Francisco Perna Filho - Conto





“Não há desejo do carrasco que não seja sugerido pelo olhar da vítima”
(Pasolini)





1


Você precisa matar, precisa matar. Use uma arma branca, não pode ser de outro tipo. Tem de matar. Só assim eles vão te reconhecer, vão te respeitar.

Ali estava o corpo caído, o homem ainda ofegante. Quase ninguém percebeu. Já era tarde da noite. Uma sirene ao longe, um miado espaçado, algum gato perambulava pelos telhados vizinhos. E o corpo ali, ainda com vida. Ele parado, parado e frio, como a noite de terça. Na altura do tórax, a faca, branca, branca. Pintada de branco, mas já não tão branca. Havia sangue nela, sangue coalhando, como ele, ali congelado, não ouvia mais nada. Um táxi passou em disparada.

As vozes sempre me perseguiram, não tem momento certo. De noite, de madrugada, de dia, como se alguém falasse no meu ouvido. Já me acostumei com elas, às vezes pensam que sou maluco, mas eles não sabem que estou conversando com elas. São vozes femininas, infantis, masculinas, graves. Depende da ocasião. Esta, a que me mandou furá-lo, por incrível que pareça é infantil. É sempre assim, quando querem alguma coisa, não cessam enquanto eu não as atendo. Às vezes é uma simples coca-cola, um algodão doce; outras vezes uma cerveja, uísque. Já roubei para satisfazê-los.


Era bem tarde e as pessoas dos prédios próximos, acordadas pelo barulho da sirene, cadenciadamente acendiam as luzes, abriam as janelas. O local do crime foi se enchendo de gente, vindas dos prédios, das ruas próximas. Iam chegando e se aglomerando em volta do corpo, queriam saber, queriam testemunhar, pareciam excitadas. Todas elas. E o corpo ali, já sem vida, à vista de todos. Pronto para ser levado, para deixar o chão frio, o asfalto escuro, tão escuro quanto o sangue coalhado no homem, na faca, apesar de branca, turvo de sangue, coalhado de ódio.

Eu sabia que ele estaria ali, àquela hora. Eu sabia por que eles me disseram, ou melhor, ela me disse. A criança, de quem eu falei, me acompanha, quase sempre está por perto, me falando o que fazer. De vez em quando, me diz algumas besteiras, nem parece ser criança, mas eu não me importo, não me incomodo. É sempre assim. Ontem me perturbou o dia inteiro, falou mais forte, à tarde, que eu precisava matar, não especificou, de imediato, quem. Só me guiou, e eu atendi, fui ao encontro da vítima, no horário e lugar determinados. Ele me olhou, senti o medo estampado nos seus olhos, parecia mesmo um olhar de temor, de terror. Quanto mais ele me olhava, mais eu sentia prazer, mais a voz me conduzia, dizia-me que se eu fizesse tudo direitinho, eu seria feliz, ficaria tranqüilo, que ela desapareceria, não me incomodaria mais.

Com a chegada da polícia, as pessoas foram afastadas, a área isolada por uma fita amarela, como as que se vê em filmes policiais. E ele, como se nada tivesse acontecido permanecia aos pés do cadáver, os olhos distantes, uma voz desconexa, um semblante calmo. Um sargento e um soldado, os dois pegaram-no (o rapaz) pelo braço e levaram-no para o camburão, para o engradado da parte traseira do carrinho Fiat, enquanto os bombeiros, que também chegaram em seguida, recolhiam o corpo morto, o torto destino.

No momento, logo quando eu o avistei, tive um pressentimento de que ele fosse quem eu procurava. Parecia atraído por mim. Uma força, um visgo, sabe como é, né? Se ele quisesse correr, poderia muito bem ter corrido, mas nada, caminhou na minha direção, só conseguia ver a sua sombra. Estava muito escuro, e eu fiquei ali esperando. Tudo era silêncio, e ele caminhando na minha direção. E eu o esperei. Eu sabia que ele viria.

Fotógrafos, repórteres, a essa altura, um tumulto. Alguém grita, chama a atenção do legista, que já se recolhia. Este se volta em direção ao grito e vê um soldado trazendo, em uma das mãos, um embrulho, uma caixa envolta em papel colorido, com motivos infantis. O soldado entrega a caixa ao legista, que a recebe e a leva para a ambulância, ali estacionada.

Eu sempre tive o poder de atrair as pessoas, desde pequeno. É sério, nunca ninguém escapou de mim, dos meus desejos, das minhas vontades. As vozes, eu tinha sete anos, quando eu as ouvi pela primeira vez. Eu estava sentado, estudando, e comecei a ouvir um zumbido, sons embaralhados, estranhos. Não sabia o que fazer, só me restou correr na direção da minha mãe que estava aguando as plantas no quintal. Era manhã.

Ele chegou, não deu tempo para nada. Enfiei-lhe a faca, a faca no peito dele, com muita força. Depois fui rodando a faca, enfiando e tirando, até ele dar uma golfada de sangue e cair, quase sem vida.

Terminando o seu relato, o delegado determinou que ele fosse levado à cela, contígua à sua sala (do delegado). Puseram-no, ali, tranqüilo, sem remorso, alheio a tudo. Logo adormeceu.


2

MORS ET FUGACEM PERSEQUITUR VIRUM
(Horácio)


Ao abrir a caixa resgatada, o legista, por um bom momento, ficou a contemplar a caderneta de folhas recicladas, de capa dura, com os seguintes dizeres: Mors et Fugacem Persequitur Virum. Nas três primeiras páginas, recortes de jornais, notícias de assassinatos, desenhos de símbolos estranhos, que o legista tentou, em vão, decifrar. As bordas das páginas, todas estavam pintadas de vermelho, riscos grossos, feitos a giz-de-cera. Da quarta a sétima páginas, fotografias de armas, alguns as mais variadas, estavam presas por grampos. Nas outras, em letras quase ilegíveis, podia se ler:

1.Quando a primavera chegar, e o sol já houver se posto, uma sombra se abaterá sobre a terra, e o filho do homem, conduzido pelas nobres vozes do universo, fincará a seta do reencontro, cumprindo o que, há anos, fora programado.

2.Nada poderás fazer, senão caminhar em direção àquele que o espera. Não sentirás dor, nem medo, muito menos pavor. Não quererás fugir, nem olharás para trás. Tudo que tens a fazer é cumprir o que fora programado. Naturalmente.

3.Se cumprirdes o que estou te ditando, certamente, não mais ouvirás a minha voz e, muito mais confortável, terás cumprido a tua sina. Quando o branco da seta se unir ao teu corpo, mostrarás, com o teu sangue, que ninguém foge do seu destino.

4.Estarás deitado no asfalto escuro, assistido pelos curiosos das cercanias. Ouvirás as sirenes que se aproximam. Contemplarás o pasmo olhar das pessoas. E saberás do caminho de volta.

5.Quanto ao teu destino, verás nos olhos do outro que te olha, o teu olhar, o mesmo olhar que ele supõe ver em ti: pavor, mas nada disso te fará recuar, pois já vens caminhando há longas datas, desde a infância, quando, as primeiras vozes determinaram os teus dias.

Ao fechar a caderneta, na última capa, em letras bem miúdas, o legista pôde ler:

A morte alcança até o homem que foge.


Fonte da imagem:

Rosana Carneiro Tavares - Ensaio Crítico

Rosana Carneiro Tavares
Rosana Carneiro Tavares*
Uma Janela para a Lua*




Uma reforma prevê sempre a existência de algo que necessita ser modificado, algo que existe e que, por um tempo, teve o seu papel ou a sua verdade, mas que agora é dispensável e exige uma readequação às novas concepções existentes. A atenção à saúde mental vem passando por um período de reforma, no sentido de reestruturar a atenção à saúde da pessoa com sofrimento psíquico, buscando superar a dicotomia cartesiana de sujeito – objeto, em que a psiquiatria surgiu, estabeleceu-se e permaneceu.

Substituir um modelo de atenção que possui uma longa história por um outro que preconiza mudanças tão profundas, desde o aparato legal até mudanças culturais na sociedade, como é o caso da saúde mental, é um processo que demanda construção coletiva, em um movimento social, que aos poucos vai se ampliando na busca de mais aliados. E é nessa modificação gradativa que vem se estruturando a reforma psiquiátrica, em alguns países com mais avanços e em outros com menos. No Brasil é da mesma forma, alguns estados evoluíram mais e outros ainda estão em fase inicial. Pois é óbvio que diante da exigência de mudança de toda uma lógica pré-estabelecida e de toda a concepção social a respeito da loucura, faz-se necessário desconstruir a psiquiatria tradicional e o saber médico, para construir uma nova concepção, pautada na superação da institucionalização e, conseqüentemente, estabelecer novas práticas técnico-assistenciais de respeito aos direitos e cidadania.


A psiquiatria tradicional embasa-se em um conceitual teórico biológico, cujo objeto de foco é a doença mental e cujos instrumentos de cura são os medicamentos. Desde o surgimento da psiquiatria e todos os avanços dela decorrentes o conceito biologicista da doença mental veio sendo reforçado. Até porque, com o avanço da terapia medicamentosa, foi possível “conter” a doença e até possibilitar a “adaptação” do indivíduo na sociedade. Porém, hoje se percebe que essa prática só tem contribuído para a cronificação e para a dependência medicamentosa. Impedindo, assim, cada vez mais, o sujeito portador de sofrimento psíquico de “existir” no mundo, utilizando a concepção existencial fenomenológica de Heidegger, que afirma que o que diferencia a natureza da existência humana de outras formas biológicas de vida é o fato de quesomente o homem tem existência, somente o homem entra no devir, somente o homem se situa, isto é estabelece distâncias espaciais e toma resoluções, somente o homem pode ser ansioso e alienado e somente o homem pode propor a pergunta “Quem sou eu?”.

O modelo psicossocial concebe a loucura como um fenômeno social, e, muito mais do que se preocupar com a doença mental, volta-se para a saúde mental e propõe uma relação com sujeitos com sofrimento psíquico, trabalhando em conjunto com esse sujeito e seu grupo social para o exercício de sua cidadania. A lógica não pode ser a de um ser passivo, sem poder de voz e compreensão de sua inserção no meio social, que se submete aos cuidados de quem supostamente sabe tudo sobre sua “doença”. Deve ser, ao contrário, uma lógica de interação, onde o sujeito e o seu grupo social participam de seu processo de reintegração na sociedade.

O filme Uma janela para a lua mostra com bastante clareza o quanto a concepção que temos da loucura interfere pontualmente na nossa relação com as pessoas, podendo nos impedir, ou permitir, uma relação com sujeitos ao invés de com doentes mentais. Salvatore, talvez pelo amor ao filho, por uma disponibilidade interna de desprezar os conceitos pré-estabelecidos; ou talvez por excesso de simplicidade, soube relacionar-se com a loucura livre de pré-conceitos, respeitando o outro, compreendendo os sujeitos e incluindo-se nesse processo. Salvatore, com toda a sua simplicidade, mostra-nos o quanto a sua concepção da doença mental pode auxiliar e contribuir com os profissionais para a reintegração social do seu filho.

O filme evidencia que a reforma psiquiátrica deve ser, além de uma modificação técnico-assistencial e do aparato legal, uma reforma de pessoas. Quando Lorenzo contratou Salvatore para reformar sua casa mal sabia ele que aquele senhor (Salvatore) iria reformar a sua vida. Pois Lorenzo, como a maior parte da sociedade, concebia a loucura como uma doença de grande periculosidade, de forma que os loucos, desprovidos de juízo, não poderiam ser capazes de sentimento ou de qualquer percepção adequada do mundo. Lorenzo viveu inúmeros conflitos ao relacionar-se com aqueles loucos daquela instituição, fez várias críticas à forma como eles viviam e foi incisivo com o profissional que cuidava da instituição, não imaginava que aquelas pessoas pudessem ter sentimentos e desejos. Mas Salvatore lhe ajudou a descobrir ali gente que vive, que sofre, que tem alegria, que tem tristezas e que tem, inclusive, desejos.

Segundo o próprio relato de Lorenzo no filme, ele descobriu que sacrificou tempo, amizades e amor, pois no dia que seu pai morreu ele queria ir à escola e não o deixaram, nesse dia ele decidiu como iria agir para sempre e como iria fazer para evitar sentir a falta dele. Lorenzo percebeu que sacrificou a própria vida e a possibilidade de uma relação genuína com as pessoas, em nome de estratégias para evitar a própria dor.

Essa seria a principal mudança que deveria estabelecer-se para a efetivação da reforma psiquiátrica, a percepção da implicação da sociedade no processo de loucura e a relação com sujeitos sem a dicotomia de “loucos” e “sãos”, onde todos (trabalhadores, usuário, familiares, associações) envolvem-se em um processo de respeito às diferenças e inclusão daqueles que estão às margens de uma sociedade absorvida pelo modo de produção capitalista e, portanto, bastante excludente. Só assim poderemos ter a certeza de que não incorreremos no erro de repetir antigas práticas, apenas sob nova roupagem.



*Filme de Alberto de Simone
Rosana Carneiro Tavares é Doutora em Psicologia(PUCGoiás); Mestre em Psicologia (UCG); Especialista em Saúde Mental (UCG); Especialista em Políticas Públicas (UFG); Bacharel e Licenciada em Psicologia (UCG). Professora da CEULP ULBRA - Palmas, da PUC Goiás e Técnica da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia. Co-Autora do Livro Olhares:Experiência da CAPS. Goiânia: Kelps, 2009.


Paulo Aires Marinho - Crônica



Paulo Aires

SONHOS SUSPENSOS NO ANZOL


Os pescadores da ponte sobre o Lago de Palmas, como os admiro! Toda vez que passo por ali à noite, ao ver mulheres, homens e crianças, praticando esse ofício da paciência, volto ao universo imaginário dos rios, do mar e seus habitantes ocultos.

Todo peixe é místico e é malandro, tem cara de malandro, olhos de malícia, brinca e esnoba da isca, depois deve esconder-se em alguma loca, atrás de pedras e paus, zombando do pescador sem traquejo. Peixe exerce beleza incapturável. Acho engraçado quando dizem que uma pessoa apaixonada fica com olhos de peixe morto; e me pergunto: de que nação de águas turvas ou límpidas contraímos esse desassossego ardente que afeta o coração e os olhos?

Gosto de histórias de pescador, mentiras movediças, invencionices estapafúrdias que rendem gargalhadas, complicações amorosas, pérolas para a vasta enciclopédia popular de aventuras improváveis. Na TV, essa ficção de canoa furada valeria muito mais do que qualquer programa eleitoral. Mas um peixe assado é sempre um convite à gula, até quando se trata de um fugu, como n’O Clube dos anjos, do Veríssimo, o risco de se morrer pela boca, o feitiço contra o feiticeiro. E sabemos que na sociedade dos humanos, há peixes grandes perigosos e há peixes pequenos venenosos.
Ernest Hemingway
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O Velho Santiago
Sempre estará comigo a imagem obstinada do senhor Santiago, aquele inesquecível pescador de O velho e o Mar, do Hemingway, livro que li na adolescência, com olhos  marejados e coração aflito, como se em alto mar eu estivesse, torcendo por aquele homem cujo maior sonho era fisgar um imenso peixe. Em Santiago reside a humana utopia – esse sol infatigável de olhos diuturnos, a vigília dos seres exilados do Paraíso – que nos arremessa aos perigos do mar, ao labirinto indecifrável de nossos desejos mais ocultos.

Acredito que no Lago de Palmas resida uma multidão de peixes desconhecidos, titãs submersos, prisioneiros de um lago encarcerado, o que antes era o imponente Rio Tocantins. E me interrogo: para aonde vão os peixes-fantasmas que vagueiam pelas ruas de Palmas em dias de dilúvio?Tem meu respeito solene um animal que respira dentro d’água e ainda nada com elegância de bailarina mágica. A traíra e o tubarão são seres emblemáticos, desses eu falo com reserva de sentimento.


Outro dia estive na ponte. Conheci Seu Agenor, um artista do anzol, baixo, corpo franzino, barba cinza, voz pausada e serena. Acredita piamente que já viu tubarão no lago. Tirou o surrado boné da cabeça, olhou pro céu que estava claro, e disse: “Rapaz, por esta luz que alumia meus olhos de setenta e um anos, eu juro, já vi, por várias vezes, um tubarão, um tubarão erado aqui debaixo da ponte.” Concordei. Não havia por que discordar. Preparou a isca, fez um rodopio com o braço direito, jogou o anzol distante. Silenciamos, um silêncio aquático.
Michael Ancher Fisherman from Skagen
Pintura de Michael Anchernar
Peixe é promessa de festa, leio nos olhos de quem pesca. Tem o dom de reconciliar mãos e bocas e corações exasperados pela aventura do cotidiano. Ardilosa antítese entre a morte e a vida. Pescar, descamar, a carne branca ardendo sobre as brasas, a cerveja, o bate-papo, a amizade e o amor fortalecidos; ou espinhos e escamas sufocando a garganta, nunca se sabe ao certo. Nessa tarefa, não raro, a sedução e a ternura sobrevivem e reacendem faíscas atrevidas na cozinha, a materialização destes versos da Adélia Prado: O silêncio de quando nos vimos a primeira vez/ atravessa a cozinha como um rio profundo./ Por fim, os peixes na travessa,/ vamos dormir./ Coisas prateadas espocam:/ somos noivo e noiva.

Com insuspeita fidelidade, todos os dias, há pescadores na ponte. Terapia? Paixão pelo ofício? Batalha contra os caprichos da fome? Cada um com sua motivação. Seu Agenor sonha pegar um peixe graúdo, talvez um tubarão, acredita que um dia isso acontecerá. Um grande peixe, penso, é assunto inerente à nossa fome de horizonte marítimo. E depois de um sonho domado, outros sonhos virão, outros labirintos e novas fomes.

Fosse eu um pescador, gostaria de anzolar uma corvina, peixe bonito e saboroso, que conduz uma pedra na cabeça – a pedra da memória guarda histórias proibidas e paixões extravidas. Entre piabas e tubarões, a vida cumpre seu calendário de água corrente e reboja um comboio de indagações. São quase dez da noite. Deixo a ponte e seus pescadores. A fome bate. Sonho com uma fumegante bandeja de peixe a um milímetro do meu nariz.

Procuro um restaurante, um quiosque, um boteco. A fome aumenta. As rotatórias me deixam zonzo como um peixe suspenso no ar, rodopiando num anzol invisível. Mais rotatórias. O traço da cidade é sisudo, não quis aprender do Rio Tocantins a geografia das águas, antes das barragens. Não soube colher a sensualidade dos peixes às vésperas da piracema.  A fome é madrasta de todos os sabores, comeria até os olhos e as vísceras de um fugu. Ainda perguntarei ao Seu Agenor: Mestre, é verdade mesmo que existe tubarão no lago, ou é só história de pescador?
___________________
Paulo Aires Marinho é poeta e escritor. Autor dos livros Cantigas de Resistência, O Beijo de Vesúvio e Perto do Fogo.



REVISTA BANZEIRO - a poesia em movimento: Poema de Pedro Tierra (Hamilton Pereira)


Poema de Pedro Tierra (Hamilton Pereira)


Pedro Tierra


A morte anunciada de Josimo Tavares



1.

Há um dizer antigo
entre os homens da raça dos rios:
a morte quando se anuncia,
devora a sombra do corpo
e inventa a luz da solidão.

Você se afastou sob o sol.
Era 14 de abril.
Busquei-lhe a sombra
sobre o chão da rua
e não havia sombra.

Ainda busquei tocá-lo.
Falamos da vida
               e da morte
(a arma que me matará
já está na oficina...)
E você sorria manso
desde a defendida
solidão dos místicos.
Falamos da luta
e da necessidade de prosseguir
(os tecelões da morte
forçam os teares,
arrematam os fios
do tecido que te cobrirá...)
Imagem: http://www.torange-pt.com
2.
Incendiaram nossas casas.
Destruíram plantações.
Saquearam celeiros.
Derrubaram cocais.
Envenenaram as águas.

Invadiram povoados.
Torturaram nossos pais.
Arrancaram as orelhas dos mortos.
Atiraram nos rios corpos mutilados.
Derrubaram a cruz que erguemos,
sinal aceso da nossa memória.

Cortaram a língua dos nossos irmãos.
Violaram nossas filhas.
Assassinaram inválidos.
Queimaram crianças de colo.
Cercaram a sangue e fogo
a terra que trabalhamos.

Quem emprestará a voz
ao idioma do perdão
e protegerá com súplicas
o riso dos assassinos?!

Aniquilaram a raiz da esperança.
Esgotou-se o tempo de tolerar
e desatou-se a hora da vingança:
o primitivo nome da justiça.

3.

Todos sabiam dessa morte.
A cerca do latifúndio
                                 sabia.
Os pistoleiros, os assalariados da morte,
a polícia fardada e paisana, o GETAT,
os garimpeiros, os bêbados, as prostitutas,
as professorinhas, as beatas,
as crianças brincando no areal da rua
                                                             sabiam.

Os homens da terra, os posseiros, os saqueados,
as mulheres alfabetizadas pela dor
e pela espera
                         sabiam.

O prefeito, o juiz, o delegado, a UDR,
os fazendeiros, os crápulas
                                            sabiam.

As mãos dos assassinos
poliam as armas.

A Igreja sabia
                      e esperava...

A haste orgulhosa do babaçu
                                       sabia.
E dobrava as palmas num lamento
e multiplicava a ciência dessa morte,

os passarinhos, o relógio dos templos
mastigando o comboio das horas
e não se deteve, a água dos rios
não se deteve, fluindo irremediável
a hora dessa morte.

A pedra dos caminhos
                            sabia
e permaneceu muda,
o vento sabia
e anunciava seu gemido todavia
indecifrável.

Tuas sandálias sabiam
                                        e continuaram a caminhar.

Eu, que nasci votado à alegria
e vivo a contar o rosário interminável
dos mortos
não fiz o verso
espada de fúria,
que cindisse em dois
o comboio das horas
e descarrilasse o tempo de tua morte.

Você sabia.
E sorria
             apenas.
Como quem se lava
para chegar vestido
de algodão
                     e transparência
à hora da solidão.
Imagem: http://www.phaidon.com
4.

Quem é esse menino negro
que desafia limites?

Apenas um homem.
Sandálias surradas.
Paciência e indignação.
Riso alvo.
Mel noturno.
Sonho irrecusável.


Lutou contra cercas.
Todas as cercas.
As cercas do medo.
As cercas do ódio.
As cercas da terra.
As cercas da fome.
As cercas do corpo.
As cercas do latifúndio.


Trago na palma da mão
um punhado da terra
que te cobriu.
Está fresca.
É morena, mas ainda não é livre
como querias.
Sei aqui dentro
que não queres apenas lágrimas.
Tua terra sobre a mesa
me diz  com seu silêncio agudo
     Meu sangue se levantará
como um rio acorrentado
e romperá as cercas do mundo.

Um rio de sangues convocados
atravessará tua camisa
e ela será bandeira
sobre a cabeça dos rebelados.

Goiânia, maio de 1986.   


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