Pedro Tierra |
A morte anunciada de Josimo Tavares
1.
Há um dizer antigo
entre os homens da
raça dos rios:
a morte quando se
anuncia,
devora a sombra do
corpo
e inventa a luz da
solidão.
Você se afastou sob o
sol.
Era 14 de abril.
Busquei-lhe a sombra
sobre o chão da rua
e não havia sombra.
Ainda busquei
tocá-lo.
Falamos da vida
e da morte
(a arma que me matará
já está na
oficina...)
E você sorria manso
desde a defendida
solidão dos místicos.
Falamos da luta
e da necessidade de
prosseguir
(os tecelões da morte
forçam os teares,
arrematam os fios
do tecido que te
cobrirá...)
Imagem: http://www.torange-pt.com |
2.
Incendiaram nossas
casas.
Destruíram
plantações.
Saquearam celeiros.
Derrubaram cocais.
Envenenaram as águas.
Invadiram povoados.
Torturaram nossos
pais.
Arrancaram as orelhas
dos mortos.
Atiraram nos rios
corpos mutilados.
Derrubaram a cruz que
erguemos,
sinal aceso da nossa
memória.
Cortaram a língua dos
nossos irmãos.
Violaram nossas
filhas.
Assassinaram
inválidos.
Queimaram crianças de
colo.
Cercaram a sangue e
fogo
a terra que
trabalhamos.
Quem emprestará a voz
ao idioma do perdão
e protegerá com
súplicas
o riso dos
assassinos?!
Aniquilaram a raiz da
esperança.
Esgotou-se o tempo de
tolerar
e desatou-se a hora
da vingança:
o primitivo nome da
justiça.
3.
Todos sabiam dessa
morte.
A cerca do latifúndio
sabia.
Os pistoleiros, os
assalariados da morte,
a polícia fardada e
paisana, o GETAT,
os garimpeiros, os
bêbados, as prostitutas,
as professorinhas, as
beatas,
as crianças brincando
no areal da rua
sabiam.
Os homens da terra,
os posseiros, os saqueados,
as mulheres
alfabetizadas pela dor
e pela espera
sabiam.
O prefeito, o juiz, o
delegado, a UDR,
os fazendeiros, os
crápulas
sabiam.
As mãos dos
assassinos
poliam as armas.
A Igreja sabia
e esperava...
A haste orgulhosa do
babaçu
sabia.
E dobrava as palmas
num lamento
e multiplicava a
ciência dessa morte,
os passarinhos, o
relógio dos templos
mastigando o comboio
das horas
e não se deteve, a
água dos rios
não se deteve,
fluindo irremediável
a hora dessa morte.
A pedra dos caminhos
sabia
e permaneceu muda,
o vento sabia
e anunciava seu
gemido todavia
indecifrável.
Tuas sandálias sabiam
e
continuaram a caminhar.
Eu, que nasci votado
à alegria
e vivo a contar o
rosário interminável
dos mortos
não fiz o verso
espada de fúria,
que cindisse em dois
o comboio das horas
e descarrilasse o
tempo de tua morte.
Você sabia.
E sorria
apenas.
Como quem se lava
para chegar vestido
de algodão
e transparência
à hora da solidão.
Imagem: http://www.phaidon.com |
4.
Quem é esse menino
negro
que desafia limites?
Apenas um homem.
Sandálias surradas.
Paciência e
indignação.
Riso alvo.
Mel noturno.
Sonho irrecusável.
Lutou contra cercas.
Todas as cercas.
As cercas do medo.
As cercas do ódio.
As cercas da terra.
As cercas da fome.
As cercas do corpo.
As cercas do
latifúndio.
Trago na palma da mão
um punhado da terra
que te cobriu.
Está fresca.
É morena, mas ainda
não é livre
como querias.
Sei aqui dentro
que não queres apenas
lágrimas.
Tua terra sobre a
mesa
me diz com seu silêncio agudo
–
Meu
sangue se levantará
como um rio
acorrentado
e romperá as cercas
do mundo.
Um rio de sangues
convocados
atravessará tua
camisa
e ela será bandeira
sobre a cabeça dos rebelados.
Goiânia, maio de 1986.
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