Alexandre Bonafim - Poema


“Um cavalo corta o corpo

de meus ancestrais perdidos

um cavalo corta o peito,

fere o coração ferido”

Lara de Lemos



“Et beaucoup n'ont pas la chance
De le voir passer un jour
Le cheval bleu

Gilbert Becaud

O cavalo azul

à memória de Dora Ferreira da Silva



Um tropel de silêncio e eternidade

desdobra o ar em acordes levíssimos,

feitos de orvalho e bruma.

As crinas vão desatando o infinito,

as estrelas, a solidão mais aguda.

Eis o instante do cavalo azul.

Eis a sagração do céu em nós.

De seu dorso nascem os desastres.

Procelas tatuam o seu plexo.

Nos seus flancos levitam violinos de água,

teclas de pólen, sinfonias de esquecimento.

Jamais a morte poderia nos assaltar

com maior doçura, com mais bela música.

Jamais o sofrimento teve olhos tão dóceis,

cílios de mel e vinho.

Nunca o instante teve essa luz raríssima,

desenhada pelas puras formas

de um relâmpago cego,

diamante vivo a deslumbrar a noite.

A rutilância dos segundos galga nossa pele,

a terra olorosa do corpo.

Em chamejante espiral de nuvens,

o cavalo azul nos enlaça em seu fulgor,

na ternura de uma violência incontida,

dança de galáxias e sóis delirantes,

vórtice febril, iluminado.

Ao toque do seu pêlo de súbitos incêndios,

queimamos nossa alma no eterno,

aderimos nossa pele ao infindável.

Festa múltipla, embriaguês da febre,

somos a celebração dessa sonâmbula magia,

pulsar sagrado desnudando-nos para as tempestades,

para a decantação dos mares selvagens.

Eis o instante da morte aguda.

Eis o êxtase do tempo soberano.

O cavalo azul nos visita

com sua aparição de lanças desnudas,

de lâminas agudas, mil raios

a trespassarem nossas feridas.

Quando suas patas arpejam a terra,

as sementes fecundam os sonhos,

despontam do pó ramos e milagres,

frutos abençoam a encantação do amor:

o cavalo marinho e os oceanos,

o cavalo turquesa e os mares,

o cavalo de âmbar e os corais ardentes.

Reluz na noite um fulgor de adaga desnuda,

fulgente aparição a cortar o sonho dos mortos,

o sono das estrelas marinhas: cavalo azul

a relampejar pelos caminhos o tempo das cicatrizes.

Sua crina flamejante, seu ígneo peito, seduzem o luar,

ampliam pelo infinito a cintilação das marés.

Espectro de labirintos vazios,

ele galga a espuma das praias,

a agonia dos condenados à morte.

Ele dardeja a dança dos barcos,

o bordado das ondas,

a solidão dos marinheiros em febre.

Os náufragos, os miseráveis, os afogados,

clamam pela salvação desse sopro de chuvas,

desse maremoto de coices ardentes.

Serenamente soa pela brisa seu pulsar de sândalo,

o seu galope de prismas, delicado aroma

do vinho a incendiar os crepúsculos.

Ele adeja sobre o desespero, salvando-nos

da carne, do medo, do tempo.

Ele nos resgata do pó humano, soerguendo-nos

à sagração das searas fecundas.

Quando seu resfolegar nos arrebata,

nos resgata de nossos pulsos,

ressuscitamos no clarão dos rubis,

na magnitude da aurora boreal.

Desde o nascimentos estamos consagrados

à essa epifania de silêncio e mel:

o cavalo andaluz e o eclipse lunar,

o cavalo cigano e os cometas partidos,

o cavalo de absinto e o mercúrio dos astros.

Galopo no dorso das marés,

meu corpo costurado nos ciclones,

meu torso cravado em tua pele, em teu pelo lunar.

Galopante aridez, eu só sei pulsar no teu plexo,

na fecundidade dos abismos.

Corpos em sôfrega transpiração,

corpos em uníssono, rios a confluírem

num delta de vertigens, foz de enchentes

desvairadas, de correntezas alucinadas.

Possuído pela lâmina dessa fúria,

transmuto-me na energia a cegar

as lanças, os ocasos, os labirintos.

Sou o ser pleno a exaltar-te,

és o que sou, o que fui e serei.

Consagro-me à graça dessa comunhão,

pela qual sou o universo e o nada.

Nessa terra me deito, navego,

nessa pedra me enterro, respiro,

perco-me nesse instinto, nesse espasmo,

para ser o fogo dos corais,

azul febril de infinita iluminura.

Cavalo marinho, dardejante quartzo,

em tuas crinas de ágata, de prata,

queimo a palavra da última estrela,

rasgo o fulgor do teu transe,

da tua clarividência,

pois a morte se fez para os eleitos,

para os profetas, os que sabem da finitude

pelo íntimo do fruto, pelo cerne da chuva.

Eis o pulsar da fúria e das catástrofes:

o cavalo opalino e as estrelas,

o cavalo candente e a poeira dos astros,

o cavalo de vidro e os veleiros incendiados.

Soou a hora derradeira e primeira.

Eis o momento dos vendavais,

do estertor dos cataclismas.

Eis o que em nós germinou

antes do nascer das sementes:

nossa morte, cavalo azul a cortar o céu,

a lançar nosso destino aos astros,

onde a infância nos abraça novamente;

nossa morte, corcel cravejado de safiras,

noite mais densa que as rochas,

onde o azul é harpa de cristais partidos,

batel de marinhas esmaecidas.

A sombra extrema desenha nosso rosto

no vazio de outro rosto.

A sombra extrema, fruto túmido,

pleno, explode nosso íntimo,

dissolvendo-nos na fulguração do eterno.

Eis o momento do cavalo azul.

Eis a hora da ressurreição das marés.

Um tropel de sinfonias e plumas

dardeja nossa carne, rasga nosso sêmen.

O cavalo azul aflora dos abismos,

submerge dos desastres, germina das montanhas.

Em sua sede bebemos nosso avesso.

Em sua fome sorvemos nosso mistério.

Eis a travessia impossível,

onde todo homem não caminha,

porque não tem pernas, nem pés.

Eis a travessia amputada,

pasto de enigmas, partitura dos sonhos,

onde somos cegos em nosso destino cego.

Do fecundo nada, do absoluto silêncio,

nasce essa música cristalina, puríssima:

o cavalo celeste e as enchentes,

o cavalo etrusco e os anéis de saturno,

o cavalo de água e os arquipélagos selvagens.



Imagem retirada da Internet: cavalo azul

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