Abílio Pacheco - Crônica


Abilio Pacheco
God saves the little Elza



Ano passado disse que todo ano iria escrever sobre um ex-professor por ocasião do dia 15 de Outubro. A crônica sobre o Mestre Honorato trouxe-me bons e inesperados frutos. Além de algumas surpresas e aprendizados. A literatura sempre foi uma forma de levar as pessoas a tantos e tão diferentes lugares; com a internet isso tomou outra dimensão, incontrolável. Curioso é que a crônica sobre meu professor de elétrica é a mais acessada neste meu site e é a que mais resultou em comentários fora da net. Eu que sempre escrevi literatura ficcional, pouco me havia preparado para a literatura sobre pessoas vivas mesmo. Como é o caso da crônica. Talvez por isso fique pouco à vontade para escrever sobre a outra professora que comento en passant no texto do ano passado e opte por escrever sobre uma professorinha da minha querida Coroatá, interior do Maranhão.

A escolha também tem outro motivo. Ao dizer na crônica do ano passado que dois professores logo saltaram a minha lembrança, não me dava conta que dias depois muitos outros iriam emergir. Inclusive às queixas. Não, leitor curioso, nenhum me pediu ou cobrou crônica, fui eu mesmo que terminei por colocá-los vivos e falantes na minha memória. Afinal, pus-me no lugar deles. Como eu iria me sentir se preterido… A profissão tem lá seu quê de afetivo, afeiçuoso. Daí, zelos e gelosias. Por isso, reporto-me a minha longínqua e presente Coroatá, onde tive apenas dois professores (no rigor termo, no estrito). Um deles dava-me aulas num antigo chiqueiro de porcos e só me recordo das palmatórias e do nome que hoje uso para lembrar dele: Juvêncio. A outra era a tia Elza, a pequena tia Elza.

Não. Ela não professora de inglês. Era alfabetizadora. Destas muitas que tem pelo Brasil desbravando matagais, abrindo veredas, tangendo pedras e seguindo em caminhos hostis que são as cabecinhas tolas desses cidadãos pueris. Vá lá que ensinar o gênero textual (essa coisa aí bonita da Linguística) seja algo deveras útil para o aluno no seio da via social. Mas, dá cá esta palha, ensinar a juntar consoantes e vogais para fazer sílabas; rabisco sonoro com rabisco sonoro igual a outro rabisco sonoro – ou debuxo ruidoso… Isso, mano velho, quem vai passando pela estrada asfaltada e chã parece que esquece o quanto teve de gente abrindo picada, amansando pedras e orientando asfaltos. Cada pedágio que pagamos pelas Dutras da vida deveriam reservar bons quilhões para quem foi de fazer juntar o “bê” com o “a”.

Se bem vou conseguir não sei, mas a homenagem a pequena tia Elza pode ser estendida a tantas outras professorinhas esquecidas neste pindorama que vai já à sétima economia mundial. O país se construiu gigante por ação política como um prédio de muitos andares. Cada IDH, belo como uma janela barroca. Cada fator social como uma voluta no alto de uma coluna. Nem vou falar dos pavimentos para que a alegoria não seja toda explicadinha. Mas, sustentando este “belo impávido colosso”, está coisa que ninguém vê: o alicerce. Nem falo do alicerce de hoje, cuja fachada só veremos daqui a pelo menos uma década. Mas sim das professorinhas primárias como a tia Elza de cerca de 30 anos atrás.

Há 30 anos – afirmo por conta e risco – , as professoras primárias ganhavam menos um salário mínimo, não existia FNDE, não recebiam em dia, tinham malmente o curso ginasial de Normalista (muitas nem ist0). Curso superior de qualquer coisa, noções de linguística para alfabetização, saber o que era dislalia ou dislexia, nem sonhando. Parâmetros Curriculares, quê? Livros didáticos ou mesmo de história… a tia Elza usava era a cartilha do MOBRAL para me ensinar. Imagino meu avô dizendo que a cartilha era dela, da professora. Só não faltavam paciência e boa vontade na sua casa amarela de pé direito baixo, calha de zindo num dos lados do telhado e uma ou outra telha transparente. Ô sôdade boa de sua casinha de porta e janela (ou de janela e garagem) na rua do Sol, pertinho da minha travessa da Mangueira.

Não era uma escola, não. Ela dava aulas em casa mesmo. Nada de reforço ou complemento. Minha escola era sua copa. Sem quadro negro ou campainha. Nada de turma, apenas um ou outro colega. Era quando havia algum menino mais turrão que ela mais se mostrava paciente. Uma vez deixou-nos, eu e um super almado, com seu filho. O rapaz tinha menos de 25 anos e estava de castigo na copa e cozinha, pois tinha que tomar uns litros de água (para fazer lavagem estomacal). Ela nos recomendou que não bebêssemos das garrafas dele, pois era medido (se a memória não me falha ou não me excede). Meu colega inventou de atazanar para beber da água do secretário de nossa escolinha. Como o filho da professora não deu, meu colega enfiou-lhe o lápis no braço. O lápis dele tinha sempre uma ponta longa feita a facão. Enfiou! Não em 90 graus como se cravasse faca, mas na tangente como se enfiasse injeção. O buraco no braço não bastou; ficou encravado um pedaço do grafite. Vendo o mal feito, ele sentou-se, cruzou os braços fazendo bico e assim congelando até quando a tia Elza chegou.

Seu filho foi muito cônscio. Outro teria rodado mão no pé de lata do encapetado. Quando a mãe chegou, apenas mostrou o braço e ela entendeu. Chamou-nos, eu e meu colega, para perto; para ver o machucado. Premiu para sair a ponta; fazia mais para nos provocar que para extrair o grafite. Com não sei que ternura foi explicando o que havíamos feito e se ele ficar sem o braço, como vai ser? Meu colega olhava empedernido para o vazio escondido atrás do braço ferido. Ela apertava o machucado, falava e falava e eu ia ficando “atulermado” (hoje devem dizer “constrangido”). Quando tirou o corpo estranho do braço do filho e suspendeu o grafite sujo de sangue pinçado entre os dedos, falou daquele objeto como uma coisa muito assombrosa, como algo que poderia causar coisas pavorosas. Palavra não lembro nenhuma, mas a essência e o tom da voz… Talvez tenha passado dias lembrando do incidente sempre ao ver um lápis de ponta mais alongada. Certo é que aquela candura imprimiu em mim melhor resultado que uma palmada bem dada, melhor que as palmatoradas que eu levava no chiqueiro-escola do Sr. Juvêncio.

Depois que saí de Coroatá ainda fui à casa dela uma ou outra vez. Nenhuma vez a revi. Ela sempre estava viajando para São Luís, sempre consulta ou tratamento. Já faz tempo que faleceu, uns dez ou quinze anos. Mas ela está cá neste aprendiz de professor. Deve estar comigo (metafisicamente – matéria mística) quando preciso ser mais parcimonioso com “minhas crianças”, quando o que preciso ensinar não é a lição, não é o conteúdo, mas algo de proveitoso para vida, quando (como ouvi um professor de português no CEFETPA dizer aos seus alunos) “é preciso forjar nos alunos, gente”, ou, sendo menos grosseiro, quando é necessário ser mais educador que professor e conduzir os alunos para um bom exercício de humanidade.

Belém, 14 de outubro  de 2011
Abilio Pacheco

Professor universitário, escritor, revisor de textos e organizador de antologias. Três livros publicados. É membro correspondente da Academia de Letras do Sul e Sudeste Paraense (com sede em Marabá), integra o conselho de redacção da Revista EisFluências, de Portugal, é Cônsul dos Poetas Del Mundo para o Estado do Pará e é Embaixador da Paz pelo Cercle Universal des Ambassadeurs de la Pax (Genebra-Suiça).

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