Francisco Perna Filho - Poema
San José
O que dizer do homem,
devorado pela longa noite,
longe de tudo,
da mulher amada,
dos filhos,
e da luz do dia?
Que pensará esse homem,
sem vestes e proteção,
a perder-se na frágil esperança que carrega,
no apuro de suas mãos silenciosas e impotentes?
Em que país ficaram os seus olhos
as suas preces,
a sua bússola?
O cobre, que procurava,
tornou-se pó,
perdeu-se no turvo da noite,
no desbotado encanto,
na irônica terra que o soterrara.
Nem um canto poderá reconduzi-lo,
não existem pássaros,
somente a terra,
a fundura da mina
e as lembranças a persegui-lo.
Setecentos metros terra a dentro,
milhões de soluços e desencanto,
o homem sozinho no seu pesadelo,
ouvindo o próprio grito,
penseguindo o pulsar lento
da longa noite sem fim.
Foto: Reuters
Machado de Assis - Poema
Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?
Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?
Machado de Assis - Poema
Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.
Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.
Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas já ressequidas.
Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.
Machado de Assis - Poema
A flor do embiroçu
Noite, melhor que o dia, quem não te ama? Fil. Elis. |
Quando a noturna sombra envolve a terra
E à paz convida o lavrador cansado,
À fresca brisa o seio delicado
A branca flor do embiroçu descerra.
E das límpidas lágrimas que chora
A noite amiga, ela recolhe alguma;
A vida bebe na ligeira bruma,
Até que rompe no horizonte a aurora.
Então, à luz nascente, a flor modesta,
Quando tudo o que vive alma recobra,
Languidamente as suas folhas dobra,
E busca o sono quando tudo é festa,
Suave imagem da alma que suspira
E odeia a turba vã! da alma que sente
Agitar-se-lhe a asa impaciente
E a novos mundos transportar-se aspira!
Também ela ama as horas silenciosas,
E quando a vida as lutas interrompe,
Ela da carne os duros elos rompe,
E entrega o seio às ilusões viçosas.
É tudo seu, — tempo, fortuna, espaço,
E o céu azul e os seus milhões de estrelas;
Abrasada de amor, palpita ao vê-las,
E a todas cinge no ideial abraço.
O rosto não encara indiferente,
Nem a traidora mão cândida aperta;
Das mentiras da vida se liberta
E entra no mundo que jamais não mente.
Noite, melhor que o dia, quem não te ama?
Labor ingrato, agitação, fadiga,
Tudo faz esquecer tua asa amiga
Que a alma nos leva onde a ventura a chama.
Ama-te a flor que desabrocha à hora
Em que o último olhar o sol lhe estende,
Vive, embala-se, orvalha-se, rescende,
E as folhas cerra quando rompe a aurora.
In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: flor
Machado de Assis - Poema
Menina e moça
A Ernesto Cibrão |
Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.
Às vezes recatada, outras estouvadinha,
Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;
Tem cousas de criança e modos de mocinha,
Estuda o catecismo e lê versos de amor.
Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,
De cansaço talvez, talvez de comoção.
Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,
Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.
Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
Olha furtivamente o primo que sorri;
E se corre parece, à brisa enamorada,
Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri.
Quando a sala atravessa, é raro que não lance
Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar
Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.
Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
A cama da boneca ao pé do toucador;
Quando sonha, repete, em santa companhia,
Os livros do colégio e o nome de um doutor.
Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;
E quando entra num baile, é já dama do tom;
Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;
Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.
Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo
Para ela é o estudo, excetuando-se talvez
A lição de sintaxe em que combina o verbo
To love, mas sorrindo ao professor de inglês.
Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,
Parece acompanhar uma etérea visão;
Quantas cruzando ao seio o delicado braço
Comprime as pulsações do inquieto coração!
Ah! se nesse momento, alucinado, fores
Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,
Hás de vê-la zombar de teus tristes amores,
Rir da tua aventura e contá-la à mamã.
É que esta criatura, adorável, divina,
Nem se pode explicar, nem se pode entender:
Procura-se a mulher e encontra-se a menina,
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!
In. Jornal de Poesia
Imagem: Almeida Júnior - Moça com livros
O Tempo, o relógio e o menino - Sinésio Dioliveira - Crônica
Andam em círculo
os ponteiros do relógio
não vão longe
cavalgam apenas um dia
depois retomam o mesmo caminho.
Há quem veja, no lado ingênuo da infância, a melhor fase existencial do homem. Na infância, não se consegue ver gigantes em moinhos. Na infância, não se consegue ver uma pedra no meio do caminho além de uma pedra no meio do caminho.
Sinésio Dioliveira é jornalista, professor de Português e fotógrafo (www.flickr.com/photos/
Brasigóis Felício - Poema
O PARAÍSO CONFLAGRADO
Na cidade maravilhosa
tudo está em polvorosa:
bandos em bondes
armados até os dentes
descem da Rocinha e Vidigal
Rumo ao paraíso
de São Conrado,
um dos metros quadrados
mais caros do Brasil.
É tanto tiro, que até parece
a Sarajevo, um explodir de minas
na Bósnia Herzegovina
- “deve ser mais legal
ser negão no Senegal”:
Traficantes da pesada
com armamentos de guerra
e coletes à prova de bala
II
Deve existir, em algum
rincão do paraíso tropical
um lugar mais legal
mais humilde e tranqüilo
onde se possa
passear com os filhos
sem escutar tiros disparados
por todos os lados.
Se for aquela ilha
de paz – mar da tranqüilidade –
que buscam turistas artistas,
deste balneário conflagrado
quero manter distância
Deve existir algum lugar
neste planeta água
onde se possa, à noitinha,
colocar cadeiras na calçada
e trocar dedos de prosa
com os vizinhos
- e ver a vida passar,
cheia de graça, sem
fazer pirraça, e sem
tirar o sossego da gente.
Imagem retirada da Internet: tráfico
Antônio Lisboa - Ensaio Crítico
O livro infernal do poeta Valdivino
Literatura feita para chocar. Assim poderia ser sintetizado o mais novo livro do poeta e jornalista Valdivino Braz.
Logo no prefácio o autor adverte: “Presume-se que O Gado de Deus, um livro infernal, escabroso, com personagens infames – a par com os laivos poéticos, filosóficos e divertidos -, possui autonomia para sustentar-se à parte. (...) O leitor esteja preparado. Esta obra é um tratamento de choque, de arrepiar os cabelos e deixar os incautos com cara de ouriço. Exala enxofre, fumega chifre queimado. O riso se transforma em choro e ranger de dentes. Não há, em todo o mundo, um livro como este”.
"...Só o homem livre é pastor de si mesmo, toda e única liberdade é foro íntimo...”
Com o título inicial de As dores da terra antiga, a obra recebeu Menção Honrosa no Concurso Nacional de Romances do Paraná, em 1993.
Saído das oficinas da Editora Kelps e compondo a “Coleção Goiânia em Prosa e Verso”, da Secretaria Municipal da Cultura de Goiânia, O Gado de Deus é, em essência, uma crítica mordaz às infâmias e mazelas produzidas pelo governo militar que tomou o poder no Brasil, em 1964.
Como o próprio autor define, trata-se de um relato corrosivo que expõe por inteiro o lado sórdido da vida.
Na mítica e ao mesmo tempo arena realista em que a trama se desenrola, o Brasil é visto simplesmente como “Pátria”. Nesse palco, desfilam os mais infames personagens e suas vítimas, como “o general, mandando prender e arrebentar, que é hora de tanger o gado ao matadouro”, numa referência ao general João Figueiredo, o último presidente do período militar.
Com uma linguagem poético-filosófica de tom mordaz, o texto de Valdivino Braz refere-se aos agentes da ditadura como “os homens com cabeça de cabaça”.
Marcadamente imagética, a narrativa derrama-se por uma dialética que se embebe e galopa na sonoridade das palavras. Como no trecho: “Na meia-lua ou cutelo lunar da jornada desta vida, deparei-me com pedras tapiocanga no meio do caminho, as pedras da vida e do mundo, incrustadas no fundo de minhas retinas fatigadas, meio que assim numa fadiga fatiada, dado de sobra, a mim, o que se dá em dobro, a pedra dos rins, das torções, dos tropeços e pescoções, e foi então que me vi perdido em selva tenebrosa, sem Dante e sem Drummond...” E o texto se estende por um parágrafo de 24 linhas a fio.
“Os bancos, como Deus e o Diabo, estão por toda parte, em conciliábulos de ordem financeira e armação de arapucas para seus clientes."
Em sua narrativa herética e diabólica, Braz critica a crítica e não perdoa nem a si mesmo, quando se compara ao éter “a conduzir a narrativa deste canhestro romance antirromance”...
A crueza da existência se completa no terror da palavra. Há momentos da escrita em que o autor compõe cenas sinistras: “Abrupto e traiçoeiro, o fio de arame farpado arrebenta-se na cerca; num bote de cobra, chicoteia a cara de Brasilino, e uma farpa fura-lhe o olho esquerdo. Daí que ele, imprecando contra Deus e o mundo, larga mão do ofício de fazedor de cercas”.
Um dos momentos em que a deliberada heresia torna-se mais marcante está no capítulo “As boas-vindas da casa”: “O mundo é dos espertos e dos poderosos, e nas mãos absconsas de Deus depõem-se as almas dos crédulos, o cego rebanho de tolos, tangido com a inadimplência das promessas provindas de bocas imundas, com o bafo do esôfago, e não com o hálito da pureza, nem com o sopro divino que anima o mísero barro”.
No cotidiano de “Pátria”, entre os personagens e situações que infernizam a vida de seus pobres moradores estão, segundo Braz, as instituições bancárias. “Os bancos, como Deus e o Diabo, estão por toda parte, em conciliábulos de ordem financeira e armação de arapucas para seus clientes. Graças a Deus, diz o banqueiro C.R.Cifrão, um cretino. A César o que é de César, reprisa o fanhoso Nazareno, com diploma de contabilista e puxa-saco de gente rica; agarrado feito carrapato em bago de boi, a ver o que lucra com isso. Gentinha desprezível, sem caráter!”
O texto valdiviniano despeja pontiagudas ironias em certos trechos. Como quando situa geograficamente a “Funerária Bom Repouso”, concorrente da “Funerária Vai Com Deus” e o “Cemitério Municipal Seja Bem-Vindo ao Lar”. A escrita ri da inglória, expõe o lado podre de pobres seres e reserva momento especial para os políticos.
Ao trilhar por certa convicção atéia e niilista do autor, a escrita conversa (provoca) o leitor com o seguinte trecho: “Comunga teologia? Eu não estudo Teo, mas vasculho um pouco as coisas de Deo. Está sorrindo. Gostou? Deus é Deus, seja lá o que for, e não seja por isso ficar adulando padre ou pastor. Só o homem livre é pastor de si mesmo, toda e única liberdade é foro íntimo...”
Para o autor, a humanidade é uma doença. Quando projetava este seu O Gado de Deus, Valdivino Braz já prometia: “Antes de morrer, pelas veredas pedregosas do meu cérebro, pelas urzes do meu amargo coração, pelos espinhos de meus cardos pensamentos e pela bile que a vida me derrama aos jatos pela boca, hei de escrever um livro infernal, a grande paródia, um tratado da criatura humana, no que ela tem de pior”. Vade-retro!
Antônio Lisboa é jornalista (UFG) pós-graduado em Comunicação Pública (ESPM).
Imagem retirada da Internet: gado
O Gado de Deus, de Valdivino Braz
Valdivino Braz - Coletânea
Valdivino Braz autografa romance no Pop House
Gabriel Garcia Márquez - Conto
Me alugo para sonhar
Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para esmigalhar a vidraça.
Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros, recolheram os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para o mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã, ninguém ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois pensava-se que era um dos estacionados na calçada. Mas quando o reboque tirou-o da parede descobriram o cadáver de uma mulher preso no assento do motorista pelo cinto de segurança. O golpe foi tão brutal que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto desfigurado, os sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro em forma de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado com eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para fazer compras dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada quando li a notícia nos jornais, mas fiquei intrigado por causa do anel em forma de serpente e com olhos de esmeraldas. Não consegui saber, porém, em que dedo o usava.
Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher inesquecível cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos. Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos, pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos mais temíveis.
Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre:
— Eu me alugo para sonhar.
Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira dos onze filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa, proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios.
— O que esse sonho significa — disse — não é que ele vai se afogar, mas que não deve comer doces.
A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que comia escondido, e não foi possível salvá-lo.
Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou que viveria com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela disse apenas a verdade: "Sonho". Só precisou de uma breve explicação à dona da casa para ser aceita, com um salário que dava para as despesas miúdas, mas com um bom quarto e três refeições por dia. Principalmente o café da manhã, que era o momento em que a família sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um de seus membros: o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher alegre e apaixonada por música romântica de câmara e duas crianças de onze e nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às superstições arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o compromisso único de decifrar o destino diário da família através dos sonhos.
Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da guerra, quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram sendo a única autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi absoluto: até mesmo o suspiro mais tênue dependia da sua ordem. Naqueles dias em que estive em Viena o dono da casa havia acabado de morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma parte de suas rendas, com a única condição de que continuasse sonhando para a família até o fim de seus sonhos.
Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos dos estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As visitas imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então como festas em nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que não permitia nenhuma perda de tempo.
— Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você — disse ela. — Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos próximos cinco anos.
Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me embarcou no último trem para Roma. Eu fiquei tão sugestionado que desde então me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci. Ainda não voltei a Viena.
Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em Barcelona, de maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no dia em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a Guerra Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso. Passou conosco uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na Porter comprou um livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual pagou o que seria seu salário de dois meses no consulado de Rangum. Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava a vida.
Não conheci ninguém mais parecido à ideia que a gente tem de um papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade, sempre presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que mais parecia de barbearia que de restaurante, mas era a única maneira de impedir que se banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras foi exemplar. Comeu três lagostas inteiras, esquartejando-as com mestria de cirurgião, e ao mesmo tempo devorava com os olhos os pratos de todos, e ia provando um pouco de cada um, com um deleite que contagiava o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os perceves do Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa Brava. Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que levava no coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de siri, e me disse em voz muito baixa:
— Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar.
Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas, três mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e um cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a reconheci no ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel de serpente no dedo indicador.
Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas não tinham se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa, e a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em adivinhações de sonhos.
— Só a poesia é clarividente — disse.
Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas, fiquei para trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa casa que descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde se via todo o oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito, em sua conversa ficava claro que de sonho em sonho havia terminado por se apoderar da fortuna de seus inefáveis patrões de Viena. Não me impressionou, porém, pois sempre havia pensado que seus sonhos não eram nada além de uma artimanha para viver. E disse isso a ela.
Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. "Você continua o atrevido de sempre", disse. E não falou mais, porque o resto do grupo havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a conversa, Frau Frida havia mudado de assunto.
— Aliás — disse ela —, você já pode voltar para Viena.
Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde que nos conhecemos.
— Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei — disse a ela. — Por via das dúvidas.
Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua sesta sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes que de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era preciso abrir umas janelas e fechar outras para que houvesse o grau de calor exato e uma certa classe de luz em certa direção, e um silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e despertou dez minutos depois, como as crianças, quando menos esperávamos. Apareceu na sala restaurado e com o monograma do travesseiro impresso na face.
— Sonhei com essa mulher que sonha — disse.
Matilde quis que ele contasse o sonho.
— Sonhei que ela estava sonhando comigo disse ele.
— Isso é coisa de Borges — comentei.
Ele me olhou desencantado.
— Está escrito?
— Se não estiver, ele vai escrever algum dia — respondi. — Será um de seus labirintos.
Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda despediu-se de nós, sentou-se em uma mesa afastada, e começou a escrever versos fluidos com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do navio buscamos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas quando já íamos embora sem nos despedir. Também ela acabava de despertar da sesta.
— Sonhei com o poeta — nos disse.
Assombrado, pedi que me contasse o sonho.
— Sonhei que ele estava sonhando comigo disse, e minha cara de assombro a espantou.
— O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum que não tem nada a ver com a vida real.
Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube do anel em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera. Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao embaixador português quando coincidimos, meses depois, em uma recepção diplomática. O embaixador me falou dela com um grande entusiasmo e uma enorme admiração. "O senhor não imagina como ela era extraordinária", me disse. "O senhor não resistiria à tentação de escrever um conto sobre ela". E prosseguiu no mesmo tom, com detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma conclusão final.
— Em termos concretos — perguntei no fim —, o que ela fazia?
— Nada — respondeu ele, com certo desencanto. — Sonhava.
Março de 1980
In. Doze Contos Peregrinos.
Imagem retirada da Internet: Gabo
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