Jorge Montenegro - Poema

Image hart

SU B J U N T I V O


E se num instante a minha máscara caísse
sobre o falso brilho desses palcos glamourosos,

sob o estribilho de mil beijos ardorosos,
na vazia noite onde mais lágrimas houvesse?

E se de repente esse meu coração sentisse
um pulsar contido, meio tépido e agreste,
a sofreguidão que a tua nua tez reveste
na imensidão da minha alma nesse cálice?

E se num momento de paixão eu explodisse,
minha solidão se dispersasse no deserto
toda a sensatez eu finalmente me esquecesse?

E se nesse agora, todo teu, eu me entregasse
sem essas amarras, desse meu pudor liberto,
e teu corpo nu eu envolvesse num enlace?








Imagem retirada da Internet: coração

Lara de Lemos - Poema

Penélope - Bassano Leandro - Óleo sobre tela























Penélope

Para Lígia M. Averbuck 

No tear pequeno
teço os fios
da minha vida
teço o tédio.

No tear do tempo
teço teia in-
consistente
teço o verso.

No tear do Universo
teço o verbo
solitário
teço o poema.

No tear do medo
teço o pano
derradeiro
teço o sudário.

Lara (Fallabrino Sanz Chibelli) de Lemos - Poema

Lara de Lemos - Acervo da PUC RS





















DO QUE PASSOU



Não me tragam memórias
de velhos tempos idos.

Deixem-me a sós comigo.

Cada poema tem o seu motivo,
cada gota de vinho tem seu travo
que não se repete noutro copo.

É preciso degustá-lo
sem agravos
e esquecer o que não foi bebido.


In. Dividendos do tempo. Porto Alegre, 1995.


Sobre a autora


Poetisa, jornalista, advogada e professora, Lara de Lemos, quando morreu, em 2010, tinha 87 anos e era natural de Porto Alegre. Órfã de pai e mãe aos cinco anos, Lara Fallabrino Sanz Chibelli de Lemos foi criada pela avó em Caxias do Sul. Formou-se em História, Geografia, Pedagogia, Jornalismo e Direito, com especialização em Literatura Inglesa e Contemporânea pela Southern Methodist University, Usa.

Atuou como professora, tradutora, poeta e jornalista, de forma intensa e combativa, sofrendo as conseqüências do regime militar instaurado em 1964, que a obrigou a interromper a carreira jornalística, tendo, inclusive, seu primeiro marido sido preso e, posteriormente, seus dois filhos. Ela residia em Nova Friguro, no estado do Rio.

A estreia de Lara de Lemos como escritora se deu em 1955, na Revista do Globo para a qual escreveu contos. Em 1958, passou a colaborar para o Correio do Povo e, mais tarde, para muitas outras publicações, como Última Hora, Jornal do Brasil,e Tribuna da Imprensa. É autora, junto com o ator Paulo César Pereio, do Hino da Legalidade , em 1961, de defesa à posse de João Goulart na presidência da República.

Fonte: Kiminda


Florisvaldo Matos - Poema




VIGÊNCIA DA NOITE 

OU AURORA



Como um pássaro que passeia devagar na estiva
de um porto qualquer, olhos baços, mente esquiva,

divago na sala, mirando as estrelas da noite que passa.
Para ser um filósofo, em grave silêncio, me falta massa,

temas eternos, mente febril, serenidade no olhar,
imunidade a relógios e o grave prazer de pensar;

me exprimo com o nada, atento aos estertores da vida,
neste espaço que me serve de confortável guarida,

para pensar em mim mesmo, amealhar meus ciclones,
ruídos da alma, como quem reaviva um cemitério de clones.

Como quem mira estrelas cadentes, na noite sossegada,
me estiro no sofá, respiro e realinho as curvas da estrada,

mais próximo de mim, inumeral, distante do mundo,
sem ser nenhum gênio, mago, de pensamento profundo.

Com um livro na mão, revista ou jornal, um copo de vinho,
converso comigo, meus dias e noites, com saudades de mim.

Ou com o que me resta de sustos, recompondo os cristais,
que a vida quebrou, o vento levou e, no entanto, quer mais.

E com tantos sentimentos vivos que me correm na veia,
na noite diversa, como um grão que se desprende da areia,

medito estendido no sofá desta sala como sempre agradável,
sempre calma, sem calor de emoções, sem tempo instável.

Enquanto a amada que vigia meus sonos dorme no quarto,
ouço na caixa de som alguém a dizer-se de sonhos farto;

eu próprio, em meu canto, me alimento de perdas também,
por minhas estivas mentais aguardo a madrugada que vem.

O vento lá fora rebenta vidraças, em plena alvorada;
cá dentro divago, espio a noite. Não espero mais nada.





Imagem retirada da Internet: aurora

Murilo Mendes - Poema


Forma e essência



Podeis vê-la contra a luz;
é um manequim de folhas,
Uma cariátide  que se move
Poucos vestígios do humano.

Entretanto é uma mulher.
Mulher que ri, cose e dança,
E também abre janelas.

Poucos vestígios do humano:
Sei entretanto que à noite
Fala a um ente imaginário.
Move a caixinha de música,
Despertando assim a criança
Que inda dorme dentro dela.

Imagem retirada da Internet: caixa de música.

Francisco Perna Filho





Este poema foi feito há algum tempo, bem antes de algumas mudanças significativas. Hoje Goiânia é uma bela cidade, mas, não diferente das outras metrópoles, traz as suas mazelas, o medo, os desencontros e desilusões. 
Parabéns, Goiânia! 

Goiânia 

Goiânia,
ouço o teu grito,
como num eco, repetidas vezes,
nesse corredor vazio da Avenida Anhanguera,
nas mortes irrelevantes da
 Rua 90,
nos banheiros pobres da periferia
encardidos de amor barato,
de retalhos e esperanças,
cheirando a naftalina e eucalipto.
Eu contabilizo a tua dor
Nos barracões de lona preta
Nas casas sem porta
E nas goteiras da tua ilusão.
Eu vejo o olhar iluminado do césio 137,
pelas ruas esburacadas do nosso desencontro, e,
deslumbrado, contemplo a natureza morta
nas tuas curvas e viadutos.

Eu choro o teu abandono,
o teu desprezo,
a tua impotência,
nos olhos paralisados dos meninos de rua,
tão vermelhos quanto os semáforos da Avenida Mutirão,
mastigados pela cola que os consome.

Eu sofro com os teus vagidos
nas obscuras celas dos teus presídios e manicômios,
e na pálida alegria das tuas garotas de programa,
ao se sentirem importantes nas páginas dos classificados,
postadas como estampas de alguma correspondência barata.

Vejo-a daqui de cima, do Morro do Além,
e a fumaça que sobe dos teus prédios é da cor da alma dos teus algozes.
Vejo os teus mortos e desabrigados,
desiludidos e aviltados,
chorosos e maledicentes ao se virem enxotados de suas ilusões.

Goiânia,
Talvez o meu canto, de natureza triste,
de escombros e revoltas,
Pareça uma ofensa, mas não.
O teu lado belo, da Art Déco, todos conhecem.
As tuas praças floridas,
Tuas avenidas,
Os bairros nobres e condomínios fechados,
Já não são novidades.
Os teus hospitais, centros de excelência,
Tuas catedrais,
Teus palácios,
Tudo isso nos enche de orgulho,
Mas não podemos quedar-nos diante do feio,
Da corrupção,
Do desmantelo.

Goiânia,
A tua história é canto de toda gente,
De todos os cantos,
De todos os povos,
Que aqui chegaram,
Vindos de outras terras,
Com olhares vários,
Com sonhos, costumes e tradições,
Deixando para trás o berço,
A família e o olhar,
Porque foste a eleita e,
Por ser assim, é que te queremos mais amada,
Menos amarga,
Porque fazes parte do mundo,
Porque trazes uma parte e uma fala de cada povo,
E em ti estão as feições de uma sociedade cosmopolita.

Affonso Romano de Sant'Anna - Poema


Casamento

Essa mulher que há muito dorme ao meu lado
vai, como eu, morrer um dia.
Estamos deitados para sempre
conversando
Como nas manhãs preguiçosas de domingo,
como nas noites em que voltamos das festas
e nos despimos comentando as pessoas, roupas e comidas,
e depois adormecidos nos pomos
a entrelaçar os sonhos
num diálogo imóvel
que nenhuma morte pode interromper.


In. Poesia reunida (Aprendizagem do amor). Porto alegre: LPM, 2004, p.190.
Imagem retirada da Internet: married

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