Rosana Carneiro Tavares - Ensaio Crítico

Rosana Carneiro Tavares
Rosana Carneiro Tavares*
Uma Janela para a Lua*




Uma reforma prevê sempre a existência de algo que necessita ser modificado, algo que existe e que, por um tempo, teve o seu papel ou a sua verdade, mas que agora é dispensável e exige uma readequação às novas concepções existentes. A atenção à saúde mental vem passando por um período de reforma, no sentido de reestruturar a atenção à saúde da pessoa com sofrimento psíquico, buscando superar a dicotomia cartesiana de sujeito – objeto, em que a psiquiatria surgiu, estabeleceu-se e permaneceu.

Substituir um modelo de atenção que possui uma longa história por um outro que preconiza mudanças tão profundas, desde o aparato legal até mudanças culturais na sociedade, como é o caso da saúde mental, é um processo que demanda construção coletiva, em um movimento social, que aos poucos vai se ampliando na busca de mais aliados. E é nessa modificação gradativa que vem se estruturando a reforma psiquiátrica, em alguns países com mais avanços e em outros com menos. No Brasil é da mesma forma, alguns estados evoluíram mais e outros ainda estão em fase inicial. Pois é óbvio que diante da exigência de mudança de toda uma lógica pré-estabelecida e de toda a concepção social a respeito da loucura, faz-se necessário desconstruir a psiquiatria tradicional e o saber médico, para construir uma nova concepção, pautada na superação da institucionalização e, conseqüentemente, estabelecer novas práticas técnico-assistenciais de respeito aos direitos e cidadania.


A psiquiatria tradicional embasa-se em um conceitual teórico biológico, cujo objeto de foco é a doença mental e cujos instrumentos de cura são os medicamentos. Desde o surgimento da psiquiatria e todos os avanços dela decorrentes o conceito biologicista da doença mental veio sendo reforçado. Até porque, com o avanço da terapia medicamentosa, foi possível “conter” a doença e até possibilitar a “adaptação” do indivíduo na sociedade. Porém, hoje se percebe que essa prática só tem contribuído para a cronificação e para a dependência medicamentosa. Impedindo, assim, cada vez mais, o sujeito portador de sofrimento psíquico de “existir” no mundo, utilizando a concepção existencial fenomenológica de Heidegger, que afirma que o que diferencia a natureza da existência humana de outras formas biológicas de vida é o fato de quesomente o homem tem existência, somente o homem entra no devir, somente o homem se situa, isto é estabelece distâncias espaciais e toma resoluções, somente o homem pode ser ansioso e alienado e somente o homem pode propor a pergunta “Quem sou eu?”.

O modelo psicossocial concebe a loucura como um fenômeno social, e, muito mais do que se preocupar com a doença mental, volta-se para a saúde mental e propõe uma relação com sujeitos com sofrimento psíquico, trabalhando em conjunto com esse sujeito e seu grupo social para o exercício de sua cidadania. A lógica não pode ser a de um ser passivo, sem poder de voz e compreensão de sua inserção no meio social, que se submete aos cuidados de quem supostamente sabe tudo sobre sua “doença”. Deve ser, ao contrário, uma lógica de interação, onde o sujeito e o seu grupo social participam de seu processo de reintegração na sociedade.

O filme Uma janela para a lua mostra com bastante clareza o quanto a concepção que temos da loucura interfere pontualmente na nossa relação com as pessoas, podendo nos impedir, ou permitir, uma relação com sujeitos ao invés de com doentes mentais. Salvatore, talvez pelo amor ao filho, por uma disponibilidade interna de desprezar os conceitos pré-estabelecidos; ou talvez por excesso de simplicidade, soube relacionar-se com a loucura livre de pré-conceitos, respeitando o outro, compreendendo os sujeitos e incluindo-se nesse processo. Salvatore, com toda a sua simplicidade, mostra-nos o quanto a sua concepção da doença mental pode auxiliar e contribuir com os profissionais para a reintegração social do seu filho.

O filme evidencia que a reforma psiquiátrica deve ser, além de uma modificação técnico-assistencial e do aparato legal, uma reforma de pessoas. Quando Lorenzo contratou Salvatore para reformar sua casa mal sabia ele que aquele senhor (Salvatore) iria reformar a sua vida. Pois Lorenzo, como a maior parte da sociedade, concebia a loucura como uma doença de grande periculosidade, de forma que os loucos, desprovidos de juízo, não poderiam ser capazes de sentimento ou de qualquer percepção adequada do mundo. Lorenzo viveu inúmeros conflitos ao relacionar-se com aqueles loucos daquela instituição, fez várias críticas à forma como eles viviam e foi incisivo com o profissional que cuidava da instituição, não imaginava que aquelas pessoas pudessem ter sentimentos e desejos. Mas Salvatore lhe ajudou a descobrir ali gente que vive, que sofre, que tem alegria, que tem tristezas e que tem, inclusive, desejos.

Segundo o próprio relato de Lorenzo no filme, ele descobriu que sacrificou tempo, amizades e amor, pois no dia que seu pai morreu ele queria ir à escola e não o deixaram, nesse dia ele decidiu como iria agir para sempre e como iria fazer para evitar sentir a falta dele. Lorenzo percebeu que sacrificou a própria vida e a possibilidade de uma relação genuína com as pessoas, em nome de estratégias para evitar a própria dor.

Essa seria a principal mudança que deveria estabelecer-se para a efetivação da reforma psiquiátrica, a percepção da implicação da sociedade no processo de loucura e a relação com sujeitos sem a dicotomia de “loucos” e “sãos”, onde todos (trabalhadores, usuário, familiares, associações) envolvem-se em um processo de respeito às diferenças e inclusão daqueles que estão às margens de uma sociedade absorvida pelo modo de produção capitalista e, portanto, bastante excludente. Só assim poderemos ter a certeza de que não incorreremos no erro de repetir antigas práticas, apenas sob nova roupagem.



*Filme de Alberto de Simone
Rosana Carneiro Tavares é Doutora em Psicologia(PUCGoiás); Mestre em Psicologia (UCG); Especialista em Saúde Mental (UCG); Especialista em Políticas Públicas (UFG); Bacharel e Licenciada em Psicologia (UCG). Professora da CEULP ULBRA - Palmas, da PUC Goiás e Técnica da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia. Co-Autora do Livro Olhares:Experiência da CAPS. Goiânia: Kelps, 2009.


Paulo Aires Marinho - Crônica



Paulo Aires

SONHOS SUSPENSOS NO ANZOL


Os pescadores da ponte sobre o Lago de Palmas, como os admiro! Toda vez que passo por ali à noite, ao ver mulheres, homens e crianças, praticando esse ofício da paciência, volto ao universo imaginário dos rios, do mar e seus habitantes ocultos.

Todo peixe é místico e é malandro, tem cara de malandro, olhos de malícia, brinca e esnoba da isca, depois deve esconder-se em alguma loca, atrás de pedras e paus, zombando do pescador sem traquejo. Peixe exerce beleza incapturável. Acho engraçado quando dizem que uma pessoa apaixonada fica com olhos de peixe morto; e me pergunto: de que nação de águas turvas ou límpidas contraímos esse desassossego ardente que afeta o coração e os olhos?

Gosto de histórias de pescador, mentiras movediças, invencionices estapafúrdias que rendem gargalhadas, complicações amorosas, pérolas para a vasta enciclopédia popular de aventuras improváveis. Na TV, essa ficção de canoa furada valeria muito mais do que qualquer programa eleitoral. Mas um peixe assado é sempre um convite à gula, até quando se trata de um fugu, como n’O Clube dos anjos, do Veríssimo, o risco de se morrer pela boca, o feitiço contra o feiticeiro. E sabemos que na sociedade dos humanos, há peixes grandes perigosos e há peixes pequenos venenosos.
Ernest Hemingway
Resultado de imagem para o velho e o mar
O Velho Santiago
Sempre estará comigo a imagem obstinada do senhor Santiago, aquele inesquecível pescador de O velho e o Mar, do Hemingway, livro que li na adolescência, com olhos  marejados e coração aflito, como se em alto mar eu estivesse, torcendo por aquele homem cujo maior sonho era fisgar um imenso peixe. Em Santiago reside a humana utopia – esse sol infatigável de olhos diuturnos, a vigília dos seres exilados do Paraíso – que nos arremessa aos perigos do mar, ao labirinto indecifrável de nossos desejos mais ocultos.

Acredito que no Lago de Palmas resida uma multidão de peixes desconhecidos, titãs submersos, prisioneiros de um lago encarcerado, o que antes era o imponente Rio Tocantins. E me interrogo: para aonde vão os peixes-fantasmas que vagueiam pelas ruas de Palmas em dias de dilúvio?Tem meu respeito solene um animal que respira dentro d’água e ainda nada com elegância de bailarina mágica. A traíra e o tubarão são seres emblemáticos, desses eu falo com reserva de sentimento.


Outro dia estive na ponte. Conheci Seu Agenor, um artista do anzol, baixo, corpo franzino, barba cinza, voz pausada e serena. Acredita piamente que já viu tubarão no lago. Tirou o surrado boné da cabeça, olhou pro céu que estava claro, e disse: “Rapaz, por esta luz que alumia meus olhos de setenta e um anos, eu juro, já vi, por várias vezes, um tubarão, um tubarão erado aqui debaixo da ponte.” Concordei. Não havia por que discordar. Preparou a isca, fez um rodopio com o braço direito, jogou o anzol distante. Silenciamos, um silêncio aquático.
Michael Ancher Fisherman from Skagen
Pintura de Michael Anchernar
Peixe é promessa de festa, leio nos olhos de quem pesca. Tem o dom de reconciliar mãos e bocas e corações exasperados pela aventura do cotidiano. Ardilosa antítese entre a morte e a vida. Pescar, descamar, a carne branca ardendo sobre as brasas, a cerveja, o bate-papo, a amizade e o amor fortalecidos; ou espinhos e escamas sufocando a garganta, nunca se sabe ao certo. Nessa tarefa, não raro, a sedução e a ternura sobrevivem e reacendem faíscas atrevidas na cozinha, a materialização destes versos da Adélia Prado: O silêncio de quando nos vimos a primeira vez/ atravessa a cozinha como um rio profundo./ Por fim, os peixes na travessa,/ vamos dormir./ Coisas prateadas espocam:/ somos noivo e noiva.

Com insuspeita fidelidade, todos os dias, há pescadores na ponte. Terapia? Paixão pelo ofício? Batalha contra os caprichos da fome? Cada um com sua motivação. Seu Agenor sonha pegar um peixe graúdo, talvez um tubarão, acredita que um dia isso acontecerá. Um grande peixe, penso, é assunto inerente à nossa fome de horizonte marítimo. E depois de um sonho domado, outros sonhos virão, outros labirintos e novas fomes.

Fosse eu um pescador, gostaria de anzolar uma corvina, peixe bonito e saboroso, que conduz uma pedra na cabeça – a pedra da memória guarda histórias proibidas e paixões extravidas. Entre piabas e tubarões, a vida cumpre seu calendário de água corrente e reboja um comboio de indagações. São quase dez da noite. Deixo a ponte e seus pescadores. A fome bate. Sonho com uma fumegante bandeja de peixe a um milímetro do meu nariz.

Procuro um restaurante, um quiosque, um boteco. A fome aumenta. As rotatórias me deixam zonzo como um peixe suspenso no ar, rodopiando num anzol invisível. Mais rotatórias. O traço da cidade é sisudo, não quis aprender do Rio Tocantins a geografia das águas, antes das barragens. Não soube colher a sensualidade dos peixes às vésperas da piracema.  A fome é madrasta de todos os sabores, comeria até os olhos e as vísceras de um fugu. Ainda perguntarei ao Seu Agenor: Mestre, é verdade mesmo que existe tubarão no lago, ou é só história de pescador?
___________________
Paulo Aires Marinho é poeta e escritor. Autor dos livros Cantigas de Resistência, O Beijo de Vesúvio e Perto do Fogo.



REVISTA BANZEIRO - a poesia em movimento: Poema de Pedro Tierra (Hamilton Pereira)


Poema de Pedro Tierra (Hamilton Pereira)


Pedro Tierra


A morte anunciada de Josimo Tavares



1.

Há um dizer antigo
entre os homens da raça dos rios:
a morte quando se anuncia,
devora a sombra do corpo
e inventa a luz da solidão.

Você se afastou sob o sol.
Era 14 de abril.
Busquei-lhe a sombra
sobre o chão da rua
e não havia sombra.

Ainda busquei tocá-lo.
Falamos da vida
               e da morte
(a arma que me matará
já está na oficina...)
E você sorria manso
desde a defendida
solidão dos místicos.
Falamos da luta
e da necessidade de prosseguir
(os tecelões da morte
forçam os teares,
arrematam os fios
do tecido que te cobrirá...)
Imagem: http://www.torange-pt.com
2.
Incendiaram nossas casas.
Destruíram plantações.
Saquearam celeiros.
Derrubaram cocais.
Envenenaram as águas.

Invadiram povoados.
Torturaram nossos pais.
Arrancaram as orelhas dos mortos.
Atiraram nos rios corpos mutilados.
Derrubaram a cruz que erguemos,
sinal aceso da nossa memória.

Cortaram a língua dos nossos irmãos.
Violaram nossas filhas.
Assassinaram inválidos.
Queimaram crianças de colo.
Cercaram a sangue e fogo
a terra que trabalhamos.

Quem emprestará a voz
ao idioma do perdão
e protegerá com súplicas
o riso dos assassinos?!

Aniquilaram a raiz da esperança.
Esgotou-se o tempo de tolerar
e desatou-se a hora da vingança:
o primitivo nome da justiça.

3.

Todos sabiam dessa morte.
A cerca do latifúndio
                                 sabia.
Os pistoleiros, os assalariados da morte,
a polícia fardada e paisana, o GETAT,
os garimpeiros, os bêbados, as prostitutas,
as professorinhas, as beatas,
as crianças brincando no areal da rua
                                                             sabiam.

Os homens da terra, os posseiros, os saqueados,
as mulheres alfabetizadas pela dor
e pela espera
                         sabiam.

O prefeito, o juiz, o delegado, a UDR,
os fazendeiros, os crápulas
                                            sabiam.

As mãos dos assassinos
poliam as armas.

A Igreja sabia
                      e esperava...

A haste orgulhosa do babaçu
                                       sabia.
E dobrava as palmas num lamento
e multiplicava a ciência dessa morte,

os passarinhos, o relógio dos templos
mastigando o comboio das horas
e não se deteve, a água dos rios
não se deteve, fluindo irremediável
a hora dessa morte.

A pedra dos caminhos
                            sabia
e permaneceu muda,
o vento sabia
e anunciava seu gemido todavia
indecifrável.

Tuas sandálias sabiam
                                        e continuaram a caminhar.

Eu, que nasci votado à alegria
e vivo a contar o rosário interminável
dos mortos
não fiz o verso
espada de fúria,
que cindisse em dois
o comboio das horas
e descarrilasse o tempo de tua morte.

Você sabia.
E sorria
             apenas.
Como quem se lava
para chegar vestido
de algodão
                     e transparência
à hora da solidão.
Imagem: http://www.phaidon.com
4.

Quem é esse menino negro
que desafia limites?

Apenas um homem.
Sandálias surradas.
Paciência e indignação.
Riso alvo.
Mel noturno.
Sonho irrecusável.


Lutou contra cercas.
Todas as cercas.
As cercas do medo.
As cercas do ódio.
As cercas da terra.
As cercas da fome.
As cercas do corpo.
As cercas do latifúndio.


Trago na palma da mão
um punhado da terra
que te cobriu.
Está fresca.
É morena, mas ainda não é livre
como querias.
Sei aqui dentro
que não queres apenas lágrimas.
Tua terra sobre a mesa
me diz  com seu silêncio agudo
     Meu sangue se levantará
como um rio acorrentado
e romperá as cercas do mundo.

Um rio de sangues convocados
atravessará tua camisa
e ela será bandeira
sobre a cabeça dos rebelados.

Goiânia, maio de 1986.   


Um Escritor em Ascensão. Entrevista com o Premiado Jádson Barros.

  

Escritor Jádson Barros Neves - Arquivo Pessoal
   

      Tocantinense de Guaraí, Jádson Barros Neves vem se consolidando como um dos nossos melhores ficcionistas. Autor do livro Consternação, com o qual foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura, ele já conquistou mais de uma dezena de prêmios, dentre eles, o "Prêmio Cidade de Belo Horizonte", o "Prêmio João Guimarães Rosa", da RFI.  Nesta entrevista, com exclusividade para Revista Banzeiro, ele fala da infância, das leituras formadoras, e da paixão pela escrita. 

                                       

"Posso ser um escritor conhecido hoje e esquecido amanhã. Veja o caso do português Cardoso Pires, por exemplo. Vivemos numa sociedade que atribui o sucesso de uma pessoa ao barulho que ela faz. Seria o livro “A civilização do espetáculo”, no livro de Vargas Llosa ou “A sociedade do espetáculo”, de Guy Debord, em outro contexto." 


 Entrevista Concedida a Francisco Perna Filho


 Depois de longos anos lendo muito, escrevendo e refletindo sobre o fazer literário, o senhor publicou o seu primeiro livro, Consternação, finalista do Prêmio Jabuti, considerado pela crítica como uma verdadeira aula de escrita e que tem despertado muitos elogios e, claro, admiração. Por que demorar tanto tempo para publicar, quando é sabido que, há muito, se quisesse já o teria feito, haja vista os inúmeros prêmios importantes que ganhou, como, por exemplo, o Prêmio Guimarães Rosa da Rádio France Internationale, Prêmio Cidade de Belo Horizonte, só para destacar dois?


Jádson Barros Neves - Comecei a escrever bem cedo, ainda com uns 11, 12 anos. Escrevia quando desenhava e ganhava prêmios de desenho. Depois, de uma hora para outra, deixei o desenho. E, por um breve período de tempo, arrisquei tocar uns dois instrumentos musicais. Lembro quando toquei flauta. Perdi o interesse também pela música, sem deixar de ouvi-la. Beethoven, por exemplo. Ouvia a 9ª naqueles LP’s enormes, em tardes em que todos estavam dormindo na cidade – hoje é impossível dormir de tarde, de tanto barulho – e a música saía de minha casa, para a rua. Então, foi a partir daí que comecei a escrever, na escola. Muito timidamente. Não mostrava nada a ninguém. Pensava em termos de imagens e de música. Daí, talvez a razão de quase sempre, ao imaginar uma história, pensá-la em termos imagéticos e acompanhados por uma música. Mas voltemos à pergunta: o primeiro concurso “de verdade” que ganhei foi o Gremi, que acontecia na primavera, em Inhumas. Foi em 1986. Ganhei um 1º e um 2º lugares. O conto do primeiro lugar, eu os resgatei, submeti-o a um amigo, que o achou publicável. É o que está no livro sob o título de “O prêmio de Martim.” Pela ordem, seria meu primeiro conto. Na verdade, nunca havia me preocupado em publicar. Kafka publicou tão pouco... Cheguei a pensar em adotar um pseudônimo e seguir com ele, como o fez Neruda. E ganhei os concursos mencionados. E alguns amigos me perguntavam por que eu não publicava. Houve uma época em que andei muito empenhado em procurar uma editora, quando morava em Fortaleza. Enviei os originais de meu livro para várias. E elas me devolviam a carta-padrão, onde informavam o “valor” da obra e o “não poder” publicar no momento. Diziam para eu procurar outras, mas eu já havia procurado “outras”. E o livro ficou e fui ganhando mais concursos. Eu achava, de boa fé, que um dia ele sairia, sem ser preciso gastar com a publicação dele. Gastar com a editora. Acontece que continuaram perguntando por que eu não publicava. Eu respondia que não encontrava editoras. Depois, comecei a ver o caso de autores famosos que tiveram uma grande dificuldade em publicar o primeiro livro. E me lembrei de um autor, Imre Kertész, que ganhou o Nobel em 2002. O primeiro livro dele, “Sem destino,” é sobre as experiências de um garoto de 15 anos nos campos de extermínio. O Kertész, à maneira do garoto do livro dele, ficou mais de um ano prisioneiro dos nazistas e quase morreu. Quando ele voltou para a Hungria e ficou anos (acho que 10 anos) escrevendo o livro e cuidando da sobrevivência, não encontrou editora. Diziam que o tema dele – O Holocausto – não interessava aos editores. Por essa época em que lia Kertész, 2012, um amigo pegou meu livro e procurou editoras para mim. Tive essa sorte. Procurou lá fora. Muitas recusaram. Daí, foi publicado e lançado em Porto Alegre, em novembro de 2013.    

Escritor Imre Kertész

   
     Nos seus contos, e aqui estou falando de Consternação, a realidade representada é própria da sua região: Tocantins e parte do Pará, são garimpeiros, pistoleiros e gente sofrida, aos representá-los e ambientá-los assim, o senhor parece ter consciência daquilo que Ezra Pound chama de função social do escritor (conceito também encontrado em Antonio Candido), o que se daria na proporcionalidade da competência de quem escreve, uma vez que a Literatura não existe num vácuo. Fale um pouco sobre isso.

Jádson Barros Neves - Não sei se é verdade sobre a realidade representada ser de minha região. Não há evidências no livro; há mais reticências do que certezas. Apenas um dos contos, “A toalha”, tem como cenário uma cidade onde vivi e que não vejo há mais de 25 anos e que não fica no Pará nem no Tocantins. Essa realidade, se existe, está na minha imaginação ou foi inventada ou sonhei com ela. Não creio muito nessa função social de um livro, do meu livro, para ser mais franco. As pessoas dizem: “Você é um escritor do Norte, assim e assado.” Meu novo livro de contos não tem nada daqui. Nem o sol. Daí, fico pensando se não faço literatura como uma forma de fuga, de refúgio ou negação de uma realidade onde estou inserido ou vivendo. Se criar não é esse ato. Quando escrevia meus primeiros textos, eu o fazia para escapar da solidão. Hoje, o faço pela literatura, por gostar de escrever e sentir que, ao escrever, quando estou escrevendo “de verdade”, à margens de prêmios literários – que não passam de uma consequência ou sequência de meu trabalho – é que tudo em minha vida parece funcionar melhor, caminhando num rumo que poderíamos falar em felicidade ou coisa semelhante, tanto quanto fazer amor com uma mulher que se ama, uma longa caminhada, uma longa noite de sono e restauração. Não vejo outras metáforas para esse engajamento – meu, penso que meu – com a escrita.

jadson
Escritor Jádson Barros Neves - Foto CBN-TO
Ainda sobre Consternação, os seus personagens passeiam de um conto para o outro, de um lugar para outro, compondo uma tessitura muito bem trabalhada, sem falar na sua cosmologia literária, sempre um lugar isolado, quase que paupérrimo, onde não há lei, a justiça é feita pelas mãos dos “pistoleiros sociais”. Como ser universal na sua singularidade?

Jádson Barros Neves - Se partirmos agora para o segundo conto do livro – tenho outros, não incluídos no livro e da mesma época e nem por isso menores –, teríamos “Exilados” e, como consequência desse conto, “Entre eles, os corrupiões.” “Exilados”, eu o comecei a escrever na casa de uma amiga de Cuiabá, numa visita que fiz a ela, a Maria Teresa Carrión Carracedo, dona da “Entrelinhas Editora”, nas férias de junho/julho de 1994. Mostrei um parágrafo para ela, que o achou bom. Continuei escrevendo o conto num caderno pequeno e, quando o caderno acabou, numerei as páginas dele, para não me perder, e retomei o conto em outro caderno. Na volta das férias, já em Goiânia, dei uma passada pela UBE, na Av. Goiás, para ver o mural com os regulamentos dos concursos literários. Vi o Concurso Internacional de Contos Guimarães Rosa, da RFI e a notícia num jornal de que um escritor goiano havia ficado entre os 30. Da UBE mesmo, telefonei para ele, que me enviou o regulamento do concurso da RFI via fax. Já é do lendário, do fabulário daqui, que o conto “Exilados” foi enviado para um concurso local, voltou todo rabiscado e, no concurso da RFI recebeu uma das duas menções honrosas. Eu havia deixado dois personagens, Mábio e Débora, presos a uma cidade e precisava de uma desculpa para que eles voltassem para a cidade de origem deles. Foi assim que nasceu o segundo conto, “Entre eles, os corrupiões.” E o mandei para o mesmo concurso tocantinense. Parece que o conto ganharia uma menção honrosa, com o título abominável que tinha, “Carrasco bonito.” O título “Entre eles, os corrupiões” foi coisa do Altair Martins, que gostou do conto, mas não do título. E, é fato, o conto seria o segundo lugar no Concurso Internacional de Contos da RFI/2000. É verdade, também, que eu morava em Goiânia, quando do concurso, e coloquei o endereço do Tocantins. Pensava, dessa forma, dar um susto naquela pessoa sisuda que devolvera “Exilados” todo riscado, como se fosse uma redação de colegial. Foi dessa forma que nasceram os personagens que andam por alguns dos contos. Gostei de brincar com eles, levando-os de história em história. Como pode ver, acabam no livro. Meu novo livro segue quase a mesma estrutura do outro, com outra paisagem, personagens que entram e saem em histórias diferentes e o livro tendo contos curtos como ponte entre um e o outro. Mas isso não é invenção minha. Faulkner já o fez melhor e Onetti também. Mas acho que vi os primeiros resplendores desse tipo de “achado” em García Márquez.    


Consternação - Jádson Barros Neves (8561878266)
Capa do Livro Consternação - finalista do Prêmio Jabuti
Autran Dourado, um dos maiores autores da literatura universal, no seu livro “Breve Manual de Estilo e Romance”, reflete sobre o seu fazer literário, e diz que uma das coisas mais difíceis para quem escreve é atingir a simplicidade.  Como o senhor traduz essa afirmação?

Jádson Barros Neves - Acho que foi Hemingway quem disse, talvez por ciúmes, que Faulkner escrevia difícil porque não sabia escrever fácil. Parece que Faulkner respondeu dizendo que escrevia difícil para não verem a superficialidade – na qual creio cada vez menos – de sua obra. Todo mundo fala nessa tal simplicidade como se fosse uma questão de olhar através de um pedaço de vidro: se está fosco, a imagem é difusa; se está limpo, a imagem é límpida. Fico me perguntando para quem Guimarães Rosa é considerado difícil e Clarice não o é. Um dia comprei um livro com o léxico de Guimarães Rosa e um amigo me disse que era tolice, que ler era uma aventura, que eu não precisava disso. Quem escreve, quem quer escrever, precisa de pouca coisa: um caderno e esferográficas são de serventia para mim. Vargas Llosa, por exemplo, escreve em cadernetas; Onetti escrevia em pequenos pedaços de papel, que depois ia transformando de forma bem organizada nos intrincados contos dele. Borges dizia que publicava para não ficar a vida inteira alterando um conto. Sob a casca de sua profunda simplicidade, fico imaginando o quanto ele é profundo. Se a simplicidade a que se refere for a de Borges, teríamos de reanalisar a obra dele, metida na tal simplicidade; sendo a de Guimarães Rosa, teríamos uma pessoa do interior de Minas dizendo que consegue entender bem o autor mineiro.


 
Escrito Jádson Barros Neves - Arquivo pessoal.
    Ezra Pound, no ABC da Literatura, assim se manifesta: “A linguagem é o principal meio de comunicação humana. Se o sistema nervoso do animal não transmite sensações e estímulos, o animal se atrofia. Se a literatura de uma nação entra em declínio a nação se atrofia e decai.” Partindo dessa afirmação de Pound, como o senhor vê o atual estágio da Literatura Brasileira?

Jádson Barros Neves - Não saberia falar sobre a literatura brasileira atual. Conheço alguns escritores “de verdade”, não necessariamente brasileiros. Talvez em trinta anos eu possa olhar para trás e ver essa literatura de hoje.  

como foi para o senhor, sendo de um Estado periférico, furar o bloqueio dos grandes centros literários e vencer prêmios como os já mencionados acima?

Jádson Barros Neves - Se você deseja realmente se afogar, precisa nadar no oceano. Se não conseguir, pelo menos uma insolação danada vai pegar e conseguir rever o que fez. Os bloqueios maiores, como afirmei, sempre existiram quando me fixei em “tentar ser um escritor local.” Lá fora – embora eu tenha vivido anos lá fora – nunca sofri bloqueios. Não nos prêmios que exigiram pseudônimos, como a maioria dos concursos de que participei. Quando o assunto é editora, vejo que a coisa continua na mesma, ou quase na mesma. É difícil para todos encontrar uma boa editora.

Vencer lá fora, não é fácil, e no seu Estado, o senhor se sente valorizado? O que o senhor tem a dizer sobre a Literatura produzida no Tocantins?

    Jádson Barros NevesAconteceram muitas coisas efetivamente boas, depois da publicação de “Consternação”. Não sei até quanto um autor pode entender que se sente valorizado. Essa coisa de sucesso, bem o sabemos, é passageira. Não podemos e nem devemos nos apegar a isso. Posso ser um escritor conhecido hoje e esquecido amanhã. Veja o caso do português Cardoso Pires, por exemplo. Vivemos numa sociedade que atribui o sucesso de uma pessoa ao barulho que ela faz. Seria o livro “A civilização do espetáculo”, no livro de Vargas Llosa ou “A sociedade do espetáculo”, de Guy Debord, em outro contexto.

Mario Vargas Llosa Escritor Peruano

    Sei que há pouco dias li um livro de Nicholas Carr, e acho que voltei a ser leitor, como Borges, que dizia que queria ser conhecido pelos livros que lera e não pelos que escrevera. Para a segunda parte da pergunta, eu precisaria de mais trinta anos. 

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