José Fernandes - Ensaio crítico


Abolição da Literatura



Por José Fernandes*





Estarreci-me com a possível censura à Caçada de Pedrinho. Pensei razões de cunho ecológico que, também, seria cegueira, porque a arte é a expressão estética de uma época. Mas, não, elas eram muito mais ridículas, porque resultantes de preconceitos que mostram o apequenamento por que o homem está passando. Sobretudo, mostram uma total miopia literária. Se o tratamento conferido pelo narrador à simpática e querida Tia Nastácia se configura como racismo, teremos de abolir da literatura brasileira grande parte da lírica crioula, de Gregório de Matos que, em seus estilos maneirista e barroco entronizava a mulher negra e, às vezes, a rebaixava, quando ela merecesse ser satirizada.

Teríamos de suprimir de nossa cultura literária, pelo menos, dois romances de Aluisio de Azevedo. O primeiro, por causa da personagem Rita Baiana, descrita como a própria sedução e, pior, por causa da Bertoleza, que fora nomeada com o nome de mula, ou feminino de Bertoldo, a que governa com brilho, e que trabalhava como um animal, assim descrita pelo narrador naturalista com impiedosa ironia: ”Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo: essa, em nada, em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo: pelo contrário, à medida que ele galgava posição social, a des-graçada fazia-se mais e mais escrava e rasteira.

João Romão subia e ela ficava cá embaixo, abandonada como uma cavalgadura de que já não precisamos para continuar a viagem.” E que dizermos de O Mulato, em que Raimundo realmente é vítima do racismo de Maria Bárbara? Mas, se o extinguirmos, como ficará cristalizada aquela época em linguagem, como saberemos das ideologias e filosofias que embasaram o naturalismo em toda a sua extensão estética? E A escrava Isaura, também passaria por algum tipo de censura, em decorrência dos sofrimentos a ela impostos pelo comendador Almeida e, sobretudo, pela sanha do indecoroso Leôncio?

Mas, e o nosso simpático Macunaíma, herói sem caráter, uma das principais produções do estilo modernista? Deveria ser extirpado de nossa cultura ficcional por que suas “malandragens” constituem a essência mesma do brasileiro irresponsável e brincalhão só pelo fato de ele fazer piadas aparentemente indecentes, como ao perguntar “em que lugar a negra tem os cabelos mais crespinhos”? E o estupendo poema de Jorge de Lima, Essa Nega Fulô, em que ele joga magistralmente com os sentidos vários de fulô, que pode ser flor e aquela que roubou? Deveria ser excluído da poética brasileira por que acusa a negrinha de roubar as jóias da Sinhá, ou por que roubara o Sinhô, decor-rência de sua beleza exuberante? Coitado do poema Irene no céu, obra-prima de Manuel Bandeira – “Irene preta, Irene boa/Irene sempre de bom humor.//Imagino Irene entrando no céu?/ – Licença, meu Branco?//E São Pedro bonachão:/ - Entra, Irene! Você não pre-cisa pedir licença!”?

Seria abolido só pelo fato de ela ser chamada de preta? E o ritmo do poema Monjolo, de Raul Bopp, banido, por que se refere à labuta dos escravos na fazenda?: “Fazenda velha./Noite e dia/Bate-pilão.//Negro passa a vida ouvindo/Bate-pilão.//Relógio triste o da fazenda./Bate-pilão.//Negro deita. Negro acorda./Bate-pilão.//Quebra-se a tarde./Ave-Maria./Bate-pilão.//Chega a noite./Toda a noite/Bate-pilão.//Quando há velório de negro/Bate-pilão.//Negro levado pra cova/Bate-pilão.”

Mas, e Negrinha, que dá nome ao esplendoroso livro de contos do próprio Lobato? Que será dessa narrativa ímpar de nossas letras, se, para retratar os sofrimentos cruéis da personagem, inicia-se com uma descrição impiedosa da criança?: “Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre es-condida, que a patroa não gostava de crianças.” Todo ele expeliria preconceitos em todas as direções, inclusive contra brancos, igreja, solteirice? Deveria ser banido da literatura por estilar ironia e sátira em todas as letras e palavras? E a inimitável trilogia de Antônio Olinto, seria visto nela algum tipo de preconceito contra os iorubás, por causa dos mitos e ritos sabiamente cristalizados em um processo intercultural singular?

O fato de os ex-escravos e seus descendentes, ao voltarem para a África, terem de descer nus, ou enrolados em lençóis, como ocorre em A casa da água, não seria um tipo de constrangimento e de racismo imposto pelos próprios patriotas? E centenas de outras criações de nossa literatura que cristalizam verdades de humano, de história e de cul-tura que tem como personagens negros, índios, jagunços, favelados, garimpeiros?... Só se pode calar se se puder falar! Lobato, como os tempos mudaram, para pior! Querem calar-te! Querem cassar o Pedrinho! Como os professores estão analfabetos, meu caro! Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, se eu deliro... ou se é verdade tanto preconceito inútil perante os céus! Cálice!


*José Fernandes é Doutor em Literatura, Professor aposentado da UFG, Crítico Literário e Membro da Academia Goiana de Letras.


Fonte: União Brasileira de Escritores - Seção Goiás

Imagem retirada da Internet: Monteiro Lobato

Francisco Perna Filho - Poema

Singeleza



Uma melodia, assim tarde,

nervosa como a chuva fina,

trilhando em teus olhos, menina,

a delicadeza do véu

a cobrir teu olhar,

tarde e madrugada,

nas cores do teu abraço,

nos traços dos teus dedos.


Uma melodia diferente,

assim tinta, assim tela,

maravilhando em singeleza,

remédio para o meu quebranto,

quando caio,

quando quedo,

quando fico,

fico,

fico,

assim nervoso,

pinto outro universo.


Uma melodia

em sons de cordas,

de jazz e afro reggae,

de cachoeira

e mata,

que me mata,

que desata os cadarços do sapato

na larga avenida do teu sorriso, menina,

que trespassa sonhos,

quereres,

viagens,

beijos,


Uma melodia,

que se desdobra em sino,

em canto de passarinho,

em número de identidade.

Entidade,

que me mata,

Vanessa.



Imagem retirada da Internet: Vanessa

Edmar Guimarães - Poema




IMOTIVO




Sem motivo algum para o poema.
O dia sobre o chão como folha esmagada.
O jornal atirado por cima do muro.
Monturos de palavras, ossos dos dias
num museu de momentos constantes.
A noite passou chorando
pelo silêncio da sala.
Há lágrimas no canto da janela
de luz ligeira.
E as pupilas iluminadas com que se vê
A chuva pingando, da noite de ontem,
Que é cegueira extrema.
E ainda
... nenhum motivo para o poema.


Imagem retirada da Internet: papel amassado


Alexandre Bonafim - Poema


Celebração das marés


“Longe o marinheiro tem
Uma serena praia de mãos puras”

Sophia de Mello Breyner Andresen

IV



Do cerne dos oceanos, do fecundo ventre da noite,

nasce seu peito tatuado pela força das âncoras,

pela fúria dos cavalos marinhos.

Sua pátria sempre foi os relâmpagos,

o sal, o trêmulo pergaminho dos vendavais.

Há milênios ele se perdeu de toda terra.

Há séculos seu andar tem a leveza

das quilhas sobre as ondas,

das velas despidas pelo sal.

Por isso seu destino sempre se quebrou contra as marés,

contra a amplidão das águas sem nome.

Por isso seu barco sempre se partiu contra o infinito,

contra o nascimento do mundo.

O marinheiro mora em antigas tempestades.

De tanto queimar o rosto nas ondas,

seus olhos vestiram o êxtase dos cardumes cegos,

dos corais inundados de luz.

De longe, de muito longe ele vem...

Uma cicatriz corta-lhe o rosto:

relâmpago, ninho de enguias.

Uma cicatriz corta-lha a vida,

o coração, o seu destino inteiro:

faca de fina luz a singrar

os sonhos, a inocência.

Desertos sedentos, sequidão de ossos,

ardem seu cerne, corroem seus desejos.

Por isso a errância é sua campa, seu jazigo.

Por isso lugar nenhum é seu túmulo.

A vida espoca em suas vísceras,

com a lucidez dos ácidos agudos.

A vida é-lhe a urgência do salto,

do grito das águas, do urro das ondas.

De longe, de muito longe ele vem...

Ele teve o braço quebrado pelas chuvas,

a boca cinzelada pelas maresias.

Todo o oceano adormece em suas pálpebras.

Todas as procelas pousam em seus pulsos.

Ele tem o dom das luas cheias,

o estigma das constelações desnudas.

Do fecundo ventre dos oceanos, do cerne da noite,

nasce seu sêmen fustigado pela violência dos astros,

pela febre das estrelas marinhas.

Nos seus flancos veleiros ardem os pontos cardeais,

a embriaguez das gaivotas consumidas pelo azul.

Por isso sua pele sempre se desnuda nos nascimentos,

nas celebrações súbitas.

Por isso seu corpo sempre se nomeia no orgasmo das rebentações,

na ardências das águas vivas.

De longe, de muito longe ele vem...

As fatalidades navegam em seus ombros.

Os desastres apunhalam seu nome.

Toda a sua luta sempre foi fitar a morte de frente,

como quem acalanta um criança jamais nascida.

De longe, de muito longe ele vem...


Imagem retirada da Internet:arpão

Affonso Romano de Sant'Anna - Poema


Amar a Morte




Amar de peito aberto a morte.
Não de esguelha, de frente.
Amar a morte,
digamos,
despudoradamente.

Amá-la como se ama
uma bela mulher
e inteligente.Amá-la
diariamente
sabendo que por mais
que a amemos
ela se deitará
com uns e outros
indiferente.



Imagem retirada da Internet: meu aconchego

Manuel Bandeira - Poema


Consoada


Quando a Indesejada das gentes chegar
(não sei se dura ou caroável)
Talvez eu tenha medo
talvez sorria ou diga:

- Alô, iniludível!

O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(a noite com seus sortilégios).
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
a mesa posta,
com cada coisa em seu lugar.


In. BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1974, p. 307.
Imagem retirada da Internet: Jblog

Brasigóis Felício - Ensaio crítico



Diário da Noite





“Enquanto despertava nossas sombras descobriu o significado de si mesma”. Assim escreveu Clarice Lispector, viajante da noite de sua angústia estranha, sobre a vertigem de beirar abismos, em que se compraz certa categoria de artistas. Às vezes é preciso beirar abismos, sobreviver a terríveis perigos, para conhecer o lado vertiginoso da alma. Só então, esquecendo, depois de abandonar os cacos do passado, sem pensar em perdas e danos, tomamos a trilha incerta — o que é promessa de perigos, mas abertura a possibilidades.

No dizer do poeta Vicente Huidobro: “O mundo cambaleia/quando de meu passado recebo/aquilo de que preciso/para viver nas profundezas de mim mesmo/”.

Tão estrategista é o ego, que quando pensamos poder vencê-lo um dia, é ele que pensa isto — e em sua esperteza nos engana, a sugerir que venha a sabotar a si próprio. O pensamento é seu costumeiro disfarce, que utiliza, para nos fazer enganar a nós mesmos.

Eckart Toole assinala: “Um dia vou me libertar do ego. Quem está falando? O ego. Libertar-se dele é verdadeiramente um grande trabalho. Mas pode ser uma tarefa pequena. Basta estarmos conscientes de nossos pensamentos e de nossas emoções, à medida em que vão surgindo. Não se trata de fazer, e sim de ver com atenção. Neste sentido, é verdade que nada podemos fazer para nos libertar do ego. Quando essa mudança acontece, ou seja, quando passamos do pensamento para a consciência, uma inteligência muito maior do que a esperteza começa a agir em nossa vida”.

*

Sendo, em sua vaidosura descomunal, um peru grugulejante, metido a poetastro de província, pediu licença para “usar da palavra” roufenha, feito taquara rachada, no quintal do poetariado. Queria grugulejar sozinho, apaixonado que sempre foi por escutar sua própria voz — tão estrondosamente ruidosa que desmancha roda de bêbados.

*

No Brasil os artistas e escritores estão mal acostumados a viver e a serem tratados como artistas da fome. Convidados a atuar ou a dar palestras nos mais distantes lugares, vão para “dar” mesmo, uma vez que jamais lhe perguntam o preço de seu trabalho. É como se só vivessem para almoçar ou jantar, como o comedor de gilette, da sátira de Ary Toledo: “Decente, deixa eu cume uma giletezinha, pra vancê vê! Que eu num cumi nadinha inda hoje!”.

Como eternos artistas da fome, não temos direito a dar o preço de nosso trabalho, em um mercado onde tudo se compra, menos o produto dos artífices do verso, como já verberava Brecht. Mas sempre chega o tempo da decadência, em que nem para trabalhar de graça são os bardos do poetariado (membros do lumpenzinato cronificado) são solicitados.

Alguns, caídos nas graças de governos, após anos de conformismo e cumplicidade, em que tiveram que atuar como obedientes serviçais, chegam a receber homenagens “em palácio”. Se tivessem brio na cara, e percebessem a mancada, perguntariam, como sugeriu Bertolt, o dramaturgo poeta: “Onde foi que errei?”. Para alguns “gênios da raça” as glórias, por frias, já chegam tarde. Outros vivem de cavá-las como podem, em todos os Estados da federação, onde detêm e manobram ligadas de serviçais compadres ou comadres.


A maioria, porém, soterrada pelo esquecimento, não deixa a mínima lembrança de haver existido. Nas praças não deixarão nomes, nem serão estátuas onde pássaros farão titica. Deles se saberá que passaram, como tudo passa. Por efêmeros instantes, como o passageiro deslumbramento de fogos de artifício, refulgirão no oceano da imbecilização das consciências e em mares de novas e triunfantes mediocridades.


Brasigóis Felício é Poeta, Membro da Academia Goiana de Letras.

Imagem retirada da Internet: noturno

Fagundes Varela - Poema


O VIZIR



- Não derribes meus cedros! murmurava
O gênio da floresta aparecendo
Adiante de um vizir, senão eu juro
Punir-te rijamente! E no entanto
O vizir derribou a santa selva!
Alguns anos depois foi condenado
Ao cutelo do algoz. Quando encostava
A cabeça febril no duro cepo,
Recuou aterrado: - "Eternos deuses!
Este cepo é de cedro!" E sobre a terra
A cabeça rolou banhada em sangue!


Imagem retirada da Internet: Vizir

Fagundes Varela - Poeta


DEIXA-ME!




Quando cansado da vigília insana
Declino a fronte num dormir profundo,
Por que teu nome vem ferir-me o ouvido,
Lembrar-me o tempo que passei no mundo?

Por que teu vulto se levanta airoso,
Tremente em ânsias de volúpia infinda?
E as formas nuas, e ofegante o seio,
No meu retiro vens tentar-me ainda?

Por que me falas de venturas longas,
Por que me apontas um porvir de amores?
E o lume pedes à fogueira extinta,
Doces perfumes a polutas flores?

Não basta ainda essa existência escura,
Página treda que a teus pés compus?
Nem essas fundas, perenais angústias,
Dias sem crenças e serões sem luz?

Não basta o quadro de meus verdes anos
Manchado e roto, abandonado ao pó?
Nem este exílio, do rumor no centro,
Onde pranteio desprezado e só?

Ah! não me lembres do passado as cenas,
Nem essa jura desprendida a esmo!
Guardaste a tua? a quantos outros, dize,
A quantos outros não fizeste o mesmo?

A quantos outros, inda os lábios quentes
De ardentes beijos que eu te dera então,
Não apertaste no vazio seio
Entre promessas de eternal paixão?
Oh! fui um doido que segui teus passos,
Que dei-te em versos de beleza a palma;
Mas tudo foi-se, e esse passado negro
Por que sem pena me despertas n'alma?

Deixa-me agora repousar tranqüilo,
Deixa-me agora dormitar em paz,
E com teus risos de infernal encanto
Em meu retiro não me tentes mais!


Imagem retirada da Internet: Lira

Oswald de Andrade - Poema

Canto de Regresso à Patria



Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os pássaros daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo



Imagem retirada da Internet: Rua XV

Célio Pedreira - Poema









ENXURRADA



Venho admitir a vida
pelos flancos
confidenciar-lhe os bueiros
renascer em grotas
jorros explicítos
misturando
jardins e monturos
desobedecendo o vasto
para juntar
estreitar com força
as águas que descabem
nossas recônditas tempestades


Imagem retirada da Internet: Capri

Valdivino Braz - Poema


O MAR E OS LOBOS DO MAR



Por Valdivino Braz*




As gaivotas


De sol e nuvens, um céu de ouro e sangue, o arrebol do entardecer. Os pios melancólicos, de solitárias gaivotas, sobrevoando as carcaças dos barcos. Parecem dizer que o tempo a tudo trespassa, e tudo se esgota. Parecem gritos de alerta, que o dia cessa e se aproxima a hora escura. Parecem avisar que ali vêm as sombras a cobrir o mundo e fechar as portas. Parecem deduzir que vão cerrar-se as cortinas dos quartos, que vem a noite por cima estender-se e cobrir a nudez dos corpos. Parecem gritar que a hora é essa, que a vida é só essa, não há outra. Parece que a vida vai sair pela porta dos fundos, o coração a saltar pela boca. Gritam as gaivotas, e serão outras ao amanhecer, com o mar a derramar-se de peixes mortos. Na manhã do mar profundo, com as mortes do mundo.


Rostos na penumbra


Curtidos pelo sol e o sal, escondidos na penumbra de âmbar dos copos de rum, os velhos estão lá, nos fundos tristonhos do BARco. Olhando o vazio através da névoa que lhes turva o olhar, deles há que lacrimejam e não se pejam de chorar. Estão lá, os lobos do mar, como se esquecidos. À margem da vida de aventuras e de outrora, arrebóis de auroras, azuis os olhos do céu. Cinzento, agora, o tempo que se foi, envolto em véus. A desoras, à luz do lampião — mais ao fundo e mais sombrio, onde finda o estabelecimento —, apenas um encontra-se lá, com o copo vazio de seus dias, seu vidro de solidão. Soturno pescador, memória e melancolia, noturno seria o seu cantar — não fosse a sonolência do silêncio —, até um novo dia raiar e, redivivo, do oblívio, o homem se erguer.


O velho e o mar


O velho Santiago, dentro da noite, entre os lampiões e os tonéis de rum do bar, soma o que se lhe dá de somar: oitenta e quatro dias sem sorte, peixe nenhum se lhe dá. Deixar-se ali ficar, dormir e descansar sobre o balcão, ou debruçar-se sobre a mesa, antes que a morte lhe seja barco e abrigo, velho veleiro de velhos aventureiros. Farol para onde, a vítrea luz de um lampião, irmão de outros lampiões, pendurados nos mastros de sustentação do BARco? Navegar é sonhar, atravessar a noite da morte, sobrepor-se ao cansaço, superar seus próprios limites, vencer o desafio dos moços, mostrar-se ainda forte. Fisgar o maior dos espadartes, lutar em vão com os tubarões e exibir os ossos, o troféu de seus destroços: preso ao longo do barco, o esqueleto do peixe de cinco metros!


O BARco


O pequeno barco à vela, do velho Santiago, nada mais que um palito, comparado ao porte, prumo e proa do “Pequod”, navio do obstinado, frio e arrogante capitão Ahab, em perseguição a Moby Dick, o cachalote da morte, que o levou a pique, como se conta pela escrita de um gigante Hermann Melville.Um gosto de bile, sob o sol de verão, nas bocas velhas dos homens de rostos riscados pelos vincos da pele. Os olhos insones, obnubilados pelo serão dos bebedores de rum, no enfumaçado salão do Poseidon, o BARco. Soalho coberto de serragem, manchas de salsugem nas paredes encardidas, ferrugem comendo as emendas e o ferro dos suportes: este o palco em que se contam bravatas, histórias de piratas, de luta, paixão e morte, azar e sorte.

A quem se aproxima e olha de esguelha, ofuscado pela intensa luz solar, ou, tomado por delírios, vislumbra-lhe as formas difusas na bruma, de modo vário o BARco se avulta em suas estranhas instalações. Visto de frente ou pelos flancos, tomado-lhe o todo pelo costado e o rabo, a cinzenta estrutura, consoante o ponto de vista, se assemelha a uma velha caravela, ao casco de um grande barco arruinado e ali adernado, à carcaça de uma gigantesca lagosta, a um enorme escaravelho-escorpião. De toda forma, miragem ao sol, alucinação na bruma ou na meia escuridão, o “barco bêbado” — como também é chamado —, e com o vento a soprar, meio que balança e range em seu madeirame, parece até que se põe mesmo a dançar, como dançam os barcos nas altas ondas do mar.

Lá dentro, nas soturnas entranhas do recinto — ou cá na porta, já não importa o lugar, se fora ou dentro, o tempo a passar —, os velhos contam o que lembram e riem do que contam, tanto quanto lamentam. Então se esgotam, quedam-se em si e no silêncio. Ficam ali, com o seus ares de cansaço; os olhares perdidos no mar imenso das distâncias, buscando outros mares. Vidas arruinadas, a bordo do Poseidon — o mesmo BARco —, onde os homens se embriagam e naufragam. Vidas destroçadas pelas águas, ancoradas em fundos de bar, varridas para os cantos do mundo, como as rolhas de cortiça do rum e as folhas de verão caídas das sete-copas, agitadas pelo vento lá fora.

Alguém começa, em voz baixa — como quem balança um berço e acalenta a criança —, uma cantiga de roda, dessas de se pôr a lembrar de amor de mãe, ou duma outra mulher, e todos se põem a cantar e a beber o rum que os aquece. Vão indo e um pouco se animam. Gemidos do vento, no entanto, ao anoitecer, parece de mulher a chorar. “Como pode o peixe vivo viver fora da água fria? Como poderei viver sem a tua companhia?” Assim a cantiga do marinheiro Juscelino, e com ele os companheiros. Assim também indagaria, diante do mar, se ali na praia houvesse, por mal de amor, a mulher sozinha, a chorar.


Os homens no BARco


Os homens envelhecem no bar, bebendo as palavras salobras da noite e cuspindo o zinabre corrosivo do tédio. Na longa travessia das horas, destiladas pelos copos, sabem o cansaço dos corpos, os vincos nas faces vulneráveis e a vida moída pela mó do inexorável. Sabem nesta hora o íntimo silêncio em que os gestos se anulam, os olhos no vazio vagam, e cada homem diz a si mesmo coisas uns aos outros indizíveis. Sabem agora a solidão sozinha do lobo ferido no ermo do mundo, e os inevitáveis borrões vermelhos da sangria própria do que é vivo e dói. E morrem os homens, à mesa do bar, barco de náufragos no mar de espuma da última cerveja.


O mapa do tesouro


“Ah, todo cais é uma solidão de pedra!”, diz alguém a suspirar. A voz é de Fernando, o bardo português, por ali a passar, por ali o lugar de tudo passar. Os braços do mar, com seus látegos de água agitada, batendo nas rochas da costa arqueada. Água laminando pedra, pedra bebendo água pelas locas de suas bocas. Açoites do vento recortam os penhascos e agitam as palmeiras da noite. Sussurros no escuro, uivos, gemidos agoniados, parece que alguém lá fora chamando, chamando, chamando. E assim vão partindo os lobos do mar, crepusculares e noturnos, assim como tem sido o ar que se respira, a fios de ouro fino o tesouro perdido, assim o tecido da vida, assim o mapa amarfanhado nos rostos envelhecidos, e assim o destino desconhecido.



A Linha de sombra

(Rito de passagem)


Ó tempo frio, de homens sombrios! O navio pirata da morte estende por mortalha o seu negro estandarte, e ali a sinistra caveira, sobre as tíbias cruzadas em X, marco de vidas riscadas do mapa, a golpes de espada. A galope das águas as éguas de Netuno. Ó nau sem rumo! Longe, soa um sino. Dim, dom, dim, dom, dim, dom! Ressoa o bronze pelos confins da terra e do mar. Por quem os sinos dobram, John Donne? Por toda a humanidade. “A morte de cada homem diminui-me, por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.”


Lá se vai o corpo

do Lobo Larsen

Há tempos já vieram de partir, pela ordem, os velhos navegadores Hermann Melville, Robert Louis Stevenson, Jack London, Joseph Conrad, Ernest Hemingway, William Somerset Maugham e muitos outros. O pai de Hemingway, o médico Clarence Edmonds Hemingway, suicidou-se aos 28 anos de idade, em seu consultório, com a velha pistola Smith & Wesson do avô. Trinta anos depois, o filho seguia-lhe os passos. Acordou muito cedo, silenciosamente deixou o leito e ali a esposa Mary a dormir, dirigiu-se à sala de armas, pegou sua espingarda de caçar pombos, enfiou o cano duplo na boca e disparou.


Lá se vai o morto

Lobo Larsen


Primitivo, violento, cruel, amoral, levado por seus instintos, comandava o seu navio “Ghost” — com nome de “Fantasma”, o navio de caçar focas — e via a vida de forma nua e crua. O homem nada mais que fermento, ossos, músculos e nervos. A legenda de Lobo Larsen era a lei do mais forte, muito ao contrário do intelectual Van Weyden, que também viajava no “Ghost” e com o “lobo” travava confronto. A luz do intelecto no coração das trevas. Ideologias. Marx, Darwin e Nietzsche, cada qual a bicar o seu alpiste. Abissal e soberba luta entre o bem e o mal. “O homem é o lobo do homem” — Thomas Hobbes ainda hoje emerge e se avulta com as ondas do mar e o Leviatã estatal.


Lá se foi

o Lobo Larsen


Foi-se o morto. Aonde vai toda arrogância do mundo? Linha de sombra, rito de passagem, a experiência-limite de um extremo a outro. Inexperientes homens ao mar, marinheiros de primeira viagem, sem saber como partir — a população moribunda, e sem ventos pra navegar —, é ficar sem sair do lugar, é partir pra não chegar, se perder e não se achar, não mais ter como voltar. Se não assim também a nau do mundo, se não assim o barco insensato, se não assim o peixe morto.


Nau dos insensatos

De ouro e sol, o arrebol do amanhecer. “Matina”, o nome do poema. Filigrana, fina epifania de luz e harmonia. Ilumina-se, deslumbra-se de imenso o poeta Giuseppe Ungaretti, de passagem por ali. Por onde passa um, pássaros todos os poetas. Gritam, alvoraçadas, as gaivotas, peregrinas perseguindo os barcos abarrotados de peixes, muitos ainda se debatendo em meio a tantos, de há muito mortos. Se não também assim os homens, perplexos no barco de espantos, no porto do tempo. Se não assim a humanidade, a nau dos insensatos, como se conta no livro de Katherine Anne Porter. Os homens no mesmo barco, o mundo feito nau à deriva, todos a bordo, perturbados; não sabem e não se importam pra que lado estão indo.

Manhã do octagésimo quinto dia

Gritam as gaivotas. Gritam na praia os meninos. Ladra o sabujo de nome Marujo. O vento agita a cabeleira das palmeiras. A maresia traz um cheiro de piche. Oitenta e quatro dias sem fisgar um peixe. De um passado de vitórias, agora um pescador privado de boa vida — vive num casebre, dorme no solo duro, sobre jornais amontoados —, Santiago acorda. É logo que pega seu barco e se joga no mar aberto de Cuba. De partida naquele dia, acena para seu amigo, o menino Manolín, que dele se condoeu e lhe deu de presente uma fisga. Quem sabe seja hoje a pescaria bem-sucedida. Se não assim também a vida.

Assim falava Lobo Larsen


"A vida é como um fermento, uma levedura que se move por um minuto, uma hora, um ano, um século, um milênio, mas que por fim terá paralisados os movimentos. Para manter-se em movimento, o grande come o pequeno. Para manter-se forte, o forte come o fraco. O que tem sorte prolonga o seu movimento por mais tempo — eis tudo."

*

Nota do Autor: Tomados de empréstimo, os títulos “O velho e o mar”, “Nau dos insensatos” e “A Linha de sombra” são, respectivamente, de Ernest Hemingway, Katherine Anne Porter e Joseph Conrad. Robert Louis Stevenson, citado no poema, escreveu “Nos mares do Sul” e “A ilha do tesouro”, entre outros, inclusive o clássico “O médico e o monstro”. Contos de William Somerset Maugham intitulam-se como “Histórias dos Mares do Sul”. Lobo Larsen é personagem do romance “O lobo do mar”, de Jack London. “O coração das trevas”, referido em meu texto, intitula romance de Conrad. O poemeto “Matina”, também referido, é uma epifânica e pequena obra-prima de Giuseppe Ungaretti, poeta italiano, nascido no Egito. O aludido poeta Fernando, outro não é senão Fernando Pessoa. O velho Santiago, muitos sabem, é personagem de Hemingway (“O velho e o mar”). A frase contendo “por quem os sinos dobram” é do poeta inglês John Donne e foi referência para Hemingway no título homônimo de seu romance “Por quem os sinos dobram”. A estrofe de canção alusiva ao peixe vivo e o pescador de nome Juscelino lembram o ex-presidente Juscelino Kubitschek (“in memoriam”), que governou o Brasil no período de 1956-1960 e apreciava a canção. “O barco bêbado”, belo poema de Arthur Rimbaud, serviu-me na configuração fantástica do BARco. “Enquanto agonizo”, por mim utilizado, é título de romance de William Faulkner. Ainda recente (verde, ainda), o poema “O mar e os lobos do mar”, em linha corrida (prosa poética) ou direta (sem a quebra de versos), foi escrito entre 8 e 13 de setembro deste ano (2010) e publicado em livro como “Os velhos lobos do mar”, onde o termo “velhos” é uma redundância, pois lobo do mar já significa velho e experiente marinheiro. Daí o novo (talvez provisório) título: “O mar e os lobos do mar”.


*Valdivino Braz é um dos maiores nomes da Poesia brasileira contemporânea. Nasceu em Buriti Alegre (GO), em 23 de novembro de 1942. Filho de Valdemar Alves Ferreira e Sebastiana Braz da Silva. Fez o curso primário no Grupo Escolar Coronel José Teófilo Carneiro, em Uberlândia, MG. Supletivo nos institutos Dom Abel e Rio Branco, em Goiânia. Formado em Jornalismo pela UFG (1984). É membro da União Brasileira de Escritores de Goiás. Possui várias premiações literárias, entre elas, o 1º prêmio no Concurso de Literatura José Décio Filho, Goiânia, 1985; Concurso Literário Departamento Estadual de Cultura/SESC – 1º lugar, 1972; 1º Festival “Travessia” de Poesia Falada, Goiânia, 1984; Prêmio José Décio Filho, 1985, com Tessitura do Ser; Prêmio Hugo de Carvalho Ramos, 1988, com Arabescos num chão de giz; Prêmio Cora Coralina (1990), com As lâminas de Zarb; Prêmio Nacional Cidade de Belo Horizonte, 1992, com A trompa de Falópio; Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, 2002, com Poema da terra perdida. "O Gado de Deus", com menção honrosa no Paraná. Em 1997, recebeu da União Brasileira de Escritores/Goiás o troféu Tiokô de Poesia, e, em 2004, o Troféu Goyazes de Poesia Leodegária de Jesus, conferido pela Academia Goiana de Letras (AGL).


Imagem retirada da Internet: Lobo do Mar

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