Francisco Perna Filho - Poema



Criatura


O homem salta,
corre,
está preso ao tempo
na escada do shopping.
A escada rola,
a vendedora se espanta
com o passado grudado nos degraus da escada.
O tempo corre,
a vendedora filtra o que vê,
e a esta visão
muitas outras se sucedem.
Coalhadas, como ecos na alma,
descansam nos olhos da vendedora que viu.

O homem avança
e a palavra elástica
finge acompanhá-lo:
nas procissões,
nos concertos,
no dia tenso de trabalho.
E sempre iludido,
com ideias de criador,
inventa a bolsa de futuros.
Premonitoriamente, aplica.
Só assim é o senhor do próprio tempo.

In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.69-71.
Imagem retirada da Internet: time

Francisco Perna Filho - Poema



Destino de pedra 


De quem são
os meninos que dormem ao relento,
que sonham grandiosidades,
e sucumbem nos esgotos da cidade grande,
consumidos na fumaça da própria miséria
de uma existência precária?
De onde vêm esses meninos
que cumprem um destino de pedra,
pedras de crack que sempre carregam.
Sísifos da modernidade,
armados de inconsciência,
dormitando pelos esgotos
e sucumbindo na ilusão do transitório?
De que são feitos os seus dias,
os seus olhos medonhos,
as suas almas esvaídas
na maldade inocente da química
mortífera de uma breve existência?
Para onde caminham essas criaturas
silenciadas em mentiras,
em promessas e bofetadas,
em fome de existência,
em liberdade forjada?
São filhos da rua,
da lástima do mundo,
da indiferença dos homens.
Vêm dos restos do mundo,
da miséria urbana,
das crateras da incompreensão.
São feitos do lodo da existência,
das sobras de ideologias,
do sexo barato das ruas.
Caminham em círculo,
empedernidos apóstolos,
com suas gotas,
com suas pedras,
com seus delírios,
sem destino.

Francisco Perna Filho - Poema

Aquarela - by  Gonzalo Cárcamo


LATIFÚNDIO


Na rua,
a esperança rui,
acalentada que fora,
em vão,
pelo Guardador-de-carros,
que em acenos vários
contabilizara vagas
no pedaço de asfalto
que lhe coubera.
O vão da vaga,
o aceno em vão,
e o insone latifundiário
coloriu-se de asfalto
e sonhou semáforos,
apitos
e vazios.
Amou a leveza do estômago
que, passivamente,
soletrava
pão.

In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p. 65.

Jorge de Lima - Poema




O acendedor de lampiões 


Lá vem o acendedor de lampiões da rua! 
Este mesmo que vem infatigavelmente, 
Parodiar o sol e associar-se à lua 
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua 
Outros mais a acender imperturbavelmente, 
À medida que a noite aos poucos se acentua 
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita: - 
Ele que doira a noite e ilumina a cidade, 
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua 
Crenças, religiões, amor, felicidade, 
Como este acendedor de lampiões da rua!

Imagem retirada da Internet: Acendedor de Lapiões

Francisco Perna Filho - Ensaio curto


A ilusão digital 



Mediado por interfaces várias, o homem se apropria da tecnologia e referenda o seu desejo de potência. O que antes era desconhecido, hermético, passa a ser natural, quando, conectado, brinca de deus ao ensaiar, com cores, formas e sons, o grande texto "mundo". Com um simples toque, é capaz de viajar para as mais longínquas paragens e interagir - na ilusão de sua virtualidade - com outros mundos tão "reais" quanto os seu. Cada mundo comporta suas peculiaridades, é preciso desvendar-lhe os códigos, as várias linguagens com as quais opera, para sentir-se inserto e dele apropriar-se. Qualquer descuido pode ser fatal, é preciso atenção total para não se deixar contaminar pelas pestes que rondam o ciberespaço, os monstros escondidos nos becos digitais, prontos para atacar o incauto navegador aventureiro.

Assim como o espaço real, o espaço digital também tem seus limites, qualquer desatenção pode custar caro ao transgressor, fazê-lo refém da própria astúcia, mas aí a pena deixa de ser virtual e passa a ser real. Cada um deve saber onde pisar, para não ser tragado pelos movediços links, ali postos, e embarcar num mar textual de mentiras e ciberilusão.

Para qualquer viagem é preciso precaução; as provisões devem ser suficientes para o embate da jornada; é preciso ter pleno conhecimento das vias a serem percorridas, para isso o viajante deve munir-se de bússola e mapas, é preciso não confundir as sinalizações, pois como disse o poeta: "Navegar é preciso, viver não é preciso".

Depois de assegurar-se das dificuldades da viagem, de conhecer o percurso a ser seguido, e dominando aquilo que é básico a qualquer internauta/cidadão, colocamo-nos nos nossos assentos, na cadeira de nossa escrivaninha, e ali viajamos por mundos, até então inimaginados, à procura de novidades, notícias, inventos e/ou por simples curiosidades.

Basta um cabo, ou um sistema que nos permita uma conexão, para mergulharmos hipertextualmente nessa vastidão digital de convivências nem sempre amistosas, mas necessárias, como podemos presenciar, cada vez mais, a proximidade entre a blogosfera e a midiasfera, uma se alimentando da outra, ou quem sabe, uma contribuindo com a outra:  pautando ou repercutindo fatos de uma humanidade há muito esquecida.

O que antes era espaço privilegiado da mídia passa a ser de todos, ou de pelo menos de quem quer e tem o que dizer, como o são as revistas eletrônicas ou os blogs que vêm crescendo no grau de importância e passam a ter status de formadores de opinião, ganhando espaço nas páginas virtuais de grandes jornais do país.

Não sei o que nos aguarda, o que vem por aí, só sei de uma coisa, os saltos são grandiosos, como o que estou dando agora: da virtualidade do meu desktop componho este metatexto, iluminado pelas luzes de uma tecnologia que cada vez mais me seduz e que dela sou refém. Passamos a computar horas e mais horas de navegação, "sem lenço e sem documento", tendo como bússola apenas a nossa vontade, o desejo de romper rumo, quebrar barreiras, superar limites. Iluminados pela sequência numérica de "zeros" e "uns", no limite dos sem limite, na finitude do infinito, um olhar sempre atento buscando na ilusão do que vemos a linguagem mais apropriada para acalentar as nossas horas de "solidão" e "tédio", na sala de estar do nosso mundo real.

Imagem retirada da Internet: ilusão digital

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