Paulo Aires |
SONHOS SUSPENSOS NO ANZOL
Os pescadores da ponte sobre o Lago de Palmas, como os admiro! Toda vez que passo por ali à
noite, ao ver mulheres, homens e crianças, praticando esse ofício da paciência,
volto ao universo imaginário dos rios, do mar e seus habitantes ocultos.
Todo
peixe é místico e é malandro, tem cara de malandro, olhos de malícia, brinca e
esnoba da isca, depois deve esconder-se em alguma loca, atrás de pedras e paus,
zombando do pescador sem traquejo. Peixe exerce beleza incapturável. Acho
engraçado quando dizem que uma pessoa apaixonada fica com olhos de peixe morto;
e me pergunto: de que nação de águas turvas ou límpidas contraímos esse
desassossego ardente que afeta o coração e os olhos?
Gosto
de histórias de pescador, mentiras movediças, invencionices estapafúrdias que
rendem gargalhadas, complicações amorosas, pérolas para a vasta enciclopédia
popular de aventuras improváveis. Na TV, essa ficção de canoa furada valeria
muito mais do que qualquer programa eleitoral. Mas um peixe assado é sempre um
convite à gula, até quando se trata de um fugu, como n’O Clube dos anjos, do
Veríssimo, o risco de se morrer pela boca, o feitiço contra o feiticeiro. E
sabemos que na sociedade dos humanos, há peixes grandes perigosos e há peixes
pequenos venenosos.
Ernest Hemingway |
O Velho Santiago |
Sempre estará comigo a imagem obstinada do senhor Santiago, aquele inesquecível
pescador de O velho e o Mar, do Hemingway,
livro que li na adolescência, com olhos
marejados e coração aflito, como se em alto mar eu estivesse, torcendo
por aquele homem cujo maior sonho era fisgar um imenso peixe. Em Santiago
reside a humana utopia – esse sol infatigável de olhos diuturnos, a vigília dos
seres exilados do Paraíso – que nos arremessa aos perigos do mar, ao labirinto
indecifrável de nossos desejos mais ocultos.
Acredito que no Lago de
Palmas resida uma multidão de peixes desconhecidos, titãs submersos,
prisioneiros de um lago encarcerado, o que antes era o imponente Rio Tocantins.
E me interrogo: para aonde vão os peixes-fantasmas que vagueiam pelas ruas de
Palmas em dias de dilúvio?Tem meu respeito solene um animal que respira dentro
d’água e ainda nada com elegância de bailarina mágica. A traíra e o tubarão são
seres emblemáticos, desses eu falo com reserva de sentimento.
Outro dia estive na ponte. Conheci Seu
Agenor, um artista do anzol, baixo, corpo franzino, barba cinza, voz pausada e
serena. Acredita piamente que já viu tubarão no lago. Tirou o surrado boné da
cabeça, olhou pro céu que estava claro, e disse: “Rapaz, por esta luz que
alumia meus olhos de setenta e um anos, eu juro, já vi, por várias vezes, um
tubarão, um tubarão erado aqui debaixo da ponte.” Concordei. Não havia por que
discordar. Preparou a isca, fez um rodopio com o braço direito, jogou o anzol
distante. Silenciamos, um silêncio aquático.
Pintura de Michael Anchernar |
Peixe é promessa de festa, leio nos olhos de
quem pesca. Tem o dom de reconciliar mãos e bocas e corações exasperados pela
aventura do cotidiano. Ardilosa antítese entre a morte e a vida. Pescar,
descamar, a carne branca ardendo sobre as brasas, a cerveja, o bate-papo, a
amizade e o amor fortalecidos; ou espinhos e escamas sufocando a garganta,
nunca se sabe ao certo. Nessa tarefa, não raro, a sedução e a ternura
sobrevivem e reacendem faíscas atrevidas na cozinha, a materialização destes
versos da Adélia Prado: O
silêncio de quando nos vimos a primeira vez/ atravessa a cozinha como um rio
profundo./ Por fim, os peixes na travessa,/ vamos dormir./ Coisas prateadas
espocam:/ somos noivo e noiva.
Com insuspeita fidelidade, todos os dias, há
pescadores na ponte. Terapia? Paixão pelo ofício? Batalha contra os caprichos
da fome? Cada um com sua motivação. Seu Agenor sonha pegar um peixe graúdo,
talvez um tubarão, acredita que um dia isso acontecerá. Um grande peixe, penso,
é assunto inerente à nossa fome de horizonte marítimo. E depois de um sonho
domado, outros sonhos virão, outros labirintos e novas fomes.
Fosse
eu um pescador, gostaria de anzolar uma corvina, peixe bonito e saboroso, que
conduz uma pedra na cabeça – a pedra da memória guarda histórias proibidas e
paixões extravidas. Entre piabas e tubarões, a vida cumpre seu calendário de
água corrente e reboja um comboio de indagações. São quase dez da noite. Deixo
a ponte e seus pescadores. A fome bate. Sonho com uma fumegante bandeja de
peixe a um milímetro do meu nariz.
Procuro
um restaurante, um quiosque, um boteco. A fome aumenta. As rotatórias me deixam
zonzo como um peixe suspenso no ar, rodopiando num anzol invisível. Mais
rotatórias. O traço da cidade é sisudo, não quis aprender do Rio Tocantins a
geografia das águas, antes das barragens. Não soube colher a sensualidade dos
peixes às vésperas da piracema. A fome é
madrasta de todos os sabores, comeria até os olhos e as vísceras de um fugu.
Ainda perguntarei ao Seu Agenor: Mestre, é verdade mesmo que existe tubarão no
lago, ou é só história de pescador?
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Paulo Aires Marinho é poeta e escritor. Autor dos livros Cantigas
de Resistência, O Beijo de Vesúvio e Perto do Fogo.
Sempre boas histórias, leituras leves e descontraídas. Excelente!
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