A Revista Banzeiro Textual tem o prazer de apresentar inéditos (em livro) do Poeta Marcelo Vieira Ribeiro, natural de Ouro Preto/MG, que vive no Rio de Janeiro/RJ, desde 1997, onde trabalha como funcionário público federal. Engenheiro civil e advogado, é poeta tardio, tendo começado a escrever regularmente em 2012. Desde então, costuma publicar seus poemas em sua página no Facebook. Foi um dos 15 classificados no Prêmio Off-Flip 2014.



Marcelo Vieira Ribeiro





No cinzeiro




Sobrou no cinzeiro,
a ponta do cigarro.
A memória,
perdeu-se por inteiro
no alcatrão
e na nicotina.
Nada retém
a fumaça da história,
apenas o catarro
e o pulmão,
negro e refém
de sua própria sina.


A crise do poeta


O poeta está em crise:
faltam-lhe o verso e o pão.
Traz na valise
dívidas e nenhum perdão,
e à mão,
ainda mais vazia,
a folha que lhe consome
a noite e o dia.
Para o poeta em crise,
o poema se faz no branco senão
da fome.
Dilema


A mão costura
sobre a folha
as linhas
de mais um poema,
esta urdidura
de tinta e fonema,
que mal umedece
a celulose
e já se coloca em dilema:
pertencerá
a quem a tece
ou se abrirá
à escolha
do que, na leitura,
as linhas,
uma a uma, descose?

 
 O Grau da Escritura

A gota de sal
na página.

Suor
ou ponto final
do poema,

escritura
em grau
de fervura?

Menos
seria palavra fria,
banal:

não salga,
não sua,
não dura.

Não queima.



Não Há Barganha

O inseto
derrotado
na teia

é um feto
preparado
para a ceia.

Barganha
não há
se há fome,

ou a aranha
é má
por que come?


 


O peso da sombra


A sombra pesa o peso
do que lhe grava o chão,
como o verso retesa
na folha o arco da mão.

Sombra é corpo indefeso,
poema preso ao chão,
e em sua palavra pesa
o peso de sua tensão.

O verso adensa a folha
como uma sombra o chão
e entre eles a escolha

do que se ter à mão:
poemas em recolha
ou corpos sobre o chão.

 


Essa voz




Essa voz
no meu ouvido,
antes ruído
atroz,

ganhou sentido
após
eu tê-la assumido.
Vamos nós

agora
na sintonia
mais pura,

como iam outrora
a poesia
e a loucura.

 


Francisco Perna Filho - Conto

POR AMOR?



Bullet


Nada arrefece o ódio, principalmente quando ele é de morte. O que vale é a intenção, a vontade de consumar o ato. A certeza de que não vamos falhar. Dependendo da vítima, o projétil pode ser de chumbo, prata ou ouro, mas para ele, como dissera o legista: foi de chumbo mesmo. Um único e exclusivo tiro, à queima-roupa: pá! Assim mesmo, seco, como a batida de uma acha de lenha.

Eu me lembro bem: era sexta feira e eu acabara de deixar a Faculdade do Largo São Francisco, quando ouvi pelo rádio do carro a notícia fatídica. Fiquei atônita, enfiei as mãos na buzina, joguei o carro no acostamento.  Não sabia mais o que fazer e só pensava no pior. Inúmeros os cadáveres, uma verdadeira chacina, não se sabe ao certo quantos os mortos, informava o locutor da Rádio Bandeirantes.

Mesmo que não tivesse sido à bala, uma, duas, não importa a quantidade, o calibre, não importa como, o certo é que ele está morto, sem ninguém para reivindicar a autoria, seria mais digno, mas não, ninguém veio, nenhuma única palavra, nenhum sinal, nunca ouviram falar sobre ele. Foi  o que disseram.

Quando abri os olhos, o ambiente era outro, calmo, as pessoas de branco. Levantei um pouco a cabeça e pude ver a minha mãe que se aproximava, parecia um tanto abatida, quis chorar mas não o fiz, dei-me conta de que estava num hospital, de que havia batido o carro. Ele morreu, o Marquinhos morreu, o seu primo estava entre os mortos do Carandiru, disse a minha mãe. Foi brutalmente assassinado, como qualquer um ali.Tinha apenas vinte e dois anos! Não acreditei! O que era flash foi tomando consistência, lembrei-me da notícia ouvida no rádio do carro. Quis levantar-me, mas fui contida pela enfermeira.

 Talvez se não tivesse sido ele, outro estaria aqui sendo ignorado, um mundaréu de curiosos imaginando a cena, cada um a seu modo: um tapa, uma traição, um tropeção, uma dívida, droga, qualquer coisa, a imaginação humana não tem limite, o que importa mesmo é o espetáculo, neste mundo onde apenas mata-se ou morre-se. Ou você está do lado de cá ou você está do lado de lá. Matar ou morrer pode ser conjugado a qualquer tempo, em qualquer lugar. Pode ser agora, como ele aí, alheio a tudo. Pode ser depois, no futuro, a qualquer tempo.

Ainda era cedo, acabáramos de transar, porque amor mesmo eu não fazia. Eu não trazia este sentimento comigo, até porque eu não estava ali para amar, apesar dos momentos agradáveis que vivemos e dos presentes que ele me dava. Eu já havia me vestido, ele insistira em deitar-se no sofá, falei para ele do recado da secretária eletrônica, da declaração de amor que ficara gravada. Perguntei quem era aquela mulher. Ele gritou comigo, chamou-me de paranóica, ciumenta, que daquele jeito não dava mais para continuar. Pedi explicação, ele se esquivou, gritei que não aceitaria aquela vagabunda entre a gente, ele retrucou.

Ninguém escapa ao destino, ao sucesso, ao infortúnio. Cada coração bate no ritmo das suas sentenças. Assim como ele, todos os outros, centenas deles, caídos, mortificados, desprezados, sem ninguém; todos cumprindo a sorte de estarem ali na hora errada, no pavilhão errado; de estarem do outro lado.

Levantou-se bruscamente, veio em minha direção, dei um passo para trás, peguei a arma que ele guardava na estante lateral, engatilhei-a, ele tentou me conter, pediu por favor, disse que me amava. Naquele momento, só me lembrava do coronel autorizando a invasão ao presídio, talvez ele imaginasse que estivesse fazendo uma limpeza justa. Eram todos bandidos, mesmo, só não pensou nas consequências, pensou que aqueles ali não tivessem família, que ninguém choraria por eles. Mais grave, entre os mortos, muita gente era primária, estava ali por interpretações mal feitas de algum juiz.

Foram 111 presos mortos no pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, um dia para não esquecer:  2 de outubro de 1992.

Lembro-me bem, foi nos Jardins, na casa de um ex-professor da faculdade, que era muito amigo do coronel. A partir dali, ensaiei cada lance, cada jogada. Muitas vezes vacilei, senti vergonha de mim, mas resisti.

Se eu me arrependo? Claro que não, só sinto por não estar atenta às câmeras de segurança. Vacilei, mas quem não vacila?



Raul Bopp - Poema

DIAMBA 



Negro velho fuma diamba
pra amassar a memória.

O que é bom fica lá longe…

Os olhos vão se embora pra longe.
O ouvido de repente parou.

Com mais uma pitada
o chão perdeu o fundo.
Negro escorregou.
Caiu no meio da África.

Então apareceu no fundo da floresta
uma tropa de elefantes enormes
trotando.
Cinquenta elefantes
puxando uma lagoa.

– Para onde vão levando esta lagoa?
Está derramando água no caminho.

A água do caminho juntou
correu, correu.
Fez o rio Congo.

Águas tristes gemeram
e as estrelas choraram.

- Aquele navio veio buscar o rio Congo!
Então as florestas se reuniram
e emprestaram um pouco de sombras pro rio Congo dormir.

Os coqueiros debruçaram-se na praia
para dizer adeus.


In. Urucungo (19320) Poemas negros


Raul Bopp - Poema

Raul Bopp


















Estos Diábolus...


Dolores a filha do mestre da banda
foi levar figos maduros para el padre.
O padre aproveitou a ocasião para dar unos conselhos cristianos.
- Hijita,
es tiempo de prepara-te para la primera comunión.

No outro dia, hora da sesta,
a filha do mestre da banda
bateu com os dedos tímidos à porta da sacristia.

Entonces
o padre notou que Dolores
tenia unos diábolus malos metidos por el cuerpo.
- Cosa muy mala hijita.
Ai, senhor cura...

No corpinho nervoso da filha do mesmtre
o padre apalpou noventa y nueve diábolus.
- Con uno más caes en pecado mortal, hijita.
- Ai salve-me del pecado, senhor cura.

O padre trancou bem a porta
para matar todos los diábolus.
Dolores tapava o rosto com las manos.
pois o padre encontrava diábolus por todas las partes.
- Déje-me senhor cura!

Pero el cura decia que ainda havia muchos más diábolus,
fugindo por las piernas e por el pescuezo.
Dolores tremia de miedo. A voz tremia.
-Senhor...cura.

Os diábolus amarrotaram o seu vestidinho novo.
-Estos diábolus diábolus...


Costa Rica, 1931.

In. Diábolus. 

Lygia Fagundes Telles - Conto

Lygia Fagundes Telles


Herbarium





Todas as manhãs eu pegava o cesto e me embrenhava no bosque,tremendo inteira de paixão quando descobria alguma folha rara. Era medrosa mas arriscava pés e mãos por entre espinhos,formigueiros e buracos de bichos (tatu? cobra?)procurando a folha mais difícil, aquela que ele examinaria demoradamente: a escolhida ia para o álbum de capa preta. Mais tarde faria parte do herbário, ele tinha em casa um herbário com quase duas mil espécies de plantas.
“Você já viu um herbário?” – ele quis saber.

Herbarium, ensinou-me logo no primeiro dia em que chegou ao sítio. Fiquei repetindo a palavra, herbarium. Herbarium. Disse ainda que gostar de botânica era gostar de latim, quase todo o reino vegetal tinha denominação latina. Eu detestava latim mas fui correndo desencavar a gramática cor de tijolo escondida na última prateleira da estante, decorei a frase que achei mais fácil e na primeira oportunidade apontei para a formiga saúva subindo na parede: formica bestiola est. Ele ficou me olhando. A formiga é um inseto, apressei-me em traduzir. Então ele riu a risada mais gostosa de toda a temporada. Fiquei rindo também,confundida mas contente, ao menos achava alguma graça em mim.

Um vago primo botânico convalescendo de uma vaga doença. Que doença era essa que o fazia cambalear, esverdeado e úmido, quando subia rapidamente a escada ou quando andava mais tempo pela casa?

Deixei de roer as unhas, para espanto da minha mãe que já tinha feito ameaças de cortes de mesada ou proibição de festinhas no grêmio da cidade. Sem resultado. “Se eu contar, ninguém acredita” – disse ela quando viu que eu esfregava para valer a pimenta vermelha nas pontas dos dedos. Fiz minha cara inocente: na véspera, ele me advertira que eu podia ser uma moça de mãos feias,“Ainda não pensou nisso?” Nunca tinha pensado antes, nunca me importei com as mãos, mas no instante em que ele fez a pergunta comecei a me importar. E se um dia elas fossem rejeitadas como as folhas defeituosas? Ou banais. Deixei de roer as unhas e deixei de mentir. Ou passei a mentir menos, mais deu ma vez me falou no horror que tinha por tudo quanto cheirava a falsidade, escamoteação. Estávamos sentados na varanda. Ele selecionava as folhas ainda pesadas de orvalho quando me perguntou se já tinha ouvido falar em folha persistente. Não? Alisava o tenro veludo de uma malva-maçã. A fisionomia ficou branda quando amassou a folha nos dedos e sentiu o seu perfume. As folhas persistentes duravam até mesmo três anos mas as cadentes amareleciam e se despregavam ao sopro do primeiro vento. Assim a mentira, folha cadente que podia parecer tão brilhante mas de vida breve. Quando o mentiroso olhava para trás, via no final de tudo uma árvore nua. Seca. Mas o verdadeiro, esse teria uma árvore farfalhante, cheia de passarinhos – e abriu as mãos para imitar o bater de folhas e asas. Fechei as minhas. Fechei a boca em brasa agora que os tocos das unhas (já crescidas) eram tentação e punição maior. Podia dizer-lhe que justamente por me achar assim apagada é que precisava me cobrir de mentira como se veste um manto fulgurante. Dizer-lhe que diante dele, mais do que diante dos outros, tinha de inventar e fantasiar para obrigá-lo a se demorar em mim como se demorava agora na verbena – será que não percebia essa coisa tão simples?

Chegou ao sítio com suas largas calças de flanela cinza e grosso suéter de lã tecida em trança, era inverno. E era noite. Minha mãe tinha queimado incenso (era sexta-feira) e preparou o Quarto do Corcunda, corria na família a história de um corcunda que se perdeu no bosque e minha bisavó instalou-o naquele quarto que era o mais quente da casa, não podia haver melhor lugar para um corcunda perdido ou para um primo convalescente.

Convalescente do quê? Qual doença tinha ele? Tia Marita, que era alegrinha e gostava de se pintar, respondeu rindo (falava rindo)que nossos chazinhos e bons ares faziam milagres. Tia Clotilde, embutida, reticente, deu aquela sua resposta que servia a qualquer tipo de pergunta: tudo na vida podia se alterar, menos o destino traçado na mão, ela sabia ler as mãos. “Vai dormir feito uma pedra” – cochichou tia Marita quando me pediu que lhe levasse o chá de tília. Encontrei-o recostado na poltrona, a manta de xadrez cobrindo-lhe as pernas. Aspirou o chá. E me olhou, “Quer ser minha assistente?” – perguntou soprando a fumaça. “A insônia me pegou pelo pé, ando tão fora de forma, preciso que me ajude. A tarefa é colher folhas para a minha coleção, vai juntando o que bem entender que depois seleciono. Por enquanto, não posso mexer muito, terá que ir sozinha” – disse e desviou o olhar úmido para a folha que boiava na xícara. Suas mãos tremiam tanto que a xícara transbordou no pires. É o frio, pensei. Mas continuaram tremendo no dia seguinte que fez sol, amareladas como os esqueletos de ervas que eu catava no bosque e queimava na chama da vela. Mas o que ele tem?, perguntei e minha mãe respondeu que mesmo que soubesse não diria, fazia parte de um tempo em que doença era assunto íntimo.

Eu mentia sempre, com ou sem motivo. Mentia principalmente à tia Marita que era bastante tonta. Menos à minha mãe, porque tinha medo de Deus e menos ainda à tia Clotilde que era meio feiticeira e sabia ver o avesso das pessoas. Aparecendo a ocasião, eu enveredava por caminhos os mais imprevistos, sem o menor cálculo de volta. Tudo ao acaso. Mas aos poucos, diante dele, minha mentira começou a ser dirigida, com um objetivo certo. Seria mais simples, por exemplo, dizer que colhi a bétula perto do córrego onde estava o espinheiro. Mas era preciso fazer render o instante em que se detinha em mim, ocupá-lo antes de ser posta de lado como as folhas sem interesse, amontoadas no cesto. Então ramificava os perigos, exagerava as dificuldades, inventava histórias que encompridavam a mentira. Até ser decepada com um rápido golpe de olhar, não com palavras, mas com o olhar ele fazia a hidra verde rolar emudecida enquanto minha cara se tingia de vermelho – o sangue da hidra.

“Agora você vai me contar direito como foi” – ele pedia tranquilamente, tocando na minha cabeça. Seu olhar transparente. Reto. Queria a verdade. E a verdade era tão sem atrativos como a folha da roseira, expliquei-lhe isso mesmo, acho a verdade tão banal como esta folha. Ele me deu a lupa e abriu a folha na palma da mão: “Veja então de perto.” Não olhei a folha, que me importava a folha?, olhei sua pele ligeiramente úmida, branca como o papel com seu misterioso emaranhado de linhas, estourando aqui e ali em estrelas. Fui percorrendo as cristas e depressões, onde era o começo? Ou o fim? Demorei a lupa num terreno de linhas tão disciplinadas que por elas devia passar o arado, ih! Vontade de deitar minha cabeça nesse chão. Afastei a folha, queria ver apenas os caminhos. O que significa este cruzamento, perguntei e ele me puxou o cabelo: “Também você, menina?!”

Nas cartas do baralho, tia Clotilde já lhe desvendara o passado e o presente: “E mais desvendaria” – acrescentou ele guardando a lupa no bolso do avental branco, às vezes vestia o avental. O que ela previu? Ora, tanta coisa. De mais importante, só isso, que no fim da semana viria uma amiga buscá-lo, uma moça muito bonita, podia ver até a cor do seu vestido de corte antiquado, verde musgo. Os cabelos eram compridos, com reflexos de cobre, tão forte o reflexo na palma da mão!

Uma formiga vermelha entrou na greta do lajedo e lá se foi com seu pedaço de folha, veleiro desarvorado soprado pelo vento. Soprei eu também, a formiga é um inseto!, gritei, as pernas flexionadas, pendentes os braços para diante e para trás no movimento do macaco, Hi hi! hu hu! hi hi! hu hu! é um inseto! Um inseto!, repeti rolando no chão. Ele ria e procurava me levantar, você se machuca, menina, cuidado! Cuidado! Fugi para o campo, os olhos desvairados de pimenta e sal, sal na boca, não, não vinha ninguém, tudo loucura, uma louca varrida essa tia, invenção dela, invenção pura, como podia?! Até a cor do vestido, verde-musgo? E os cabelos, uma louca, tão louca como a irmã de cara pintada feito uma palhaça, rindo e tecendo seus tapetinhos, centenas de tapetinhos pela casa, na cozinha, na privada, duas loucas! Lavei os olhos cegos de dor, lavei a boca pesada de lágrimas, os últimos fiapos de unha me queimando a língua, não! Não. Não existia ninguém de cabelo de cobre que no fim da semana ia aparecer para buscá-lo, ele não ia embora nunca mais. Nunca mais!, repeti e minha mãe, que viera me chamar para o almoço, acabou se divertindo com a cara de diabo que fiz, disfarçava o medo fazendo caras de medo. E as pessoas se distraíam com essas caras e não pensavam mais em mim.

Quando lhe entreguei a folha de hera com formato de coração (um coração  de nervuras trementes se abrindo em leque até as bordas verde-azuladas)ele beijou a folha e levou-a ao peito. Espetou-a na malha do suéter: “Esta vai ser guardada aqui.” Mas não me olhou nem mesmo quando saí tropeçando no cesto. Corri até a figueira, posto de observação onde podia ver sem ser vista. Através do rendilhado de ferro do corrimão da escada, ele me pareceu menos pálido. A pele mais seca e mais firme a mão que segurava a lupa sobre a lâmina do espinho-do-brejo. Estava se recuperando, não estava? Abracei o tronco da figueira e pela primeira vez senti que abraçava Deus.

No sábado, levantei mais cedo. O sol forcejava a névoa, o dia seria azul quando ele conseguisse rompê-la. “Aonde você vai com esse vestido de maria-mijona?” – perguntou minha mãe me dando a xícara de café com leite. Por que desmanchou a barra?” Desviei sua atenção para a cobra que inventei ter visto no terreiro, toda preta com listras vermelhas, seria uma coral? Quando ela correu com a tia para ver, peguei o cesto e entrei no bosque. Como explicar-lhe que descera todas as barras das saias para esconder minhas pernas finas, cheias de marcas de picadas de mosquitos. Numa alegria desatinada fui colhendo as folhas, mordi goiabas verdes, atirei pedras nas árvores, espantando os passarinhos que cochichavam seus sonhos, me machucando de contente por entre a galharia. Corri até o córrego. Alcancei uma borboleta e prendendo-a pelas pontas das asas deixei-a na corola de uma flor, Te solto no meio do mel, gritei-lhe. O que vou receber em troca? Quando perdi o fôlego, tombei de costas nas ervas do chão. Fiquei rindo para o céu de névoa atrás da malha apertada dos ramos. Virei de bruços e esmigalhei nos dedos os cogumelos tão macios que minha boca começou a se encher d’água. Fui avançando de rastros até o pequeno vale de sombra debaixo da pedra. Ali era mais frio e maiores os cogumelos pingando um líquido viscoso dos seus chapéus inchados. Salvei uma abelhinha das mandíbulas de uma aranha, permiti que a saúva-gigante arrebatasse a aranha e a levasse na cabeça como uma trouxa de roupa esperneando, mas recuei quando apareceu o besouro de lábio leporino. Por um instante me vi refletida em seus olhos facetados. Fez meia-volta e se escondeu no fundo da fresta. Levantei a pedra: o besouro tinha desaparecido, mas no tufo raso vi uma folha que nunca encontrara antes, única. Solitária. Mas que folha era aquela? Tinha a forma aguda de uma foice, o verde do dorso com pintas vermelhas irregulares como pingos de sangue. Uma pequena foice ensanguentada – foi no que se transformou o besouro? Escondi a folha no bolso, peça principal de um jogo confuso. Essa eu não juntaria às outras folhas, essa tinha que ficar comigo, segredo que não podia ser visto. Nem tocado. Tia Clotilde previa os destinos mas eu podia modificá-los, assim, assim! e desfiz na sola do sapato o ninho de cupins que se armava debaixo da amendoeira. Fui andando solene porque no bolso onde levara o amor levava agora a morte.

Tia Marita veio ao meu encontro, mais aflita e gaguejante do que de costume. Antes de falar já começou a rir: “Acho que vamos perder nosso botânico, sabe quem chegou? A amiga, a mesma moça que Clotilde viu na mão dele, lembra? Os dois vão embora no trem da tarde, ela é linda como os amores, bem que Clotilde viu uma moça igualzinha, estou toda arrepiada, olha aí, me pergunto como a mana adivinha uma coisa dessas!”

Deixei na escada os sapatos pesados de barro. Larguei o cesto. Tia Marita me enlaçou pela cintura enquanto se esforçava para lembrar o nome da recém-chegada, um nome de flor, como era mesmo? Fez uma pausa para estranhar minha cara branca, e esse brancor de repente? Respondi que voltara correndo, a boca estava seca e o coração fazia um tuntum tão alto, ela não estava ouvindo? Encostou o ouvido no meu peito e riu se sacudindo inteira, quando tinha minha idade pensa que também não vivia assim aos pulos?


Fui me aproximando da janela. Através do vidro (poderoso como a lupa) vi os dois. Ela sentada com o álbum provisório de folhas no colo. Ele, de pé e um pouco atrás da cadeira, acariciando-lhe o pescoço, e seu olhar era o mesmo que tinha para as folhas escolhidas, a mesma leveza de dedos indo e vindo no veludo da malva-maçã. O vestido não era verde mas os cabelos soltos tinham o reflexo de cobre que transparecera na mão. Quando me viu, veio até a varanda no seu andar calmo. Mas vacilou quando disse que esse era o nosso último cesto, por acaso não tinham me avisado? O chamado era urgente, teriam que voltar nessa tarde. Sentia muito perder tão devotada ajudante, mas um dia, quem sabe?... Precisaria agora perguntar à tia Clotilde em que linha do destino aconteciam os reencontros.

Estendi-lhe o cesto, mas ao invés de segurar o cesto, segurou meu pulso: eu estava escondendo alguma coisa, não estava? O que estava escondendo, o quê? Tentei me livrar fugindo para os lados, aos arrancos, não estou escondendo nada, me larga! Ele me soltou mas continuou ali, de pé, sem tirar os olhos de mim. Encolhi quando me tocou no braço: “E o nosso trato de só dizer a verdade? Hem? Esqueceu nosso trato?” – perguntou baixinho.


Enfiei a mão no bolso e apertei a folha, intacta a umidade pegajosa da ponta aguda, onde se concentravam as nódoas vermelhas. Ele esperava. Eu quis então arrancar a toalha de crochê da mesinha, cobrir com ela a cabeça e fazer micagens, hi hi! hu hu! até vê-lo rir pelos buracos da malha, quis pular da escada e sair correndo em zigue-zague até o córrego, me vi atirando a foice na água, que sumisse na correnteza! Fui levantando a cabeça. Ele continuava esperando, e então? No fundo da sala, a moça também esperava numa névoa de ouro, tinha rompido o sol. Encarei-o pela última vez, sem remorso, quer mesmo? Entreguei-lhe a folha.

Gerardo Mello Mourão - Poesia



    Elegia de Susana

            pulchri
            "0 pulchritudo!"
            Santo Agostinho
"Un soir j'ai assis Ia Beauté sur mes genoux"
Rimbaud
    "Susana era a delícia da beleza.
    Fizeram-na despir o véu para se saciarem de sua beleza.
    Delicata nimis et pulchra specie' - (In Vulgata)
    Do Livro de Daniel - Parte Deuteronômica



    Elegia de Susana


    Atravessa a noite e o coração
    a flecha de seu nome:
    Serias Isabel ou Catarina
    eras Susana
    E os olhos te distinguem
    no catálogo dos sonhos,
    pois,
    eras uma vez a rosa, o pêssego, o favo de luz
    das pupilas de mel
    e no vinho da boca a voz de mel
    a melodia
    a embriaguês das noites e dos dias,
    pois,
    eras bela ao crepúsculo
    bela ao crepúsculo
    da aurora - e ao crepúsculo da tarde
    ias ficando cada vez mais bela

    e à penugem da noite
    regias
    inventavas
    verão e primavera
    e outras estações que tiravas dos seios
    entre linhos e sedas
    e às vezes
    entre vinhos lareiras e edredons.

    E a cada linha feita - desfeita - no teu rosto
    eras e não eras
    e eras
    a promessa e a memória da beleza
    ao crepúsculo da aurora e ao crepúsculo da tarde

    E sobre a pele números e aromas
    iam manchando e desmanchando
    a rosa de teu rosto
    e eras - e não eras
    e eras

    sugerida uma vez e outra vez e assim
    iam-se contando as pétalas
    na lentidão do gesto:

    uma rosa - outra rosa - a mesma rosa
    desabrocha devagar
    da memória da rosa
    tantas vezes achada
    tantas vezes perdida:

    ao teu poeta resta
    a rosa da memória - resta
    aquele aroma de plantas e jardins
    um riso em flor de gerânios chilenos,
    pois,
    os gerânios começavam a chegar
    e chegavam contigo
    das janelas de Viña del Mar
    ou
    dos jardins da Flórida onde
    o cisne dos navios carregados de flores
    voavam sobre as ondas rumo à noite das Bahamas:

    e ali eu te chamava Catarina.

    E à madrugada
    sábia já de beijos
    a boca te dizia
    Susana
    e eras Susana e eras Catarina
    e tinhas
    a cada estação do ano um nome novo

    E no mapa da mina de teu nome
    numeroso e único
    viajei o mapa-mundi e o mapa dos tempos
    a caminho de ti
    e desde
    e até.

Fonte: Jornal de Poesia - http://www.revista.agulha.nom.br/mour02.html

Francisco Perna Filho - Poema


Lavandiere - Cesare Bacchi (1881-1971) - Italiano

Metáfora



Agreste,
a flor de couro floresce
nas fendas do acaso.
O tempo a dedilhar-lhe as entradas,
as entranhas,
os vazios,
na secura do sertão.
Serena,
A flor de couro floresce
na relva esquecida,
no comprido lamento
dos chocalhos,
no guizo das serpentes
a espreitá-la.
Alheia,
a flor de couro floresce desencantada,
e na sua fome de cactos e pedras
desconhece outras fomes
que se avizinham.
Agreste,
a flor de couro floresce
para a colheita.


Este Poema ganhou o 2º lugar no Prêmio OFF Flip de Literatura - Paraty - 2014



Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...