Hélio Pólvora - Conto



MISS BABY

As mulheres começaram a entrar na vida de Galileu numa tarde de domingo, no jardim público. Quem tinha dinheiro pegava o bonde à porta do internato e ia ao cinema; quem não tinha, caminhava até o parque, olhava os lagos, ouvia o sussurrar das árvores, contava os dias que faltavam para as férias e a volta a casa no interior, sobretudo olhava as meninas; outros, cujos nomes apareciam na lista negra de Mr. Keith, denunciados pelos bedéis, nem mudavam de roupa: metidos na farda, tomavam café, ouviam o serviço religioso, almoçavam e erravam a tarde inteira entre os muros do velho casarão. Não era preciso ler a lista para saber o nome dos condenados; bastava ver se estavam de farda ou se vestiam o terno domingueiro. 

Galileu era de Pilão Arcado; o pai o despachara no trem, com mala e tudo, e passara um telegrama a Mr. Keith, o diretor, pedindo a fineza de recolhê-lo. Quando o trem parou na estação da Calçada, em Salvador, Galileu viu e ouviu um gringo de cara vermelha e cabelos louros entoar em voz reboante de Paul Robeson: 

— Oh! Oh! Quem é aí o menino Galilu? 

Galileu ergueu o dedo, como o pai lhe mandara fazer, e se identificou: 

— Eu, Mr. Keith. 

Os primeiros dias foram difíceis. Puseram Galileu no dormitório dos médios, porque ele, apesar dos treze anos, era desenvolvido. Na rouparia, o bedel, que tinha atrás da orelha um caroço de carne e era chamado às escondidas de Catapulta (nome que alguns veteranos afoitos abreviavam, com o sacrifício de uma consoante), mandou-o escolher um escaninho e deu-lhe um cadeado. Galileu esvaziou a mala e procurava um lugar seguro para o vidro de perfume que a mãe lhe dera quando o vidro despencou e se fez em pedaços. Aí ele se lembrou da mãe, se lembrou de Pilão Arcado, das vadiagens gostosas, pensou nos dias incertos que o aguardavam e chorou com abandono e desconsolo, o corpo sacudido pelos soluços. Os médios que estavam no dormitório foram dar-lhe tapinhas nos ombros. Às seis horas o sino tocou e o bedel tangeu todo mundo para o banheiro, onde os corpos nus se organizaram em fila, porque havia apenas dois chuveiros. Entre dois veteranos inteiramente à vontade, e que penduravam a toalha mos membros intumescidos, Galileu se encolhia, se esticava na ponta dos pés, tentava evitar contatos abdominais, fricção de protuberâncias. Dormiu mal —as camas eram separadas por um pequeno espaço — e despertou no dia seguinte com a descrição que um vizinho de voz melíflua fazia da arte de beijar, aprendida, sem dúvida, na última sessão do Jandaia, em filme de Clark Gable. 

— A gente abarca a cintura da moça com o braço esquerdo — disse o tal, agarrando Galileu estremunhado, e semicerrando os olhos. — Alisa-se com esta outra mão o seu cabelo cheiroso — e alisou o cabelo revolto de Galileu. — Depois, une-se o corpo dela ao nosso...

A essa altura, Galileu deu-lhe um pontapé. O outro era mais forte e apertou-o. Galileu tentou soltar-se à custa de cotoveladas, movimentos de ombros, cabeçadas, novos pontapés. Rolaram no chão. O outro tentava pôr-se por cima de Galileu, que ia perdendo as forças e começava a chorar de raiva ao ver os pés dos médios que os cercavam e açulavam o veterano de voz melíflua. 

— Largue o calouro! 

Era a voz autoritária de Catapulta. O círculo rompeu-se, o aperto diminuiu e cessou, Galileu se levantou e quis brigar. O bedel ameaçou pôr os dois na lista negra — e como Galileu não soubesse ainda o que ela significava, imaginou um castigo duro, talvez uma expulsão, se encolheu e enxugou as lágrimas..Desde então passou a ser respeitado. E dentro de quinze dias já se sentia.ambientado, embora sem imitar aquele modo acintoso de carregar toalhas para o banheiro. No futebol ganhou o apelido de Cueca, porque vestia o calção sobre a cueca de algodãozinho. Já não voltava ao internato, nas tardes de domingo, gabando-se de só haver pago o bonde três vezes. Ao contrário, fingia-se alheio ou sustentava o olhar desconfiado do cobrador que sacudia diante dele a mão cheia de moedas: "Faz favor! " 
Numa tarde de domingo em que perambulava com outros pelo Campo Grande, Galileu arriscou o primeiro galanteio de sua vida. Sentado num banco de madeira, à sombra de uma amendoeira de folhas enferrujadas, viu passar uma menina que lambia um sorvete com a língua cor-de-rosa, chamou-a: 

— Princesinha! 

— Merda! 

Era a palavra mais doce que já ouvira de uma mulher, fora do círculo familiar de Pilão Arcado. A princípio, escandalizou-se: as meninas bem educadas não diziam palavras feias. Depois, riu-se da resposta em cima da bucha, da coragem da resposta e do modo tranqüilo com que ela fora dita, assim como quem repete um cumprimento habitual, como quem dá boa-tarde. Seguiu a menina a distância conveniente e viu que morava na casa ajardinada da esquina. Menina estabanada, ainda inconsciente dos encantos do corpo, afastava pretendentes com uma palavra que em outra boca soaria áspera, mas na sua se revestia-se de insuspeitada doçura. 

Já Eugênia agia como mulher. Na sala de aula, sentada ao lado da irmã, gorducha, Galileu admirava-lhe a curva macia da saia azul-marinho no baixo-ventre. Estudiosas e aplicadas, traziam a lição decorada, erguiam-se e declamavam, de faces rosadas, definições difíceis, mas se uma pergunta quebrava o ritmo da exposição trazida na ponta da língua, elas se atrapalhavam, gaguejavam, emudeciam. As blusas eram brancas, com ligeiros debruns de azul na gola e nas mangas curtas, e os botões, também azuis, escalavam a saliência do busto. O internato feminino ficava um quarteirão adiante, e era possível ver-lhe o jardim, do muro do internato dos homens. Trepado no muro, Galileu acenou uma tarde para Eugênia — e a.mão gorducha, que costumava segurar a caneta bem rente à pena e sujar-se de tinta, respondeu ao aceno. Na segunda-feira, no intervalo entre a aula de inglês e a de geografia, introduziu um bilhete no caderno dela, perguntando-lhe se queria namorar com ele. Eugênia folheou o caderno à procura das últimas anotações, deu com o bilhete, espantou-se, desdobrou-o e tingiu-se de encarnado. A irmã quis tomar-lhe o papel, mas ela, num movimento rápido, enfiou-o na blusa. Afogueada, esqueceu a lição decorada com perseverança, trocou o nome de rios, misturou os períodos arqueológicos, pôs um vulcão ativo da Polinésia em plena América Central, e começou a enviesar-se na carteira. Queria olhar Galileu, sentado meio de banda, dar a esse reconhecimento um ar de casualidade, de fortuito encontro de olhos: inclinava-se para a direita, ganhava alguns centímetros no assento estreito, torcia o pescoço, que parecia duro; afinal a perna bateu no suporte da cadeira, imobilizou-se; desesperada, Eugênia acabou de girar o pescoço, encontrou Galileu, um sorriso confuso banhou-lhe o rosto cheio, os lábios tremeram. Iniciara-se entre eles um romance sem palavras, alimentado por bilhetinhos, sonetos, acenos de muro a muro, olhares esquivos na sala de aula, no culto de domingo à noite, que terminava sonolento com um apelo do Dr. Godinho: "Façamos a oração". Romance que se esbraseava nas tardes de quarta-feira, quando os internos eram obrigados pelos bedéis a evacuar o pátio onde as internas, vestindo calções de boca de elástico que lhes desnudavam as coxas, na ginástica, curvavam-se segurando arcos, mexiam os quadris, sacudiam os seios. Galileu saltava pela janela da sala de aula do quarto ano ginasial, colava os olhos a um orifício, distinguia pedaços do pátio. As coxas de Eugênia"eram grossas e brancas como roscas, quando ela corria as seios tremiam e os lábios se abriam em rachaduras de romã sobre dentes pequenos e alvos. Nos intervalos das aulas, pela manhã, a aproximação que parecia fácil e natural esbarrava na vermelhidão de Eugênia, na zombaria dos colegas. O namoro mudo espalhara-se, chegara ao conhecimento dos professores. Despeitado, Galileu entrou a imitar-lhe a voz gaguejante nas lições, o corpo pesado, o rosto manso que só se encrespava na hora da argüição. Pensava já em mancar bilhete idêntico a outra moça quando caiu doente, atravessou febril uma manhã solitária no dormitório, até que o Dr. Godinho, alto, sério e pálido, superintendente da Escola Dominical, examinou-o e diagnosticou : 

— Papeira.

Uma bola inchava na garganta, em forma de papo. Alguns pândegos imitavam o taco de bilhar, cutucavam a excrescência: 

— Bola sete na caçapa. 

Outros davam-lhe conselhos: tivesse cuidado para que a inchação não descesse a partes mais delicadas do corpo e o impedisse de andar. Galileu foi removido para o sótão. Emiliano, o servente, conduziu-o por uma escada em caracol, de onde ele avistou por uma porta aberta, ao subir os primeiros degraus, um velho esqueleto quase desconjuntado, boiões e frascos em prateleiras, e identificou um odor penetrante de éter. A escada findava num cômodo baixo e amplo, com três camas, telhado poeirento e uma janela. Era noite, a luz acesa penetrava-lhe nos olhos. As outras camas estavam ocupadas: a papeira já fizera antes dele duas vítimas. 

Despertou de manhã com o toque do sino e julgou-se no dormitório, onde se acordava com um jeito mole no corpo; acordava-se só nos olhos abertos, não se avançava logo a mão na coberta para desvendar o corpo quente. Ficava-se estirado, de olhos fixos nas traves do teto, sem pensamentos, restos de sono grudados nos membros que renasciam. Era preciso que Catapulta avançasse até o meio do dormitório e batesse palmas. Não pronunciava urna só palavra: cabeça quadrada, lábios abertos a formão, inspecionava os quatro cantos, as mãos estalavam, compassadas. No sótão o torpor podia prolongar-se, unir dia e noite. Galileu começou a contar o tempo: alguns internos já estariam aglomerados no portão para ver as meninas entrar, comboiadas por dois contratorpedeiros, a diretora e a vice-diretora do internato feminino. Os vasos de guerra, pesados, ferro-velho a pedir estaleiro, marchavam ao lado; Os internos marcavam a cadência um-dois, um-dois, as meninas sorriam, Eugênia bamboleava o corpo gorducho.

À luz do dia Galileu viu que o telhado caía para os lados até morrer rente ao forro, em recantos escuros e sujos; viu que os companheiros de sótão eram do dormitório dos maiores, deviam andar no terceiro ou quarto ano ginasial, estudar física e química, provavelmente já conheciam mulher. Quando a sineta das aulas bateu pela segunda vez — deviam ser nove horas — eles ficaram nervosos; saíram da cama e arrastaram-se para o canto sombrio da direita. 

— Você não vem? — perguntaram. 

— Ver o quê? 

— As moças no toalete. 

E deram-lhe instruções: teria de andar de quatro pés, só por cima dos caibros, pois o forro era velho, não agüentaria o peso do corpo. Avançaram arfantes sobre o madeirame carcomido, por entre teias de aranha, deitaram-se e colaram os olhos às frestas. Embaixo surgiu, como um alçapão, o ladrilho do toalete, mas os vasos sanitários estavam fora de vista. Moças entravam, ajeitavam o cabelo ao espelho ovalado, apertavam a saia nos quadris, mexiam por baixo das saias em peças íntimas. Algumas alisavam a blusa — e era tudo: as portas vedavam o mais interessante. O forro estalava, a madeira podre dos caibros parecia afundar. Galileu imaginou o estrondo como um pedaço de céu que se rasga, depois a queda entre as saias azuis, aos pés de Eugênia surpreendida no ato de empalmar os seios; cabelo despenteado, rosto chupado de doente, uma inchação gorda e brilhante na garganta, ele seria de meter medo; as moças correriam aos gritos, era bem provável que Eugênia desmaiasse. Mr. Keith o arrastaria então pela gola do pijama, dando-lhe pontapés e cachações, talvez alguns socos, porque ele lutara boxe em Princeton; no dia seguinte seria expulso. Galileu arrastou-se de volta à cama, estava na hora do Dr°. Godinho aparecer e tornar-lhe o pulso. O suor pingava no forro corno goteiras ácidas, corrosivas. 

De tarde, imerso na febre que o acalentava, ouviu pedaços de conversa, gravou um nome que ia e vinha na boca dos companheiros de doença: Miss Baby. Vasculhou a memória e não encontrou nenhuma Miss Baby do seu conhecimento. O nome era engraçado: Senhorita Bebê. Urna filha de Mr.Keith que houvesse chegado dos Estados Unidos? O apelido da secretária de Mr. Keith, que não bulia com os quadris ao andar? Alguma mulher descrita em livro? Arrastou-se para a beira da cama, sustentou com o cotovelo a cabeça que lhe parecia oca que nem cabaça. 

—- Quem é essa Miss Baby? 

Os veteranos riram. 

— Quantos anos você tem? 

— Treze. 

— Nada feito. 

— Sou do dormitório dos médios. 

Eles então lhe contaram. Disseram-lhe que entre os passageiros do bonde que passava em frente ao internato havia urna insuspeitada contorcionista, que não o apanhava no meio do percurso, e, ao contrário dos outros passageiros, preferia o banco de trás, o último, de onde via deslizar pedaços cinzentos, espelhantes ou lívidos, da cidade. Mulher miúda, já idosa, porém esgalga, de pele tensa esticada sobre os ossos corno fios de arame. Uma pele quase diáfana, quase rósea, apesar de certas manchas de ferrugem. 

Os movimentos dessa mulherzinha são oblíquos, de réptil cuidadoso apanhado a descoberto em amplas clareiras, e quando ela se senta às vezes finca os cotovelos nas coxas e escora a cabeça nos punhos cerradas; parece então um sapo de atalaia no banhado, seduzido pelo encantamento de uma serpente — ou à beira da fonte, hibernando na longa friagem. Deve morar nos contornos da cidade, nesses lugares onde a vida talvez escorra mansa, quem sabe no Rio Vermelho, talvez em Amaralina; e é possível que tenha filhos, quem sabe terá um homem; um homem que lhe admira ainda o corpo desempenado e resvaladiço, filhos que lhe ignoram a secreta ocupação que a faz sair de casa todos os dias no começo da noite e emboscar-se no último banco do bonde. Indo ou voltando, porque o centro da cidade é a sua meta, ela não é a mesma: retorna transfigurada, como se um halo a envolvesse — o paiol de fracos refletores assestados no palco, a desvendar-lhe os segredos dos braços e pernas que adquirem na sombra a consistência esponjosa de membranas. A emoção do espetáculo que os refletores focalizam e desvendam subsiste apenas nos dedos da contorcionista; dedos que tremem e se grudam como ventosas no maço de cédulas de pouco valor, separando o necessário para pagar o bonde, descer no ponto final, apanhar outro bonde e finalmente entrar na casa silenciosa onde o marido e os filhos ressonam. 

O porteiro da boate não a cumprimenta quando e1a resvala pela porta e adentra a escuridão em lestas contorções de braços, pernas e ancas; sequer leva a mão à pala do boné, na saudação habitual dos porteiros, nem mesmo faz um gesto para empurrar a folha da porta; apenas deixa-a passar, contornar as mesas, procurar o camarim penumbroso, ver-se no espelho rachado reencontrar-se nos vidros de tintas e cosméticos. Ali, diante do espelho, enquanto lhe chega esmaecido o som sincopado de tangos, ela se mete numa pele esverdeada, e enquanto suas roupas jazem no chão como a pele tisnada que uma serpente largou no caminho, fuma um cigarro e espera a hora de entrar no palco. 

Atrás da cortina que a sujeira, o pó e o tempo tornam mais pesada, há um frêmito de vida, tinir de copos, um longo sussurro de homens e mulheres que se encontram e desencontram em confabulações amorosas. De pé, agora, atrás da cortina, a contorcionista atira no chão o toco de cigarro, perfila-se.Lá na frente alguém anuncia seu número, a orquestra ataca uma valsa lenta. E ela, com um salto. está nas trevas do palco, o refletor passeia, colhe-a, detém-se. 

. Ela já se habituou a essas palmas frias, a esses olhares curiosos que cedo se apagam e se desviam ou se recolhem sobre as mesas, olhares que refletem o amor, o perdido ou encontrado ou procurado amor, pensa Galileu, que não faz uma hora, dias depois, em plena convalescença, pulou o muro do internato e afinal tem diante de si a revelação da mulher, e vê que de repente os homens e mulheres percebem que a orquestra continua tocando a mesma valsa, perguntam a si mesmos se a contorcionista ainda está no palco, e guiados pelos refletores eles a redescobrem, uma massa verde e acaçapada, a mulher-sapo de todas as noites. 

A contorcionista não se apressa, não se ilude; sabe que haverá um instante em que a verdade haverá de doer, nas conversas dos homens e mulheres, e os forçará a olhá-la; aí então, quando recolhe o olhar do seu público, ela se esmera: o corpo se desconjunta, os ossos se distendem sem que se ouça um estalo, e ela se transmuda e se transforma, se enrosca e se arqueia. A valsa anima-se, chega a adquirir um ritmo de marcha; como as palmas aumentam, o corpo da contorcionista freme na inventiva de novos meneios e de novas ânsias, empenha-se na derradeira flexão, os refletores apagam-se. 

Vem o segundo número e a contorcionista é agora uma tímida cantora americana, comboiada pelo pai e pela mãe, os três dispostos a um sarau familiar. 
— Miiisss Bêêiibi! 

Surge no palco o trio, recebido com palmas: uma senhora gorda, loura, de olhos azuis, vestida de cor-de-rosa como uma adolescente; um senhor de ar alheado, que se esquece de sorrir e é cutucado pela mulher; e uma esgalga adolescente amorenada que só pode ser a Miss. O senhor e a senhora sentam-se a um canto e passam a orgulhar-se do rebento que arranha o português; a Miss cumprimenta o generoso público com um good evening que Galileu traduz logo, com orgulho — orgulho que o locutor, mulato de cabelo esticado a brilhantina, deita a perder: 

— Ela está dando boa noite! 

Miss Baby, americana que começou a fazer turnê em Belém do Pará e veio descendo o litoral, dá um beliscãozinho no queixo do locutor, que se vira para a platéia e alardeia num sorriso alvar a intimidade do beliscão aplicado sem dúvida com unhas pontiagudas, que devem doer. Depois, ela começa a cantar, sob os olhares distraídos do papai e o encanto renovado da mamãe.

— I am going to sing I Want To Be Evil. All right, Mom? 

E a senhora gorda condescende: 

— Go ahead, Baby. 

Ao cabo de uns três ou quatro números, Miss Baby consulta a platéia: 

— Estar mutcho calorr, non?

Todos concordam: realmente está quente, quentíssimo, embora seja noite de junho. Miss Baby sorri e encolhe um ombro para despir o bolero que lhe descobre dois dedos na zona equatorial da barriga. Mas arrepende-se da precipitação do gesto, pede consentimento à mãe: 

— AlI right, Mom? 

E a boa senhora, um pouco assustada, mas compreendendo que o público exige o sacrifício, reluta um pouco, acaba concordando: 

— Go ahead, Baby. 

O momento ansiosamente esperado: Galileu concentra todos os sentidos, músculos e nervos, na força do olhar. Miss Baby encolhe o ombro, liberta o braço. A orquestra toca um lullaby. Miss Baby encolhe o outro ombro, puxa o bolero num gesto de suprema renúncia, revela um busto pequeno acomodado num pedaço de pano estampado. Galileu aplaude de pé. 

– I am going to sing a French song, C'est si bon. 

E Miss Baby ginga o corpinho, introduz na letra umas variações que falam em Cadillac car, il sera très crazy,non? Encerra a audição com um see you tomorrow night, ladies and gentlemen —- e some nos bastidores, recolhe a pele esverdeada que deixou no chão. Dentro da madrugada que se inaugura ela coleia, sobe no bonde, agacha-se no último banco. As ruas passam, o brilho lhe foge dos olhos. É apenas uma criatura de meia-idade, franzina, pequena, mulher cansada a caminho de casa, onde o marido e os filhos ressonam. 

Galileu compra ao porteiro um postal de mulher nua deitada na cama e volta ao internato. Sonha com Miss Baby, contorcionista e cantora. 

In. Estranhos e Assustados, 1966 - Fonte Jornal do Conto
Imagem retirada da Internet: Contorcionist

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário aqui

Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...