e maduras. Ela dormia recolhida em si própria; as costas encurvadas davam uma impressão ao mesmo tempo de vigor e de esforço, como se fossem uma mola tensa no limite da sua resistência. Mas tratava-se, pensou ele ainda, de um corpo vencido e abatido, cujo sono parecia significar queda e ruína.

Desceu cuidadosamente da cama e, tal como estava, com as calças e o tronco nu, caminhando na ponta dos pés descalços, passou para o estúdio, sala grande de tecto oblíquo e grandes janelas envidraçadas. Havia uma luz precisa, de céu encoberto; ele começou a examinar com uma atenção escrupulosa e profissional os três quadros, pousados em três cavaletes, que andava a pintar simultaneamente nos últimos dias. Representavam os três a mesma coisa: um torso de mulher cortado a meio da coxa e um pouco acima do busto. O ventre era proeminente, cheio, duro como um tambor; o púbis, húmido e oblongo, com a forma de uma ameixa, surgia dividido pela fenda cor de rosa de ciclamen do sexo, e, em dois dos quadros, completamente depilado. No terceiro quadro, pelo contrário, os pêlos tinham sido pintados um a um, negros, crespos e nítidos, contra a brancura clara e como que de celulóide da pele. Os três ventres exibiam, do lado esquerdo, a marca branca da operação do apêndice. O exame dos três quadros deixou-o descontente. Gostaria de mudar alguma coisa no habitual torso feminino que vinha a pintar, sempre igual, havia anos: juntara, por isso, os pêlos do púbis no terceiro quadro, mas o resultado era decepcionante: aqueles pêlos, tão negros e tão hirsutos, introduziam uma nota de realismo num quadro que deveria, em absoluto, nada ter de realista. Bruscamente, o homem pegou numa lâmina de barba, que lhe servia para afiar os lápis, e traçou as telas de alto a baixo, duas vezes, produzindo dois cortes entrecruzados. Quanto dinheiro perdera destruindo aquele quadro já terminado? Não conseguia calcular, porque ignorava a sua cotação mais recente no mercado. Atirou fora raivosamente a lâmina e dirigiu-se para a sala de estar.

Aqui, a janela; em vez de dar para as dunas, como as do estúdio, dava directamente para a praia. Viam-se alguns arbustos rijos e amarelos que se agitavam ao vento; e mais adiante, o mar que, sob um céu nebuloso, desenrolava fatigadamente ondas verdes e brancas. No horizonte, em contrapartida, o mar era de um azul retinto, configurado por linhas paralelas que avançavam e se desfaziam umas nas outras. Marco olhou durante um momento o mar, tamborilando com os dedos na vidraça; enquanto olhava, perguntava-se porque o faria; depois foi sentar-se no divã e pôs-se a fixar, sem impaciência, mas com determinação, a porta fechada que estava à sua frente. Não pensava em nada; esperava e sabia com absoluta certeza o que ia suceder. Com efeito, passado pouco tempo, com significativa pontualidade, a porta abriu-se lentamente e a rapariguinha apareceu no limiar.

Perguntou com cautela: "Onde está a mamã", e Marco não pôde deixar de pensar que se tratava exactamente da mesma pergunta que teria podido fazer uma mulher desejosa de ficar sozinha com o seu amante. E respondeu: "A mamã está ainda a dormir. O que é que queres dela"

A resposta foi, como de costume, evasiva e ambígua: "não quero que me veja a comer o bolo - resposta onde o bolo podia significar o doce ou, pelo contrário, alguma coisa proibida e igualmente tentadora. Olha-a enquanto ela se dirige a passo miúdo até ao fundo da sala, na direcção da prateleira onde a mãe costuma guardar a caixa com os bolos; puxa um banco, sobe-lhe para cima e estende o braço, erguendo-se na ponta dos pés. Nessa posição, o vestido muito curto levanta-se-lhe no ventre, descobrindo as pernas altas e musculadas, quase desproporcionadas em relação ao resto do corpo. Marco perguntava-se se a rapariguinha faria de propósito para lhe mostrar as pernas, mas permaneceu incerto: talvez não fizesse de propósito para lhas mostrar, mas fazia de propósito para não evitar mostrar-lhas. Finalmente, decidiu tratar-se de uma provocação inconsciente. Mas que não seria inconsciente numa miúda daquela idade?

Agora que conseguira agarrar a grande caixa redonda e segurá-la contra o peito, tirava-lhe a tampa. Obtido o bolo, coloca-o entre os dentes, fecha de novo a caixa e, voltando a pôr-se na ponta dos pés, descobrindo assim uma vez mais as pernas, procura deixá-la no seu lugar. Marco adverte, paternalmente: "Cuidado, podes cair." A miúda responde novamente, não sem ambiguidade: "tu é que estás a olhar para mim; se cair a culpa é tua."

Acaba de colocar a caixa na prateleira, desce com um pulo leve e, com o bolo nos dentes, arrasta o banco para junto da mesa. É só então que trinca um pedaço do bolo, enquanto, sem pressa, se vem sentar à frente de Marco, dizendo: "então, vamos jogar"

Marco finge não compreender e pergunta: "Jogar a quê?" "Vamos lá, sabes muito bem ao que é, não estejas a fingir. O jogo da montanha russa."

Marco responde: "primeiro acaba de comer o bolo." Gostava que ela fosse levada a dizer-lhe porque tinha tanta pressa: devia existir uma razão. Mas a rapariguinha responde evasivamente:

"O bolo, só o como depois do jogo. "
"Porque é que não o comes já, antes do jogo?"
"Porque a mamã pode entrar de um momento para o outro." "Mais uma razão para comeres já
o bolo, não?"

A miúda olhou-o, espantada: "Mas não vês que estás a ser mau? É o jogo que a mamã não quer que eu jogue." Marco sentiu-se surpreendido com o realismo da resposta. E, no entanto, não podia ter a certeza de que ela soubesse o que estava a dizer. Insistiu:
 "mas a mamã também não quer que tu roubes os bolos."
"A mamã nunca quer nada."
Marco compreende que não poderá ir ao fundo do problema do que a mulher quer e não quer, e diz com indiferença:
 "como quiseres; vamos então jogar."

Vê a miúda levantar-se prontamente, pousar o bolo em cima da mesa, vir ter com ele. Mas, de repente, Vê-la parada, como se a tivesse tomado uma dúvida:

 "Tu tens uma maneira de jogar que não é muito boa para mim."
"Que maneira?"
 "este jogo chama-se o jogo da montanha russa porque eu me deixo escorregar pelas tuas pernas até ao fundo. Se tivesses, por exemplo, pernas com cem metros de comprimento, estava bem. Mas tens as pernas curtas, como toda a gente, e ainda por cima, pões uma mão à frente para me fazeres parar antes de eu chegar ao fim? A minha descida acaba logo e adeus montanha russa!"

Era verdade: ela subia para os joelhos de Marco, ele levantava-os o mais que podia, depois, com um grito de alegria, deixava-se escorregar depressa pelas pernas dele, até que o seu púbis chocava com o púbis do padrasto. Ora, ao choque, que era inevitável e de certo modo involuntário, seguia-se um segundo contacto diferente, que, pelo contrário, sendo evitável, era voluntário; ele sentia com toda a nitidez que a rapariga, durante o embate, tentava e conseguia prender-lhe o sexo com o dela. Não podia haver a mínima dúvida: os lábios fechavam-se à maneira de uma ventosa, apertando o membro dele e retendo-o por um segundo; a retenção era confirmada pelas contracções imprevistas e simultâneas que assaltavam os músculos das coxas dela. Depois, a miúda desmontava dos seus joelhos, como um cavaleiro da sela e puxando o vestido para ter os movimentos mais livres, dizia entusiasmada: "outra vez" Ele aceitava e tudo se repetia sem a menor alteração: o grito de triunfo durante a descida ao longo das pernas de Marco, a preensão dos lábios do sexo dela sobre o membro dele, a contracção dos músculos das coxas. O jogo continuava, uma e outra vez; acabava apenas quando a rapariga se declarava "cansada". E parecia, de facto, cansada, com dois vincos escuros de fadiga por baixo dos olhos azuis, estreitos e traiçoeiros como duas seteiras. O jogo prolongara-se assim durante alguns dias. Passada a primeira perturbação, ele habituara-se e tê-lo-ia certamente interrompido se não tivesse sentido curiosidade acerca da consciência e intencionalidade do comportamento da garota. Aquele contacto final dos dois sexos seria inconsciente, ou seja, originado apenas por um instinto obscuro, ou, pelo contrário, resultado já de uma decisão de hábil sedução? Essa dúvida, nem ele sabia porquê, assumira durante dias uma natureza obsessiva. Por isso, repetira várias vezes o jogo, sempre na esperança de alcançar resposta, mas sem jamais conseguir a certeza absoluta. A miúda escapava-se-Lhe, com uma volubilidade inconsciente de borboleta que voa no preciso momento em que a mão a vai agarrar. Por fim, compreendera que não teria resposta enquanto com tácita intencionalidade, fingisse estar a jogar o jogo, e que, por outro lado, a pergunta não poderia ser formulada a não ser que o jogo desse lugar a uma relação directa e irremediável. Por isso, no dia anterior, resolvera renunciar definitivamente a uma investigação que ameaçava tornar cada vez mais obscura a matéria investigada, e, justamente no momento do habitual embate, interpusera a mão entre o seu ventre e o da rapariga. E eis que ela agora lhe punha um dilema novo: ou jogar como ela queria, com preensão do membro dele entre os lábios do seu sexo, ou não jogar "" de todo. Marco, terminando a sua reflexão, disse para ver o que Lhe diria ela: ":Mas o jogo, daqui em diante, eu quero jogá-lo exactamente assim, com a mão entre mim e ti." A miúda responde, porém, prontamente e com decisão, como uma prostituta que discute com um cliente: "então não jogo mais." Marco retorquiu num tom razoável: "Ponho a mão, porque se não a puser, quando chocas comigo, fazes-me doer" Ela torna-se imediatamente séria e comenta, com a ambiguidade de "' sempre, a justificação dele: a Doer? Deve ser cá uma dor!..." "São partes delicadas", disse Marco. "não sabes isso? É preciso cuidado." Com uma sinceridade brutal e imprevista, a miúda disse de repente: "a verdade é que não tens coragem." Marco pensou: cá está, já caiu, vai desmascarar-se. E perguntou suavemente: "Diz lá porque é que eu, na tua opinião, não tenho coragem" Viu-a hesitar um instante e responder, em seguida, num sarcasmo evasivo: "por não te deixares magoar nem um bocadinho nesse sítio tão frágil." ;' Cala-se por um momento e depois diz, em voz de falsete, como se o imitasse: "cuidado, podes magoar-me nas partes delicadas." Cala-se de novo e, a seguir, inesperadamente, lança-lhe na cara: "Sabes o que é que tu és afinal?" "O quê?" "Um maníaco sexual." Era um insulto, pensou Marco, e, para mais, proferido com intenção ofensiva; contudo, detectava na voz da rapariguinha não sabia que incerteza. Por isso, perguntou logo a seguir, em tom de persuasão: "e o que é que achas que é um maníaco sexual?" A garota olhou-o confusa; era claro que não sabia como responder. Marco disse, então, muito calmo: "Estás a ver? Não sabes o que dizes." "É o que a mamã está sempre a chamar-te, eu sei lá o que é. Mas se a mamã diz, é porque é verdade." Marco compreendeu que não havia nada a fazer: a miúda era mais forte do que ele, escapar-se-Lhe-ia sempre. Disse, num tom conciliatório: "Está bem, vamos fazer o jogo como tu queres. Mas é a última vez. Depois, não volto a jogar." "Bom, assim está bem", disse ela, satisfeita. "vais ver que não te magoo." Puxou o vestido e escarranchou-se-Lhe nos joelhos, levantando primeiro uma perna e a seguir a outra, sem pudor, mas igualmente sem ostentação. Uma vez montada, apoiou-se com os flancos e disse por fim: "Então, estás pronto?" Marco respondeu: "Vem." A miúda soltou um grito de triunfo e deixou-se escorregar ao longo das pernas dele. Durante a fracção de segundo que demorou a descida, Marco teve tempo para ver, desdobrado à sua frente, como que o panorama que se olha de uma torre: todo o seu futuro até à velhice, com a rapariguinha sua amante, que cresceria a seu lado e a seu lado se faria mulher, havendo entre eles, definitivamente e sem remédio, o que estava para suceder agora. Compreendia que a verdade que perseguia há tantos dias consistia numa adulação e numa tentação, ambas sem fim, tão ilimitadas como irrealizáveis. Sim, talvez a miúda quisesse somente o jogo; mas este consistia no facto de ele dever comportar-se como se não fosse um jogo. Estas reflexões, ou melhor, iluminações, decidiram-no. No momento exacto em que o ventre dela ia tocar o seu, Marco interpõe a mão de través. A rapariga desmontou imediatamente, gritando: "não vale, não vale. Não jogo mais contigo" "E com quem vais jogar agora?" "Com a mamã." Era assim que ela continuava a escapar-se-Lhe, precisamente quando parecia que a tinha agarrado. Comentou com despeito: "Joga com quem te apetecer." "Pois jogo, mas tu és um medroso." "Porque tenho medo que tu me magoes, não é? Pois claro, é isso mesmo, tenho medo. E depois?"
Mas ela estava já a pensar noutra coisa. Disse bruscamente: "vamos jogar outro jogo."
"Que jogo?"

Vou esconder-me e tu vais à minha procura. Enquanto eu me escondo, tens que tapar os olhos com as mãos e não podes tirá-las da cara antes de eu te dizer." Marco respondeu com alívio: "Está bem, vamos jogar esse jogo." A garota afasta-se a correr gritando: "Vou-me esconder; não olhes!", e ele, pondo as duas mãos na cara, a tapar os olhos, fica à espera. Passou um lapso de tempo indefinível; tanto poderia ter sido um segundo como um minuto; depois, sentiu de repente dois lábios que Lhe tocavam a boca e um hálito leve que se misturava ao seu. Depois, enquanto mantinha ainda as mãos por cima dos olhos, os lábios começaram a roçar lentamente os dele, indo e voltando de modo gradual e calculado da direita para a esquerda e vice-versa, cada vez mais húmidos e abertos à medida que se iam deslocando. Ele pensou que daquela vez não podia haver dúvida: a miúda era um monstro de sensualidade precoce e perversa, e o envolvimento directo com ela parecia doravante tão ilegítimo como inevitável. Entretanto, os lábios iam e vinham, e agora a língua atacava-Lhe a boca como se procurasse uma passagem. Depois, eis que a língua abre facilmente passagem entre os seus dentes, penetrando inteira no interior da boca de Marco, cheia e aguçada, enquanto ele estende os braços para diante, mantendo os olhos fechados. E então sente nas suas mãos já não os ombros frágeis da rapariguita, mas as espáduas fartas e maciças da sua mulher. Abre os olhos, lançando-se para trás com vivacidade: a mulher estava de pé à sua frente, com o roupão aberto; o ventre saía de entre as pregas do tecido, um ventre em tudo semelhante ao que ele costumava pintar nos seus quadros: branco, túmido, duro, com o púbis depilado e a marca branca da operação do apêndice ao lado esquerdo. Marco ergueu os olhos e olhou para ' cima. Do alto, a mulher inclinava-se para ele, com um ar de benevolência, " uma fronte inchada de Apolo, cabelos louros e pendentes, nariz grande, boca murcha e caprichosa. Passado um momento de silêncio, interrogou-o com uma ponta de severidade: "que estavas a fazer com as duas mãos a tapar os olhos?"
"estava a jogar com a pequena" "Tinhas uma estranha expressão no rosto e foi isso que me fez vir aqui dar-te um beijo. Fiz mal" "Pelo contrário", disse Marco. Estende os braços e mergulha o seu rosto no ventre dela, beijando-a à altura do umbigo, com uma violência aplicada. Sente a mão da mulher na sua testa, que o acaricia docemente, e então afasta-se um pouco e recua. Ela fecha o roupão e pergunta: aOnde está ela?" Marco responde: "não sei ao certo. Foi esconder-se e eu tenho que ver É se a descubro." Quase no mesmo momento, um grito frouxo e distante, ressoou no apartamento. Marco fez menção de se levantar. Mas a mulher deteve-o: "Deixa-a estar onde está. O que é que vocês estavam a fazer há bocado? O jogo da montanha russa, não?"
Marco fica espantado: "como é que sabes?"
"Ouvía-vos, estava ali atrás da porta. Ora, fazes o favor, tens que prometer-me que não voltas
a fazer com ela esse jogo"
"Mas porquê?"
"Porque no jogo acontece inevitavelmente um certo contacto físico. Sabes o que é que a pequena me disse?" "Que foi?" "Disse-me: "Ele quer estar sempre a jogar à montanha russa. Eu não quero, porque ele toca-me quando jogamos. Mas o Marco insiste e eu depois aceito para lhe fazer a vontade., Marco esteve à beira de exclamar: "Mas que mentirosa?"; acabou, no entanto, por se conter, pensando que a mulher não acreditaria nele. Disse, por fim, zangado, apesar de não querer parecê-lo: "Está descansada, não volto a jogar nem esse nem nenhum outro jogo com ela." "Porquê? Devias jogar com ela outros jogos. Ela não tem pai. Tu devias ser um pai para ela." Marco respondeu, já controlado: "Tens razão, farei as vezes de pai." A mulher disse então, de súbito, pousando-lhe a mão nos cabelos: "Sabes que aquele beijo me deu vontade de fazer amor? Há já muito tempo que não me beijavas dessa maneira. Queres vir?" Ele pensou que não havia modo de furtar-se a semelhante convite. Disse: "sim." Ela pegou-Lhe na mão e guiou-o através da sala, em direcção à porta; daí, passou ao corredor escuro, introduzindo-o por fim no quarto, merguLhando na penumbra. Lá dentro, desfez-se do roupão, lançou-se de costas na cama desfeita, abriu sem delongas as pernas e esperou assim, com as pernas dobradas e abertas, que ele despisse as calças. Marco, entretanto, dizia para consigo que devia simular o ardor de um desejo que não sentia ou que, pelo menos, não sentia por ela; lançou-se com violência entre aquelas pernas, tão cheias e tão brancas. De repente, eis que a voz estridente da miúda rebentou muito próxima, dentro do quarto: "não me achaste, não me achaste" A mulher desembaraça-se com força de Marco, ergue-se toda nua, saindo da cama, e foge do quarto. Marco acendeu a luz e olhou para o canto de onde ouvira sair o grito. Havia um biombo; a miúda saiu de trás dele, imprevistamente, gritando: "Cucu!"
Marco perguntou: "mas onde é que tu estavas?"
" Aqui atrás. "
"E... que é que viste?"
"O que é que eu havia de ver! Nada, estava atrás do biombo." Ele fitou-a, inseguro. Depois, disse bruscamente: "Bem, vamos embora; anda, daqui para fora, a mamã ainda não se vestiu." Pegou-Lhe na mão, enquanto ela se deixava guiar suavemente para fora do quarto, através do corredor, até ao estúdio. Marco fecha a porta, aproxima-se do quadro que cortara com a lâmina. A miúda exclamou: "Olha, alguém te rasgou o quadro!" Marco disse com secura: "fui eu.
"E porquê?" " Porque não gostava dele." Então, ela disse, logo de seguida: "Porque é que não me fazes um retrato como fazes à mamã?
Marco respondeu: "não faço retratos. Isto pode ser o corpo de uma mulher qualquer.
A miúda indicou, apesar destas palavras, o quadro em frente: "mas a mamã tem uma ferida na
barriga, tal e qual como esta mulher. Já não gostas de fazer o retrato da mamã? Se já não gostas, porque não queres fazer o meu"
Ficou um momento calada; depois acrescentou: "eu também tenho essa ferida."
Marco sentiu-se tocado: como o esquecera?
Fora havia um ano; enquanto ele estava no estrangeiro, a miúda fora operada ao apêndice. Acabou por dizer, com esforço: Eu sei que tens." Loquaz, ela retorquiu de pronto: Quando me fizeram a operação, eu disse à mamã: agora já tenho uma ferida como tu. Então, não me fazes o retrato?


Fonte: scribd. In.Alberto Moravia Contos-Eroticos

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