Ronald de Carvalho - Poema



Anoitece... 


Anoitece...
Venho sofrer contigo a hora dolente que erra,
Sob a lâmpada amiga, entre um vaso com rosas,
Um festão de jasmins, e a penumbra que desce...
Hora em que há mais distância e mágoa pela terra;
Quando, sobre os chorões e as águas silenciosas,
Redonda, a lua calma e sutil, aparece...


O rumor de uma voz sobe no espaço, ecoando,
Mais um dia se foi, menos uma ilusão!
E assim corre, igualmente, a ampulheta da vida.
Senhor! depois de mim, como folhas em bando,
Num crepúsculo triste, outros homens virão
Para recomeçar a rota interrompida,
E a amargura sem fim de um mesmo sonho vão...


Nos dormentes jardins bolem asas incautas,
Sobre os campos a bruma ondeia, devagar.
Estremecem no céu estrelas sonolentas
E os rebanhos, que vão na neblina lunar,
Agitam molemente, ao longe, as curvas lentas
Das estradas de esmalte, ao rudo som das frautas.


Anoitece...
Tremula ainda, no poente, a luz de alguns clarões,
E, enquanto sobre o meu teu olhar adormece,
Entre o perfil sombrio e vago dos chorões,
Redonda, a lua calma e distante, aparece...





Publicado no livro Poemas e Sonetos (1919).
In: MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. 2.ed. Brasília: INL, 1973. v.2, p.1056. (Literatura brasileira, 12)- Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: vaso com rosas

Miguel Jorge - Veias e Vinhos - Lançamento

Francisco Perna Filho - Poema

   Flor de pequi - Foto by Francisco Perna Filho

Sob os olhos de Deus



Colho cores nesta manhã:
azuis, ocres, cinzas e amarelos.
são feixes de luz
emergindo da primavera.

Colho pássaros em arribação,
em voos tímidos,
planando sob os olhos de Deus.

Sirvo-me de um pedaço de cada coisa,
silenciadas no meu coração,
quando volto para casa.

Alberto da Cunha Melo - Poema



CANTO DOS EMIGRANTES



Com seus pássaros
ou a lembrança de seus pássaros,
com seus filhos            
ou a lembrança de seus filhos,
com seu povo
ou a lembrança de seu povo,
todos emigram.

De uma quadra a outra
do tempo,
de uma praia a outra
do Atlântico,
de uma serra a outra
das cordilheiras,
todos emigram.

Para o corpo de Berenice
ou o coração de Wall Street,
para o último templo
ou a primeira dose de tóxico,
para dentro de si
ou para todos, para sempre
todos emigram.



In. Imagem retirada da Internet: emigrante
In. Jornal de Poesia

Valéria Nogueira Eik - Poema


Foto by Fábio Pinheiro


Término




Quando um sentimento termina
sentimos a dor de não mais sentir dor
temos saudade da saudade que tínhamos
vem a tristeza da tristeza que acabou. 






Valéria Nogueira Eik - Poema


Na rede 


Meu corpo aninhado nos braços da rede
vai sentindo o balançar sossegado
deste leito que é o ódio
desta cama que é o amor.
Rede que range os dentes
e sibila rouca e lentamente:
ódio que vai
ódio que vem
ódio que vai
ódio que vem.
E neste odiar cheio de razão
ela me ensina docemente
que a lâmina fere
que a lâmina cura. 





In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: rede

Francisco Perna Filho - Poema



New York 


o pássaro
vê a cidade
Lentamente/ letalmente
Mergulha. 
O pássaro
É de metal
E só percebe o próprio voo,
Desconsiderando as cores
E os sonhos que carrega.
O pássaro vê
Mas não ouve.
A cidade ouve
Mas não vê.
A vida imita a arte:
O pássaro explode
Em chamas,
A cidade
Chora escombros.



In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001.
Imagem: 11 de setembro de 2001

Guilherme de Almeida - Poema



Canção do expedicionário


Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do engenho,
das selvas, dos cafezais,
da choupana onde um é pouco,
dois é bom, três é demais.


Venho das praias sedosas,
das montanhas alterosas,
do pampa, do seringal,
das margens crespas dos rios,
dos verdes mares bravios,
de minha terra natal.


Por mais terras que eu percorra,
não permita Deus que eu morra
sem que eu volte para lá
sem que leve por divisa
esse "V" que simboliza
a vitória que virá:


Nossa Vitória final,
que é a mira do meu fuzil,
a ração do meu bornal,
a água do meu cantil,
as asas do meu ideal,
a glória do meu Brasil!


Eu venho da minha terra,
da casa branca da serra
e do luar do sertão;
venho da minha Maria
cujo nome principia
na palma da minha mão.


Braços mornos de Moema,
lábios de mel de Iracema
estendidos para mim!
Ó minha terra querida
da Senhora Aparecida
e do Senhor do Bonfim!


Você sabe de onde eu venho?
É de uma pátria que eu tenho
no bojo do meu violão;
que de viver em meu peito
foi até tomando um jeito
de um enorme coração.


Deixei lá atrás meu terreiro
meu limão meu limoeiro,
meu pé de jacarandá,
minha casa pequenina
lá no alto da colina
onde canta o sabiá.


Venho de além desse monte
que ainda azula no horizonte,
onde o nosso amor nasceu;
do rancho que tinha ao lado
um coqueiro que, coitado,
de saudade já morreu.


Venho do verde mais belo,
do mais dourado amarelo,
do azul mais cheio de luz,
cheio de estrelas prateadas
que se ajoelham, deslumbradas,
fazem o sinal da cruz!



In Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Guilherme de Almeida

Thiago de Mello


Flor de açucena

Quando acariciei o teu dorso,
campo de trigo dourado,
minha mão ficou pequena
como uma flor de açucena
que delicada desmaia
sob o peso do orvalho.
Mas meu coração cresceu
e cantou como um menino
deslumbrado pelo brilho
estrelado dos teus olhos.

In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Thiago de Mello

João Guimarães Rosa - Poema


guimaraes
O Caboclo d’Água


No lombo de pedra da cachoeira clara
as águas se ensaboam
antes de saltar.

E lá embaixo, piratingas, pacus e dourados
dão pulos de prata, de ouro e de cobre,
querendo voltar, com medo do poço
da quarta volta do rio,
largo, tranqüilo, tão chato e brilhante,
deitado a meio bote
como uma boipeva branca.

Na água parada,
entre as moitas de sarãs e canaranas,
o puraquê tem pensamentos
de dois mil volts.

À sombra dos mangues,
que despetalam placas vermelhas,
dois botos zarpam, resfolengando,
com quatro jorros,
a todo vapor.

E os jacarés cumpridos, de olhos esbugalhados,
soltam latidos , e vão fugindo,
estabanados, às rabanadas, espadanando,
porque do fundo
do grande remanso, onde ninguém acha o fundo,
vem um rugido , vem um gemido,
tão rouco e feio, que as ariranhas
pegam no choro, como meninos.

O canoeiro
que vem no remo, desprevenido,
ouve o gemido e fica a tremer.
É o caboclo d’água,
todo peludo, todo oleoso,
que vem subindo lá das profundas,
e a mão enorme,preta e palmada,
de garras longas,
pega o rebordo da canoinha
quase a virar.

E o canoeiro, de facão pronto,
fica parado, rezando baixo,
sempre a tremer

Crescendo d’água ,lá vem a máscara,
negra e medonha,
de um gorila de olhar humano,
o Caboclo d’água
ameaçador.

E o canoeiro já não tem medo,
porque o Caboclo o olhou de frente,
todo molhado,
com olhos tristonhos,rosto choroso,
quase falando,
quase perguntando
pela ingrata Iara,
que, já faz tempo, se foi embora,
que há tantos anos o abandonou...


In.Magma. Editora Nova Fronteira.
Imagem retirada da Internete: Guimarães Rosa

D. Dinis - Cantiga de Amor

     

    Se eu podess' ora meu coraçon,
senhor, forçar e poder-vos dizer
quanta coyta mi fazedes sofrer
por vós, cuyd' eu, assy Deus mi perdon,
    que averiades doo de mi.

    Ca, senhor, pero me fazedes mal,
e mi nunca quisestes fazer ben,
se soubessedes quanto mal mi ven
por vós, cuyd' eu, par Deus, que pod' e val,
     que averiades doo de mi.

     E, pero mh-avedes gram desamor,
se soubessedes quanto mal levey
e quanta coyta, des que vos amey,
por vós, cuyd' eu per bõa fé, senhor,
      que averiades doo de mi.

     E mal seria, se non foss' assy.


In. Do Cancioneiro de D. Dinis. São Paulo: FTD, 1995, p.37
Imagem retirada da Internet: D.Dinis

   

Adérito Schneider entrevista Valdivino Braz


O rebanho de Deus sob regime de exceção
O escritor Valdivino Braz fala sobre seu último livro, o romance “O Gado de Deus”, que ganhou recentemente o Prêmio Nacional Colemar Natal e Silva

Entrevista originalmente publicada no Jor­nal Op­ção

Ro­man­cis­ta, con­tis­ta, po­e­ta e jor­na­lis­ta Val­di­vi­no Braz tem 13 li­vros pu­bli­ca­dos, seis dos qua­is pre­mi­a­dos, com des­ta­que pa­ra o Prê­mio Na­ci­o­nal de Li­te­ra­tu­ra Ci­da­de de Be­lo Ho­ri­zon­te, um dos mais im­por­tan­tes do Bra­sil, em 1992, com o li­vro de po­e­mas “A Trom­pa de Fa­ló­pio — Rap­só­dia de Ho­me­ro Ca­nho­to”. Em en­tre­vis­ta ao Jor­nal Op­ção, Val­di­vi­no Braz fa­la so­bre seu úl­ti­mo li­vro, o ro­man­ce “O Ga­do de Deus”, que, no mês de abril, foi con­tem­pla­do com o Prê­mio Co­le­mar Na­tal e Sil­va, em con­cur­so na­ci­o­nal pro­mo­vi­do pe­la Aca­de­mia Go­i­a­na de Le­tras. Se­gun­do o au­tor, “O Ga­do de Deus”, en­tre ou­tras vi­as ou vi­es­es de lei­tu­ra, po­de ser li­do co­mo uma es­pé­cie de tes­te­mu­nho — “Eu ve­nho do bre­jo, e de­le dou tes­te­mu­nho”, lê-se na obra, alu­si­va­men­te às ex­pe­ri­ên­cia do au­tor no ser­tão go­i­a­no, em me­mó­ri­as que se in­ter­ca­lam ou se fun­dem com re­a­li­da­des ur­ba­nas e ale­go­ria dos fa­tos, pa­ra com­por a li­nha nar­ra­ti­va, no pla­no da fic­ção. Uma téc­ni­ca de es­tru­tu­ra nu­ma li­nha de in­ven­ção: fic­fric­ção (fic­ção de fric­ção) e/ou vi­ce-ver­sa (fric­fic­ção), num sen­ti­do de con­tra­pon­to e atri­to (di­zer o opos­to, o não-di­to), se­gun­do a con­cep­ção e pro­pos­ta do es­cri­tor. Es­co­ra­do em afir­ma­ti­vas de crí­ti­cos li­te­rá­rios co­mo Jai­me Ginz-burg, Jo­ão Ca­mil­lo Pen­na, Gus­ta­vo V. Gar­cia, Már­cio Se­lig­mann-Sil­va e Ja­mes Hat­ley, o au­tor afir­ma que “O Ga­do de Deus”, obra hí­bri­da, em que se mes­clam gê­ne­ros li­te­rá­rios, além dos com­po­nen­tes so­cio­po­lí­ti­cos, pa­ro­dís­ti­cos, sa­tí­ri­cos e ale­gó­ri­cos, não dei­xa de ser um pou­co ro­man­ce de tes­te­mu­nho, a par com ser tam­bém um pou­co au­to­bi­o­grá­fi­co, num pro­ces­so “em que se cru­zam a bi­o­gra­fia com a fic­ção, e a his­tó­ria com a li­te­ra­tu­ra”.

De onde surgiram as ideias para “O Gado de Deus”?


O golpe militar de 64 foi o Produto Interno Bruto (PIB) para as narrações contidas no romance, feito um fio elétrico desencapado e sangrento, mesclando-se realidade e ficção. É uma história de pátria amada e armada. A título de combater ideologia de esquerda e zelar pela segurança nacional, a par com os interesses capitalistas e os planos militares embutidos num processo arbitrário, toma-se o poder e toma-se gosto pelo sangue derramado, oprimindo e humilhando o povo indefeso. Uma cavalar visão de caserna e disciplina para tropas, não para povo, fere profundamente o sentimento pátrio. O país de hoje ainda traz reflexos do golpe. Já o romance não poupa a ninguém, seja à direita, à esquerda e na retaguarda, enquanto morrem as vanguardas. Com menção honrosa em concurso nacional do Paraná, em 1992, tendo então concorrido como “As Dores da Terra Antiga”, e agora com novo título e maior dimensão, o romance mantinha-se inédito há duas décadas, e veio a público menos para repisar o pisoteio do golpe — terra batida de negra memória, já nos anais da história —, e mais para retirar da gaveta uma amarelada obra de ficção. Paródia, sátira, alegoria, o romance recebeu, em abril deste ano, e numa ainda tímida versão nacional, com reduzido número de inscrições, o Prêmio Colemar Natal e Silva, da Academia Goiana de Letras. Jaime Ginzburg fala-nos do passado que atormenta, da necessidade de narrar para não esquecer o horror traumático e de enfrentar-se o teor doloroso do que ocorreu. “O Gado de Deus”, romance de negros matizes e coágulos, quer-se também um Pequeno Tratado da Crueldade Humana, para incomodar, quem sabe, sonolentas consciências, e, quem dera, provocar reflexão. Com relevância à imagética da linguagem e uma técnica romanesca algo anárquica, liberta e libertina, os personagens-narradores são múltiplos e o mesmo, e são sempre idosos, machucados, chorosos, céticos e ressentidos, daí o subtítulo “Livro do Ressentimento”, alusivo à lama sanguinolenta do golpe, impregnada na alma de um povo.

Como foi a concepção do romance?


Imaginei uma ação militar numa cidade do interior, ao mesmo tempo sede municipal, Estado e País, que chamo de Pátria, misturando-se os tempos narrativos e os fatos, onde alguns personagens são baseados em pessoas reais, entre eles uma dona de bordel de Uberlândia (MG), onde vivi por quase quinze anos, e de onde trago cenas bordelescas, memorizadas desde a minha adolescência. De lá, também, o repulsivo personagem Mané Muié, como o batizei, que defecava em público e se limpava com a mão. Ainda de Uberlândia peguei o nome de Zé Mané (José Manoel), que por lá um dia se suicidou, durante a noite, cravando um punhal no peito. De Goiás, inspirei-me numas histórias hilárias que ouvi sobre um juiz de Direito (não me falhe a memória) e sobre o cabaré de Maria Branca, na Campininha das Flores e de tempos ludovicos. Floreei um pouco mais os fatos, e usei nome fictício para o juiz. Curioso é que de Maria Branca inverti para Branca Maria da Penha, quando a criação da Lei Maria da Penha, de proteção às mulheres, ainda nem era cogitada. Ficcionei o prenome do falecido pai de um ex-governador goiano, vitimado (o pai) por isquemia (insuficiência de sangue no coração) ou infarto agudo do miocárdio. Já o nome de uma certa pessoa que ficava aí denegrindo escritores goianos, e sempre dourando a pílula de sua “tribo”, medíocres bandinhas de rock (eu disse bandinhas, cuidado aí com a vogal), serviu-me para nomear um torturador. Irônico em relação à heresia que percorre “O Gado de Deus”, protagonizo, eu mesmo, o personagem Inocêncio de Deus Divino. Um outro personagem não deixa de ser homenagem (embora com tintas trágicas, de mera ficção, além de um cochilo gráfico) a um promotor de justiça, do meu apreço e de nome interessante, que juntei com Arquimedes, o grande matemático da antiguidade, e os poetas gregos Konstantinos Kaváfis e Giórgos Seféris. Espero que o promotor não se ofenda, nem comigo nem com o personagem, valendo lembrar que atuei, por cerca de oito anos, na equipe de assessoria de imprensa do Ministério Público goiano. Passei por quatro gestões ali, e delas guardo boas e imorredouras lembranças, entre elas de uma titular que sempre me deixou a impressão de que me tratava com menosprezo, parece que subestimando minha parca inteligência e, assim, causando-me constrangimento em meu trabalho. Como eu estava numa casa de justiça humana, depunha tudo nas mãos da suposta justiça divina, mas assim como quem arrisca a sorte na loteria, sabendo que se trata de um jogo de azar.

Com todos estes elementos, como se desenvolve o romance?


“O Gado de Deus” se move e vai se explicando por um viés metanarrativo, sob um caráter em geral carnavalizante, com pitadas de escárnio e sarcasmo, dentro do estilo que venho disseminando há anos: a forma brincalhona, a modo de se falar a sério. A obra quer-se também como cusparada no mau-caratismo social, no descaramento da corrupção política, nos descaminhos das instituições, dos poderes constituídos e das autoridades estabelecidas. Enfim, o Brasil de ontem e de hoje, um pouco aí com a farsa ideológica de uma gente prostituída, que se esqueceu do povo e se esperneia apenas pela sua própria sobrevivência e por seus interesses político-partidários, buscando o poder. Até gente que ainda se diz “de carteirinha”, mas com data vencida, exigindo revalidação. No romance, há referências sobre militantes usando o povo como trampolim político, tanto é que hoje os vejo eleitos vereadores ou deputados (e não é que ainda votei neles?), podendo também que sejam apenas proprietários de bancas de jornais e revistas. Eu os reconheço e eles não sabem disso. Baseei-me neles, durante as passeatas que eu cobria para o jornal “Folha de Goyaz”, vendo de perto os espertos que insuflavam o povo e, assim que surgia a tropa de choque dos PMs, caíam fora e deixavam o pobre povo apanhando e sangrando sozinho. Particular-mente, isso muito me abalou e me deu o que refletir, com um travo de desencanto; mas, como já tornei público, sempre estive do lado de cá (lugar do povo), na margem esquerda do rio, e longe dos holofotes. E bem antes da derrocada ideológica que vimos acontecer, vinha eu vaticinando o advento, por conta das contradições entre a edulcorada teoria e uma “práxis” repetindo as truculências autoritárias, as mesmas que eles mesmos, atuando de ponta-esquerda no jogo de forças opostas, viviam criticando. Isso me rendeu um conto, naquela época, e resultou num filmeto que, alunos de cinema na PUC-GO, e ainda leigos, produzimos no ano passado, sob o título “Mise-en-scène dos Mendigos — A Força da Inércia”.

Numa passagem do seu livro, você o classifica como antirromance.


E noutra passagem o classifico como romancepoema. Entre outras possíveis classificações, é também uma ficção de cunho político. Um riocorrente a contracorrente, formalmente arbitrário em termos de gêneros definidamente fixos e de bitolas teóricas. E agora escoro-me no livro “Literatura e Guerra”, organizado por Elcio Cornelsen e Tom Burns, que se abre com uma análise de três contos de Guimarães Rosa, feita por Jaime Ginzburg, no ensaio “Guimarães Rosa e o terror total”. Este acentua que o texto testemunhal, muito frequentemente, renuncia ao senso de unidade totalizante, e opta pela descontinuidade e pela fragmentação da forma. Creio que “O Gado de Deus” caminha um pouco neste sentido, alinear, descontínuo, fragmentário, porém alinhavando-se a fios de colcha de retalhos, e assim compondo sua unidade. A principal função da escrita de testemunho, segundo Gustavo V. Garcia, está no debate dos direitos civis. E “o testemunho busca dar voz àqueles que não puderam se manifestar, silenciados pelo discurso oficial e pela repressão” (Selig-mann-Silva). De acordo com João Camillo Penna, “na América Latina, o testemunho é caracterizado por uma concepção de política multicentralista, em que se desfazem maniqueísmos e estereótipos políticos.” E Seligmann-Silva afirma também que o conceito de realidade é problematizado no testemunho, enquanto Jaime Ginzburg diz que “o fato de que os indivíduos não conseguem controlar o processo histórico faz parte da configuração negativa da imagem de realidade construída nos textos”. É de observar-se, neste aspecto, um personagem de “O Gado de Deus” dizendo que a realidade é imoral. “O testemunho — salienta James Hatley — está constantemente associado a graus inaceitáveis de dor física, repressão e violência. Ele se volta a situações em que se cria uma ambiguidade: ao mesmo tempo em que é necessário lembrar o que ocorreu, para evitar a repetição do horror, evocar a dor contribui para reencotrar o sofrimento.” Note-se, em meu romance, por conta dos personagens, uma certa ambiguidade em seus discursos, ideologicamente a favor ou contra, e hereticamente dúbios, que não se explicitam de todo entre crer e não crer, entre o crente e o cético, aquele que crê e descrê, desconstruindo-se, assim, no âmbito da própria crença. Como observa Jaime Ginzburg, citando Hannah Arendt: “O regime totalitário destrói os espaços entre os seres humanos, as crenças em leis que organizem esses espaços, e o princípio mesmo da liberdade humana. Estabelece o terror como condição de impedir mudanças fora do interesse do Estado”. Já os narradores de “O Gado de Deus” articulam-se em tom melancólico, e decorre que “a melancolia que impregna o texto está associada à perspectiva das perdas não superadas, dos esforços de sobrevivência que não tiveram êxito” (Ginzburg). É por essas e outras que “O Gado de Deus” espreme sangue e exprime sofrimento.

Na abertura do romance, você adverte o leitor, no sentido de que ele esteja preparado para ler o livro.

O romance lida com o gado, o rebanho de Deus, como se diz da humanidade, logo é um bicho bruto, e não é livro para espíritos fracos, muito menos para fanáticos religiosos ou ideológicos, embora nada os impeça de ler a obra, mas lê-la com inteligência, para entender a dimensão humana dos personagens, com as implicações de suas falas e ações. Sobretudo, entender as dimensões e a essência da literatura. Em meu livro, além do aspecto político, há conflito dos personagens com a ideia de um Deus onisciente, onipotente e onibondoso, mas ausente em relação a tanto sofrimento mundo afora, haja vista que não se tem notícia dele em Auschwitz, Hiroshima, Vietnã, Brasil de 1964, World Trade Center, tsunâmis e tantas outras catástrofes ou tragédias. Sem falar nos tarados estuprando inocentes indefesos, até bebês ainda no berço; e de mães desalmadas, parindo escondido e jogando o recém-nascido no lixo. Como diz um dos narradores em meu romance, a natureza é crueldade, devoração, e este é o mundo criado, este o brinquedo de Deus. Jogando pesado, afirma que o homem é o cão de Deus e, se é um demônio, é a cria carnívora de Deus. Criador e criatura, a natureza do mal. Arrepiante, pois não? Isto corre por conta do personagem e da ficção, meus bodes expiatórios, mas, risivelmente, “eu não vi e não sei de nada”, e aprendi a dizer isso com o ex-presidente Lula. 

Há planos para uma reedição? Você pensa em atingir o mercado do eixo Rio-São Paulo?
À parte as imperfeições e os futuros reparos que a obra impõe, e aqui vendendo meu peixe, ouso dizer que “O Gado de Deus” pode não ser um dos melhores do gênero em Goiás, mas é a paródia que faltava na literatura goiana, que é tão brasileira quanto a de outros Estados. O romance tem defeitos e excessos, equívocos por descuido de memória e falhas na revisão textual, até por razões alheias aos meus cuidados. Há, inclusive, a parte em que me refiro ao “Caderno Avante”, afirmando que a capa do mesmo era ilustrada por soldados brasileiros na Segunda Guerra Mundial, quando na verdade se trata de escoteiros, uma falha de memória que só percebi a partir de um artigo do escritor e jornalista Luiz de Aquino, publicado em seu blog. Aquino não menciona a minha falha, mas penso que o artigo veio a propósito da mesma, e grato fiquei pelo esclarecimento; tanto é que, também a propósito, redigi e foi publicado, no mesmo blog, o artigo intitulado “Uma mão e um mamão”. O irônico é que, antes de publicado “O Gado de Deus”, eu havia apontado, em artigo publicado na “Revista Bula”, um cochilo do destacado escritor Ronaldo Costa Fernandes, em seu romance “O Morto Solidário”, no qual ele se refere ao homem com o bacalhau nas costas como ilustração no rótulo do fortificante Biotônico Fontoura, quando tal rótulo é do purgante Emulsão Scott. Humildemente me prosto. “Errare humanum este”. Quanto a chegar ao eixo Rio-São Paulo, não é fácil, tanto quanto ser ilusório. Bom seria se houvesse interesse e, pelo menos, com uma nova edição do livro, uma ponte de editora goiana até o chamado grande eixo editorial e midiático do país, bem como no vestibular das universidades goianas. Boa experiência seria discutir-se o romance nos auditórios universitários, tendo em vista a multiplicidade de aspectos e detalhes que presumo interessantes a uma discussão, especialmente com mestres e alunos do curso de Letras, entre outros interessados. Quem sabe o romance chegasse também às unidades do Ensino Médio, a menos que julguem-no inadequado para os “avançados” adolescentes de hoje, podendo que alguns professores, estacionados no tempo, ainda prefiram aplicar-lhes a “Inocência”, espécie de Romeu e Julieta sertanejo, de Visconde de Taunay, escrito no século 18.
No livro, você (ou seu personagem) se mostra bastante descontente com a geração pós-ditadura. Por quê?


O personagem está centrado entre 1980 e 1990, portanto não se refere a exatamente hoje, embora suas palavras possam ressoar nos dias atuais. Refere-se a uma juventude que sobrou despersonalizada pela opressão e repressão militar. Jovens que o personagem não reconhece como os mesmos patrícios de antes, daí um doloroso sentimento de perda, da juventude e da Pátria de seu tempo. “O Gado de Deus” alude a uma geração castrada pelo golpe, o que vem metaforicamente simbolizado com a cena de castração de um jovem professor. Outro professor é baleado e morto, então há também alusão crítica ao sistema educacional. Por outro lado, e lamentavelmente, boa parte da juventude atual é portadora de ignorância histórica, desinteresse pela cultura, estrábica noção de valores, estereotipado estilo de vida. Jovens manipulados pela mídia do consumismo, da exaltação narcisista e de uma precoce exploração da libido. Violência gratuita, testosterona com adrenalina, álcool e drogas por atacado e a granel. Não creio que uma parte dessa juventude esteja preocupada com o seu próprio futuro, ou, no mínimo, com a droga de vida que está levando, enredada na malha de se morrer jovem e hoje mesmo. Salve-se a juventude, “o lindo pendão da esperança”, aqui utilizando um verso do Hino da Bandeira Nacional, composição de Olavo Bilac e Augusto Braga. Aliás, Olavo Bilac, no meu romance, é Ovalo Calib, numa grafia inversa, de tempos adversos. O futuro, social, cultural e politicamente falando, se descortina sombrio, já o presente configurado num pesadelo real. Tudo por conta do individual e do coletivo, com a parcela de culpa de cada um: do Estado, dos poderes constituídos, da família, da sociedade como um todo. Contudo, é visto que boa parte da juventude abraça com afinco os seus estudos, encara a realidade da vida e se prepara para o futuro, por incerto que ele possa parecer. Assim, ainda resta uma esperança, como se costuma dizer.

“Pátria” e seu “rebanho” têm futuro?

Não morro de amores pela “pátria” madrasta do meu romance. E já em nossos dias, a política brasileira tem uma banda podre, até comendo pelas bordas os poderes constituídos. Os homens do nosso país já não inspiram confiança. Descaramento e cinismo estão rindo na nossa cara, amiúde à sombra das tais “brechas da lei” e da impunidade. O que há com os doutos meritíssimos? E que Constituição esfarrapada é esta, com um descaramento que muito favorece à criminalidade e à impunidade? E essas polícias aí? A própria justiça, às vezes, é caso de polícia no Brasil. Tenho observado que os maus políticos e certos governantes estão contribuindo para a disseminação da canalhice, e que a sociedade, espelhando-se neles, está se  corrompendo, perdendo o senso ético. E mais não digo para não contaminar a outros com o meu desencanto. No ano passado, em face da realidade do país, publiquei, via internet (“Revista Bula”), um texto afirmando que somos todos sórdidos. Em seguida, alguém mais, filósofo e médico, veio ao mesmo veículo afirmando que somos todos crápulas. Somos ou não somos “um país que vai pra frente”, como apregoavam as patentes militares de 1964? Deu no que deu. Sórdidos e crápulas. Cínicos e impunes.
Há heresia em seus personagens. Você acredita na existência de Deus?


Creio, descreio, crio para crer. Está publicado em meu livro “As Lâminas de Zarb” (Braz ao inverso). Não posso negar o grande enigma cósmico, nem o mistério da vida, que não se explica pelo simples fato de existir. Que sabemos nós, que de nada sabemos? Já o nosso mundo é uma carnificina só, até com o terrorismo em nome de Deus, fanatismo religioso e, sob as barbas de omissas autoridades, o crime de extorsão por hipnose coletiva. Já não bastassem, de sobra, as trevas disseminadas pela Igreja medieval, com as góticas gárgulas do horror na Santa (Diabólica) Inquisição. Aquela Igreja sombria e pecaminosa, que se arrogava absoluta abaixo de Deus, impediu, atrasou, e muito, o desenvolvimento da humanidade, que talvez já estaria um passo mais à frente. Não há pedido de perdão, de papa nenhum, que redima a Igreja de tão negro período na história da humanidade. O que se espera, no presente, é que se faça justiça e sejam punidos os pedófilos sob o maculado manto do clero. E o homem, entre a razão e o sentimento (mesmo em seu ofício de fé), deve se reciclar, rever tudo, e se reconstruir. De resto, e de imediato, somos problemas gerados por nós mesmos, e cabe a nós resolvê-los. Voltando ao início da pergunta, e no que me diz respeito, se um Deus há, haverá ele de cuidar de mim, e ponto final. Não preciso que me venham dizer mais nada, pois ninguém sabe coisíssima nenhuma do que presume que seja Deus. Talvez os verdadeiros desígnios de Deus sejam mesmo que morramos para então sabermos. Assim, quem viver, morrerá. “Não temas, segue adiante, segura na mão de Deus e vai”. Baibai! Pano de fundo musical para a fúnebre ocasião.

Adérito Schneider é jornalista.


Mário Faustino - Poeta


Breve Elegia



Só ardem neste sono
os círios da memória e do desejo.
E turvos
na memória revolta são teus gestos –
os únicos repletos de perdão.

É preciso esquecer
tanto amar, tanta amarga
expiação de tudo que guardamos
por não sabermos dar.
E obscura
                    pelas vagas do leito
                                                  - tua sombra –
nenhuma outra é digna deste abraço.

Pudesse eu divagar
pelos bosques teu reino, mergulhar
contigo em tua fonte, ou ascender
ao teu éter contigo, ao teu mistério ...
mas não há via larga rumo à noite.

Então, luz após luz remota, um sol atroz
atira-me do sonho aos recifes
reais donde diviso tua fuga:
Jamais a madrugada traz nos braços
relíquias de uma lua que adoramos.



Mário Faustino - Poeta


Sinto que o mês presente me assassina


Sinto que o mês presente me assassina,
As aves atuais nasceram mudas
E o tempo na verdade tem domínio
sobre homens nus ao sul das luas curvas.
Sinto que o mês presente me assassina,
Corro despido atrás de um cristo preso,
Cavalheiro gentil que me abomina
E atrai-me ao despudor da luz esquerda
Ao beco de agonia onde me espreita
A morte espacial que me ilumina.
Sinto que o mês presente me assassina
E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas
De apóstolos marujos que me arrastam
Ao longo da corrente onde blasfemas
Gaivotas provam peixes de milagre.
Sinto que o mês presente me assassina,
Há luto nas rosáceas desta aurora,
Há sinos de ironia em cada hora
(Na libra escorpiões pesam-me a sina)
Há panos de imprimir a dura face
À força de suor, de sangue e chaga.
Sinto que o mês presente me assassina,
Os derradeiros astros nascem tortos
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre o morto que enterra os próprios mortos.
O tempo na verdade tem domínio
Amen, amen vos digo, tem domínio
E ri do que desfere verbos, dardos
De falso eterno que retornam para
Assassinar-nos num mês assassino.







InJornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Mário Faustino

Célio Pedreira - Poema


cantiga cria


um horizonte bateu em minha porta
e quando abri eram só dois olhinhos
a estender-me a mão
como fosse um pedido de rumo
desses que a gente acerta
até os caminhos do coração.


Imagem retirada da Internet: Infantil

Francisco Perna Filho - Poema

Somália


um mar de  gente sedenta,
                           faminta,
degusta palavras,
                          definha em sóis
de uma existência precária.
Somali,
só mal,
        de sol a sol,
sozinha,
     a criança brinca com os seios da mãe:      
sugando o inexistente,
brinca de ser eterna.

               

Imagem retirada da Internet: fome

Chico Buarque de Holanda - Poesia



TROCANDO EM MIÚDOS


Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim!
O resto é seu

Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças

Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter

Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado

Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu

Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde.


Imagem retirada da Internet: Fita do Bonfim

Sinésio Dioliveira - Crônica


Goiandira deixa suas pegadas na areia



Tive o privilégio de entrevistar a artista Goiandira do Couto. Isso já faz um bocado de anos. Na época ela estava com 82 anos. Lembro que sugeri a vida da artista como pauta na reunião que acontecia toda segunda-feira no jornal, um semanário.

Minha sugestão, entretanto, não foi aceita pelo dono do jornal, pois, segundo ele, era dispendioso deslocar um carro até a Cidade de Goiás e junto a isso o fato de que o assunto “cultura” não gera lucros ao jornal. Tentei dissuadi-lo de sua pequenez jornalística. Foi, portanto, em vão.

Após me certificar com o dono do jornal de que pelo menos a matéria seria publicada, rumei para a Cidade de Goiás em meu próprio carro, acompanhado do fotógrafo Iris Roberto. Ainda bem que fui. Já chegando à cidade e ao avistar a Serra Dourada, onde a artista extraía os grãos de areia de centenas de cores para dar vida a suas obras, tematizadas nas casas e ruas de sua cidade, parei o carro e pedi ao fotógrafo que fizesse algumas fotos da serra. Como estávamos no mês de maio, a paisagem estava muito bela. O verde da vegetação era vigoroso.


Minha conversa com Goiandira durou quase três horas. Liguei para ela assim que entrei na cidade. Ao chegar em sua casa, encontrei duas portas abertas: a de sua casa e a de seu coração.
 Na verdade, eu já conhecia a artista, mas queria conhecer também a pessoa dentro da artista. Que pessoa maravilhosa!

Em meio à entrevista realizada pela manhã, isso após Goiandira passar um café fresquinho, que rescendeu deliciosamente pela cozinha, onde estávamos, ela ia me mostrando seus quadros, fotos de suas exposições. Falou de sua infância, mas sem o saudosismo romântico. Falou da importância de seus pais, da influência da mãe, que era pintora, em sua vida como artista plástica. Falou da importância do pai no estímulo pela leitura. Falou que cresceu rodeada de livros e que isso foi-lhe muito importante na lapidação de sua personagem. Até mencionou Castro Alves: “Bendito o que semeia livros!” Monteiro Lobato também é mencionado por Goiandira: “Um país se faz com homens e livros.”

A certa à altura da entrevista, quando falava das inúmeras personalidades políticas e religiosas que a visitaram, perguntei-lhe qual foi a mais importante. “Foi Chico Xavier, ele inclusive sentou-se na cadeira em que você está sentado agora.”

Voltei para Goiânia feliz em ter conhecido aquela mulher tão determinada, tão importante e de um coração tão grande. Ainda bem que ela gostou da entrevista, tanto que me mandou, dois dias após a publicação da matéria, uma bandeja de doces cristalizados.

Goiandira foi embora, mas deixa suas pegadas na areia...


Imagem retirada da Internet: Goiandira do Couto

Maria Elizabeth Fleury - Crônica

Goiandira do Couto
 Foto by Weimer Carvalho- O Popular


Terra linda e venturosa, terra amada de meus pais




 Somente corações generosos de coroadas cabeças da atual diretoria do SESI goiano,  teriam a sensibilidade de ceder uma condução com motorista, proporcionando, a pequeno grupo de intelectuais goianos a oportunidade de conduzir o casal de escritores e historiadores de Porto Alegre (RS), Moacir e Hilda Agnes Hübner Flores, para conhecer a outrora Vila Boa, antiga Capital de Goiás, hoje, orgulhosamente, Patrimônio Cultural da Humanidade. E, sob cálido sol matinal deste mês de agosto seguiram todos, quais adolescentes em recreio, rindo, conversando, cantando e recordando saudosas cantigas como a “Balada goiana” de Manoel de Amorim: Todos têm um amor na vida/que os inspiram a cantar/ eu só tenho a minha cidade/ minha terra, meu sonho, meu lar... Lá chegando, aos poucos, a cidade foi desvendada, mas dois desejos seriam primeiramente realizados: visita à casa de Cora e à arte em areia nos belos quadros de  Goiandira, fundadoras da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás-AFLAG.
       
Para melhor apresentação da cidade, buscamos os versos de Rosarita Fleury, uma de suas amorosas filhas que, ainda, menina-moça a deixou, sem nunca esquecê-la. Saudosa, registra em poemas e romances sua história, sua beleza, usos e costumes de sua gente simples, hospitaleira, inteligente e honrada... Aos pés de verdes morros a cidade se estende cintilante/ nos dizer do poeta é pérola engastada no verde-jade de concha fascinante... Ponte da Lapa, do Carmo, Cambaúba altaneira, rio Vermelho, as pedras, as lavadeiras... Cruz do Anhanguera, de tão distante era! / o Palácio Conde dos Arcos, o bom Colégio Sant’ana/a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte/ a Catedral por fazer, tão sem sorte... / o sino do Rosário badalando, convidando... convidando.../ /Igreja D’Abadia, de Nossa Senhora do Carmo e São Francisco/ Rua Nova, tão velhinha, Rua Direita, tortuosa, de todas a mais tortinha!...No entanto a saudade grande é da Rua Rosa Gomes/ onde por anos morei e onde há, nos quintais/ tanta fruteira bonita plantada por meus pais... (do poema Goiás Recordação).


Entrando na casa de Cora Coralina, fomos recepcionados por seu retrato em tamanho natural e lá nos mergulhamos nos séculos XIX e XX, vendo-a em gravações e ouvindo-a declamar seus poemas de mulher sofrida, altaneira, guerreira. E, enquanto conhecíamos todos os ambientes, suas seculares paredes nos espreitavam, nos questionavam, fazendo-nos reféns de sua poética... Goiás minha cidade/eu sou aquela amorosa/de tuas ruas estreitas, curtas, indecisas/saindo uma das outras./Sou aquela menina feia da ponte da Lapa/sou Aninha/ Sou Cora Coralina/Venho do século passado e trago comigo todas as idades./Despojada,apedrejada/sozinha e perdida nos caminhos incertos da vida fui caminhando,caminhando.../Fiz um nome bonito de doceira, glória maior/E nas pedras rudes de meu berço gravei poemas...(versos de vários poemas) Depois de um almoço tipicamente goiano no Restaurante Ipê, com direito à sobremesa, levaríamos nossos visitantes a conhecer a beleza ímpar dos quadros pintados com areias coloridas da Serra Dourada, arte/criação de nossa internacional Goiandira do Couto.


Veio a decepção: O casarão, que foi de seus pais, hoje a Casa de Goiandira, um verdadeiro palácio da cultura, estava fechado. É lá que ela guarda inúmeros de seus quadros, assim também o atelier construído por ela para abrigar suas obras e receber os turistas. Numa sala em sua casa, onde trabalhava, há para visitação dos turistas 515 potinhos de areia com as cores matizadas da Serra Dourada - o precioso material de sua pintura. Tudo isso, orgulho e riqueza goiana, sempre mantida por ela, mesmo doente e hospitalizada em Goiânia.  Quantas vezes ela abriu mão de seu descanso, atendendo turistas ou amigos mesmo em crise de labirintite?  Informada por familiares, soubemos que somente meados do mês passado (julho) é que o funcionário foi dispensado, estando agora tudo fechado. Que pena!... Nossa visita fica para outra oportunidade. Sabemos que seu estado de saúde é delicado e ela,  com seus noventa e tantos anos de dedicação completa à sua arte, muito já fez, levando o nome de Goiás por todo Brasil e internacionalmente.


Depois de um cafezinho amigo na Chácara Baumann, visitamos o Palácio Conde dos Arcos, o Museu de Arte Sacra e tantos outros pontos turísticos, locais de que muito nos orgulhamos pelo zelo, limpeza,  organização e competência dos funcionários. Despedimos da cidade saboreando os tradicionais sorvetes e picolés de frutas tropicais da Praça do Coreto e o desejo de um breve regresso. Hoje (22,ago), enquanto relia esta crônica para encaminhá-la ao DM, recebo a notícia que Goiandira não mais vive entre nós. Sua alma cansada subiu ao Céu, deixando-nos a riqueza de sua arte única e maravilhosa. Descanse em paz, querida confreira e amiga.
                                                      
Maria Elizabeth Fleury – membro da AFLAG, UBE, ATLECA e ABLAC.


Morre aos 95 anos a artista plástica goiana Goiandira do Couto

Artista Plástica Goiana - Foto de arquivo
(by Walter Alves - O Popular)


A artista plástica goiana Goiandira do Couto morreu de falência múltipla de órgãos, no fim da tarde desta segunda-feira (22), em Goiânia, aos 95 anos. Ela sofreu complicações de um acidente doméstico, no dia 29 de julho, quando fraturou o fêmur. Inventora de uma técnica que a tornou famosa internacionalmente, Goiandira do Couto extraía 551 tonalidades da areia da Serra Dourada para criar telas em que destacava a paisagem da Vila Boa em Goiás.  Professora aposentada e fundadora da Escola de Artes Veiga Valle, a artista plástica vendeu praticamente todas as telas  que produziu, a maior parte para  personalidades como presidentes, governadores e artistas. Goiandira Couto também foi fundadora da Igreja Messiânica na cidade de Catalão (GO).
O sepultamento deve acontecer na cidade de Goiás, na terça-feira (23), em horário a ser definido. Natural de Catalão, Goiandira completaria 96 anos no dia 12 de setembro.

Fonte G1

Maisa Lima - Conto

Na Curva da Maria Bárbara


No começo, todo mundo pensava que não tinha nada. Depois, foi pior: deram-se conta que não tinham nada mesmo. E desgraça das desgraças: orgulhosos. Em suma, uma gente fadada a não sair do lugar.

Aqueles que julgavam ter se livrado do visgo da pasmaceira estavam afundados nele até o pescoço. Se acreditavam melhores que o resto do mundo. E por resto do mundo, entenda-se a beira de serra em que viviam.

O resto não importava. Até porque, eles não existiam para o resto. Era gastar arrogância à toa. Mas, até mesmo onde o nada cruza com lugar nenhum, há aqueles que fazem o povo andar. Zé Esteira era desses.

Olhando pro seu carro estacionado no quintal, a gente só não dizia que estava num desmanche porque era só um. Se não contasse, é claro, com a carreta do carro de boi. Tão abandonada, que se a chuva continuasse era capaz de virar lenha.

O carro do Zé tinha chassi, rodas, volante e, luxo dos luxos, bancos! Quando ia pra cidade, só não usufruía da civilização quem não quisesse. Levava todo mundo. Só que a civilização também usufruía do Zé: bebia até cair os dentes. Mas, nunca matou ninguém.

Até que Daltiva, desgostosa da vida que levava com Aelcio Abacaxi (só o raio dessa fruta crescia no areal que o homem escolheu a dedo da terra que o pai deixou de herança para a prole de 14 filhos), tentou se matar afogada no lamaçal da Curva da Maria Bárbara. Mas não com o Zé. Outro só ia achar que era mais um cupim no chapadão, com um ar engraçado de nortista. Mas o Zé, não.

Ele gosta de conversar, mas gosta mais ainda que o freguês concorde com suas justíssimas palavras. Aliás, quanto mais bêbado, mais justas.

Quando Daltiva sequer lhe respondeu com o habitual – hum!, notou que algo não ia bem. Só demorou cinco quilômetros para se dar conta que, ou o planeta Chupão tinha sugado Daltiva (sorte do Aelcio, mas ele não merecia), ou tinha comprado passagem só de ida para o Vale dos Suicidas, ou, pior de tudo, tinha deixado o Zé falando sozinho. Essa última possibilidade fez com que reagisse. Um homem tão bom não merece esse tratamento! Ainda mais que Daltiva era a única que arriscou de voltar com ele e não gostava que o povo o visse falando sozinho.

Daltiva, que nunca foi apresentada a qualquer lei da física – nome lindo pra uma vaca! – não firmou no banco e foi ver de perto porque o chapadão é terra boa pra soja.

Zé não agüentou a desfeita. Com o ar mais sério do que o de Zumbi quando assumiu o lugar de Gangazumba em Palmares (isso é por minha conta. Zé nunca ouviu falar em nenhum dos dois. Mas é preto e eu, um daqueles que, em vão, tento transformar a pasmaceira em verniz), declarou:

-Sou bão demais, Daltiva. Carona dou pra todo mundo. Mas gosto que me avisa quando vai descer.

Daltiva, digna, apesar da lama que pingava da sobrancelha, voltou para o chassi com rodas. Com o orgulho em frangalhos, mas voltou. O chapadão não era famoso pela animação (os gaúchos ainda não eram praga) e 17 quilômetros são de se respeitar. Ainda mais que até os brincos – ouro puro da Bahia – estavam marrons e ela não queria ser confundida com um tatu-peba fashion.

 Mas ficou mais de mês sem ir pra civilização. O Zé não percebeu, porque, graças a Deus, pinga apaga qualquer desfeita. E o Aelcio, coitado, pensou que era amor.


* Maísa Lima é Jornalista, Editora de Economia do Jornal do Tocantins.

Imagem retirada da Internet: Humortalha

Romério Rômulo - Poema



pontes, ouro preto


as pontes que martelo e que atormento
carregam uma espécie de ungüento
que vila rica deixou em cada delas.

o sujo, o não calado, o renitente
perderam a vida, a mão, a língua, o dente
por discordar do que havia sobre elas.

quantos soberbos sobre as pontes disfarçaram
suas viagens de quem nasceu do ouro
e o ferro em apetite aguçaram.

tiveram, em pindorama, estes senhores
que carregar na consciência, se a tiveram,
o grito amargo das dores que causaram!
                                    (de quantas pontes vive ouro preto?)



In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Ouro Preto

Lêdo Ivo - Conto


A resposta




Seu nome era Serafim Costa. Mas nome de quem, ou de que? Na cidade pequena , decerto a sua figura deveria ter se cruzado, muitas vezes, com a do menino fardado, de camisa branca e curtas calças azuis extraídas das velhas casimiras paternas. Ele, o comerciante abastado, talvez comendador, não conhecia o garoto. E este jamais poderia ligar o nome à pessoa. Assim, Serafim Costa era apenas um nome — a belíssima sonoridade de um estilhaço de mitologia, uma flor aérea que, em vez de pétalas, possuía sílabas.

Ele morava no Farol, exatamente onde o bonde fazia a última curva. Os muros brancos, que cercavam o quarteirão, semi-escondiam a casa, também branca, além do jardim que aparecia entre as grades, e em cujos canteiros florejavam espessuras e certas musguentas flores amarelas, e um imenso besouro zoava. A casa era um palacete de dois andares, crivado de sacadas e cegas janelas, e que parecia desabitada. Possivelmente essa incorrigível falsária, a Memória, a pintou, sem tir-te nem guar-te, com a sua branca tinta adúltera, substituindo a verdade nativa, feita de alvorentes azulejos pintalgados de azul, por alguma caprichosa arquitetura rococó. De qualquer modo, de outro lado do muro reto, sem dúvida encimado por afiados cacos de garrafas para impedir o salto dos ladrões, a gente via as copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e outras árvores sob as quais alguns cães esperavam, impacientes, que a rotina bocejante do dia se esfarelasse para que eles pudessem latir, na noite raiada de estrelas, como que lembrando a Serafim Costa — que interromperia por meio minuto o seu sono tranqüilo e patriarcal — as suas presenças vigilantes.

— Aqui mora Serafim Costa devia ter-me dito meu pai, num daqueles crepúsculos em que, de bonde, voltávamos para casa; ele com a sua velha pasta que inexplicavelmente não o acompanhou ao túmulo (o que talvez não o fizesse ser de pronto reconhecido no Paraíso), e nós ainda guardando nos ouvidos o bulício vesperal do instante em que, aberta a porta do grupo escolar, as crianças escoavam para a praça e se perdiam nas escurentas ruas tortuosas.

O palacete branco vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor. Além das portas fechadas, das presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das dálias, do fino palor dos azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um universo de opulência, que a nossa fantasia de meninos pobres mal podia imaginar. A tarde transcurecia; o portão fechado validava-se como o brasão de uma existência que, terminados os diálogos inevitáveis de seu ofício de grande comerciante sempre atarefado e vigilante, suspendia qualquer tráfico com as mesquinharias diurnas, igual a um navio que, após todo o baixo ritual da estiva, readquire a sua dignidade perdida sulcando o mar sem amarras.

Era o palácio de Serafim Costa. E o nome, a magia desse nome que ocupou toda a minha infância, e era o preâmbulo mágico das encantações, demorava-se em mim, .solfejando-se no ar eternamente perfumado pelo Oceano. Meu pai, então guarda-livros de um armazém de tecidos, conhecia Serafim Costa, e nos mostrava a sua residência. "Aqui mora Serafim Costa." Não nos nomeava uma forma definida de casa (sobrado, bangalô, palacete); e certo aquela moradia, uma das mais luxuosas da pequena cidade, refugia às denominações irreversíveis. Ignoro se Serafim Costa era alagoano ou um dos muitos imigrantes portugueses que, estabelecidos em Maceió, enriqueceram em tecidos ou em secos e molhados e terminaram comendadores — mas em seu palacete, na exuberância do jardim equatorial, no chão assombrado de árvores enlanguescidas pelo mormaço, havia algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota e avoengueira, como que a reprodução de antiga planta deixada do outro lado do mar e tacitamente reconstruída pela poupança e ambição do imigrante afortunado. Por isso, meu pai dizia aqui, querendo assim significar tudo o que era o império de Serafim Costa: as grades do jardim, os sinuosos canteiros colmeados de folhas e flores, os calangros e insetos, a água espatifada de uma fonte, os familiares que não apareciam às janelas, talvez para não confundir a visão de todos os que, como eu, o imaginavam reinando solitário em sua mansão, sem quinhoar ostensivamente com ninguém o resultado, de sua vida vitoriosa, feita de zelo e siso.

Embora eu não tivesse conhecido Serafim Costa, tornou-se-me familiar aos olhos um dos empregados de seu armazém. Era um velho corcunda, de fiapos brancos na cabeça calva, e devoto. Alguns anos depois, quando já tínhamos deixado de morar no sítio e passáramos a habitar numa rua do centro da cidade, estávamos todos, no sótão, assistindo à passagem de uma procissão que enchia a monotonia da tarde de domingo. Súbito, identifiquei na multidão o corcunda velho e devoto, e exclamei:

— Olhe o Serafim Costa!

A exclamação fez espécie a meu pai, que se virou para mim, surpreendido com a notícia. Seu ar era mais do que de dúvida — decerto eu dissera uma heresia, que reclamava pronta corrigenda ou a aura de uma prova irretocável. Com o dedo, apontei o velho corcunda que, de casimira preta na tarde de sol fugidiço, vencia, na aglomeração, os. paralelepípedos da rua. Meu pai reconheceu o empregado de Serafim Costa e exclamou, de bom rosto:


— Não é o Serafim Costa — e achou engraçado que eu confundisse o empregado humilde e devoto com o poderoso e mitológico patrão.

E assim ele ficou sendo, para mim, sempre e eternamente, um nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou junto ao mar lampejante, eu repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se ele fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que os costados dos navios pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira lição de poesia, essa infindável soletração do absoluto.

Muitos anos depois, desintegrada a infância, e já envolto numa névoa de estrangeiro, voltei à curva do bonde. Era ali que morava Serafim Costa — o portão fechado era sinal de que ele estava lá dentro, movendo-se possivelmente entre frutas maduras, gatos sonolentos e bojudas porcelanas azuis. Trinta anos se tinham passado desde os dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada, o universo branco e verde estriado de agudas grades negras e manchas róseas. O invisível Serafim Costa já deveria estar morando, e de há muito, em outra alvacenta morada... Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias de mármore, as altas janelas que pareciam sotéias. E chamei: Serafim Costa!

Chamei a quem, a que? E ocorreu o milagre. O nome ficou suspenso no jardim onde se ocultava uma cobra papa-ovo, depois voou pelos ares, como um pássaro; chocou-se contra os costados dos cargueiros que, no destempo hirto, desembarcavam em Maceió os caixotes das mercadorias encomendadas, do outro lado do Oceano, pelo valimento comercial de Serafim Costa; e, metamorfoseado em eco, voltou de novo aos meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia de um nome que não precisa mais de figura ou de anedota; e se tornou para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto.

E, assim, obtive a resposta.


In.  Ficção, nº 06, Rio de Janeiro, junho/1976, pág. 46.
Fonte: Releituras
Imagem retirada da Internet: Lêdo Ivo

Carlos Drummond de Andrade - Poema



O chão é cama


O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.

E para repousar do amor, vamos à cama.

Imagem retirada da Internet: cama

Rosy Feros - Poema




Egon Schiele
Dedos do silêncio


Vem...
          Me toma à beira da noite,
          caminha por mim
          com seus passos molhados,
          despeja seu rio no meu cálice
          – pois minha emoção é só água.

Vem...
          Que eu lhe dou um trago
          deste meu vinho guardado,
          destas minhas uvas
          frescas de inverno...
          Que eu derramo em gotas meu perfume
          pelos quatro cantos do seu corpo,
          vestindo sua pele com a camurça
          da nudez e do silêncio.

Vem...
          Deita e me canta,
          sente meu desejo
          se esgueirando pelos seus dedos,
          veleja sem bússola
          pelos meus sentidos,
          me olha como quem pede lua...

          Deixa eu sussurrar minhas folhas,
          soprar minhas pétalas
          pelo seu peito de relva,
          pelo seu solo macio.
          Vem... Não volta,
          esquece a hora morta
          do cotidiano de sempre.
          Me toca feito música
          e deixa eu cantar meu bolero
          pelas suas curvas de carne...

          Sinto-me inocência
          passeando por suas alturas,
          por seus andares cheios
          da mais noturna noite densa.

          Desvenda essa face molhada
          e me mostra a sua vertente original
          de emoção-fêmea pura...
          Que eu o espero na branca paz
          do meu ventre adormecido,
          dos meus braços plenos
          de fogueiras e cantigas.

Vem...
          Que eu desfolho
          toda essa sua vontade nua,
          que eu desperto
          todo esse seu lado cigano...
          pois o meu leite é morno
          e é rosa franca meu sorriso.
          Deixa seu barco
          navegar pelo meu leito,
          que eu carrego no peito a ânsia
          de hastear a bandeira do infinito...

Vem...
          Deita... Me namora...
          Me afoga no espelho de luz
          dessa madrugada afora,
          me diz que no nosso tempo
          não há tempo nem hora,
          que eu não agüento
          a flor do sexo que arde
          nas entranhas de mim...

          Deixa que eu amanheça
          na espuma dessa sua onda quente,
          deixa sua emoção fluir
          da garganta num repente...
          Que eu carrego nos olhos de relento
          a voz que lhe pede a terra
          e que lhe entrega o mar.


Imagem  by  Egon Schiele

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