MEMÓRIA - Entrevista com o Poeta Ruy Espinheira Filho


“Uma poesia sem lirismo não passa de artesanato”



Com a morte de Carlos Drummond de Andrade, a poesia brasileira passou a ser dominada pela figura de João Cabral de Mello Neto. O coração racionalista de Drummond deu lugar à educação pela pedra de Cabral. E a crítica, influenciada pelo concretismo dos irmãos Campos, sempre privilegiou o João Cabral do verso seco, plástico, ao João Cabral de Morte e Vida Severina, um dos mais pungentes libelos da literatura brasileira. O próprio João Cabral acabou estimulando essa preferência.

Ao contrário de João Cabral, o poeta baiano Rui Espinheira Filho não tem medo do lirismo. Ele sustenta que poesia sem lirismo não é poesia, mas artesanato. Autor do livro de poesia Memória da Chuva, que foi adotado no vestibular da Universidade Federal de Goiás, Rui Espinheira Filho é jornalista e ensaísta, além de poeta. Como ensaísta publicou Forma e Alumbramento: Poética e Poesia em Manuel Bandeira (José Olympio Editora, 238 páginas, 33 reais), e Tumulto de Amor e Outros Tumultos (Editora Record, 368 páginas, 41,90 reais). A Editora Record também acaba de lançar sua Poesia Reunida e Inéditos (320 páginas, 40,90 reais).

Nesta entrevista concedida ao Opção Cultural e à revista eletrônica Bula (www.revistabula.com), o escritor Rui Espinheira Filho fala da literatura em geral e de sua obra em particular. Revela os meandros de sua relação com a palavra e defende a emoção na poesia. Participam da entrevista os escritores Carlos William, Francisco Perna, João Aquino e Sinésio Dioliveira.



Francisco Perna Filho — Numa entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão, em 1990, o sr. disse: “Ser escritor vivendo no Nordeste não é brincadeira. Digo vivendo porque, ao contrário de muitos, nunca saí da Bahia. Se para autores do eixo Rio-São Paulo é difícil, pois sei que é, imagine para quem vive fora do principal circuito literário — sem contatos, sem editoras, sem divulgação”. A Internet mudou essa realidade?

Ruy Espinheira Filho — A Internet aproximou todo mundo, é claro. E facilitou muito para o escritor, porque acabou com a necessidade de se ficar tirando cópias para enviar ao editor: hoje falamos por correio eletrônico, através dele enviamos livros de poemas, romances etc. Como também recebemos rapidamente recusas de publicação... E há ainda a vasta divulgação de revistas como a própria revista Bula. Não há dúvida: a Internet expõe autor e obra como nunca se viu antes. Acho tudo isso muito positivo, apesar das muitas tolices que às vezes nos assaltam o monitor...

João Aquino Batista — Em Tumulto de Amor e Outros Tumultos: Criação e Arte em Mário de Andrade, você quer “repor em discussão o pensador Mário de Andrade”. O seu objetivo foi alcançado? Mário de Andrade tem o reconhecimento que merece?

Ruy Espinheira Filho — Acho que os que leram meu livro tiveram uma boa surpresa, pois o pensador Mário de Andrade é admirável. Ele tem, em certas áreas, o reconhecimento que merece, mas precisa ser bem mais divulgado, pois o conhecimento das suas idéias nos enriquece muito — e nos livra (sobretudo os poetas) de embarcar em canoas furadas de modas formalistas que não passam de outros parnasianismos — como a Geração de 45, o concretismo, a poesia práxis e que tais. Ler Mário de Andrade é se vacinar contra essas pobrezas.

Carlos Willian Leite — Quem é o grande crítico brasileiro em sua opinião?

Ruy Espinheira Filho — Quem é o grande crítico brasileiro? Tivemos muitos de alta categoria, como o próprio Mário, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Sérgio Milliet. Hoje, há o Antonio Candido, o Wilson Martins, o Alfredo Bosi, entre outros. Na nova geração, eu destacaria Miguel Sanches Neto, que tem ainda a vantagem de ser também poeta, contista e romancista. Vantagem porque — como já dizia o Mário, com o qual concordam Candido e Bosi — o melhor crítico é o artista, porque faz sua crítica de dentro.

Carlos Willian Leite — E o grande poeta?

Ruy Espinheira Filho — O grande poeta? Acho que não há um que seja absoluto. Drummond é grande por certos momentos, noutros momentos Bandeira é maior, noutros é Jorge de Lima, Cecília, João Cabral... Mas às vezes eu prefiro ler os sonetos de Mario Quintana e de Carlos Pena Filho — ou autores de hoje, que prefiro não citar para não provocar ciúmes...

João Aquino Batista — Você é avesso aos concretistas e outras tendências poéticas do gênero. No fazer literário do Brasil, atualmente, dá para perceber a gestação ou a consolidação de alguma tendência que possa durar?

Ruy Espinheira Filho — O que pode durar não é nenhuma tendência — mas a qualidade. Ficamos buscando modismos, fazendo truquezinhos, projetando escolinhas — esquecidos de que a poesia é arte, isto é, expressão da alma humana. Lemos Homero, Dante e Shakespeare, por exemplo, porque eles falam da nossa condição, nós nos reconhecemos neles. Era por isso que Mário dizia ser Homero e Dante poetas modernos. E são mesmo. Acusaram Bandeira de ser poeta insignificante por ser muito subjetivo. Ora, pergunto eu: que arte não é subjetiva? Que artista não fala de si mesmo? Até João Cabral, com suas conhecidas idiossincrasias, acabou reconhecendo que, tentando falar das coisas, falava mesmo era de si próprio. Abordo tais assuntos tanto no livro sobre o Mário, Tumulto de Amor e Outros Tumultos (Record, 2001), quanto no que publiquei sobre Bandeira — Forma e Alumbramento: Poética e Poesia em Manuel Bandeira (José Olympio/ABL, 2004). Enfim, o artista cria — com o que ele é. Se não for grande coisa, aí vai ser concretista, construtivista etc... Quer dizer: se revelará não-artista, não-poeta.

Francisco Perna Filho — Em 1988, o seu livro Memória da Chuva, Prêmio Ribeiro Couto, da UBE, foi adotado no vestibular da Universidade Federal de Goiás. Qual foi a importância dessa adoção para o sr.? A partir daí, mudou alguma coisa na sua literatura?

Ruy Espinheira Filho — A adoção de Memória da Chuva como leitura para o vestibular da Universidade Federal de Goiás foi uma grata surpresa. Isto fez com que as vendas disparassem e ele chegasse logo à terceira edição. Aliás, Memória da Chuva é um dos meus livros mais aventurosos e venturosos. Foi editado pela dedicação do Alexei Bueno, a quem eu não conhecia pessoalmente. Não fosse ele, não sairia das oficinas da Nova Fronteira. Nem mesmo teria ido para lá, pois só o enviei a pedido do Alexei, que trabalhava na Nova Fronteira como editor. E não foi fácil, ele brigou muito pelo livro. E repito: nem nos conhecíamos pessoalmente, só através de cartas e trocas de publicações. Além da adoção universitária, Memória da Chuva concorreu com mais de 400 livros de poemas e acabou entre os três finalistas do Prêmio Nestlé, em 1997. Também foi finalista do Jabuti, no mesmo ano. Foi também esse livro que fez com que o romancista Antônio Torres achasse que eu já estava na hora de ter uma editora grande — e me apresentou a Luciana Villas-Boas, da Record. Pouco tempo depois saía pela Record minha poesia reunida (que fora incluída num programa da Biblioteca Nacional, graças aos bons serviços de amigos como o Ivan Junqueira), como viria a sair o livro sobre Mário. Com tais publicações, é claro que me tornei mais conhecido. Agora está saindo um volume intitulado Elegia de Agosto e Outros Poemas, pela Bertrand Brasil, devendo ser lançado na Bienal do Rio, em maio. São composições escritas entre 1996 e 2004.

Francisco Perna Filho — Depois de Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud, pode se falar em originalidade em poesia?

Ruy Espinheira Filho — Claro que se pode falar em originalidade após Rimbaud! Afinal, originalidade é questão de qualidade. O artista — o que merece este nome — é sempre original. E a originalidade absoluta não existe: apenas pegamos a herança da tradição e procuramos dar a ela nossa colaboração. Os que procuram ser originais a todo custo não perceberam que não se pode fazer mais do que isso. Afinal como diz o Eclesiastes, não há nada de novo sob o sol... Em essência, não há mesmo. Mas o homem continua criando e, assim, consegue insuflar na vida algo de sua originalidade de indivíduo. Depois de Rimbaud tivemos muita gente “original” — como Yeats, Eliot, Fernando Pessoa, Auden, Bandeira, Drummond, para só ficarmos nestes.

Francisco Perna Filho — O senhor por tem uma profunda formação humanística: é jornalista, mestre em ciências sociais e doutor em literatura. Partindo dessa formação, qual a leitura que faz da obra de Afonso Henriques de Lima Barreto (prosa) e João da Cruz e Sousa (poesia)?

Rui Espinheira Filho — Lima Barreto foi um dos autores que deixaram claro não ter a literatura nada a ver com aquele “sorriso da sociedade” do Afrânio Peixoto. Ele foi longe na alma humana, criando uma obra densa, sofrida e extremamente crítica. Todos nós lhe devemos muito. Quanto a Cruz e Sousa, sou seu admirador desde a adolescência — e uma das minhas maiores emoções foi receber, em 1981, um prêmio com seu nome — o Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Sousa, de Santa Catarina. A meu ver, Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens foram os únicos grandes poetas da fase que se costuma chamar simbolista. Mas não os vejo presos a fase alguma: são poetas admiráveis em qualquer tempo.Volto a eles constantemente, e sempre com encantamento.

Carlos Willian Leite — Tem acompanhado a produção intelectual universitária?

Ruy Espinheira Filho — Tenho feito algum acompanhamento da produção universitária. Às vezes deparo com um trabalho interessante — como o ensaio Longe Daqui, Aqui Mesmo, de Sérgio de Castro Pinto, sobre a poética de Mário Quintana, obra de muita sensibilidade e na qual o autor desvela a mediocridade da crítica oficial em relação a Quintana. Lembro também Da Inutilidade da Poesia, de Antonio Brasileiro, e João Cabral: A Poesia do Menos, de Antônio Carlos Secchin. De um modo geral, porém, acho os textos universitários bastante chatos, pedantes.

João Aquino Batista — Quais as conseqüências do que você denomina “ecos do parnasianismo”?

Ruy Espinheira Filho — Os tais “ecos do parnasianismo” geraram as vanguardas reacionárias (porque formalistas) que foram a geração de 45, o concretismo e similares. Quero crer que já estão perdendo a força, só subsistindo em alguns bolsões de miséria intelectual e lírica.

Carlos Willian Leite — A angústia à moda de Harold Bloom é inevitável?

Ruy Espinheira Filho — No meu livro sobre Mário eu abordei a tal angústia da influência — mostrando que os poetas brasileiros não costumam sofrer dela, tanto que reconhecem abertamente as influências, confissão que surge às vezes até nos próprios poemas. Drummond diz: “Esses poetas são meus”. Bandeira, nas memórias, escreve que suas influências são incontáveis. Tudo isso sem trauma. O que é compreensível, porque não há ninguém isento de influências.

Francisco Perna Filho — O que é fundamental numa obra literária?

Ruy Espinheira Filho — O fundamental na obra literária é ela própria. A arte não é meio para coisa alguma — é o seu próprio fim. Desta forma, o fundamental é que a arte seja mesmo... arte.

João Aquino Batista — Você admite a influência de vários escritores e poetas. A poesia é isso: uma eterna retomada e reburilada do já feito?

Ruy Espinheira Filho — Sim: o que o artista faz é dar sua colaboração à herança que recebe. Não é refazer: é fazer, utilizando essa herança, trabalhando sobre ela, com ela, porque ninguém faz arte no vazio. Repetindo o poeta, nenhum homem é uma ilha.

Carlos Willian Leite — O senhor disse em entrevista que o lirismo estava renascendo no Brasil. O Affonso Romano de Sant’anna disse que o que existe, são resquícios de um lirismo envergonhado. Quem está com a razão?

Ruy Espinheira Filho — É, há casos de lirismo envergonhado. João Cabral sofria disso, mas acabou sendo um grande poeta lírico. Na maioria das vezes, porém, o que há mesmo é falta de lirismo. Agora, os que são líricos estão exercendo seus talentos. Felizmente, porque poesia sem lirismo é apenas artesanato, não se cumpre, não é poesia.

Sinésio Dioliveira — Se as coisas não tivessem substantivos para nomeá-las, você acha que ainda assim existiriam os poetas?

Ruy Espinheira Filho — A poesia será, simplesmente, a nomeação das coisas? Acho que é mais, bem mais: é expressão da alma humana. De nossa grandezas e vilezas, esperanças e desesperos, da nossa perplexidade diante do mundo e da vida. Não é truquezinho de gabinete: é gemido, é grito, é súplica, é afirmação, é busca de alguma compreensão, de alguma iluminação nas trevas do nosso cotidiano.

Francisco Perna Filho — Fernando Pessoa pronunciou o seguinte: “Quen não vê bem uma palavra, não pode ver bem uma alma”. (A Língua Portuguesa - Companhia das Letras, 1999) O Senhor concorda com ele?

Ruy Espinheira Filho — Fernando Pessoa era um gênio e dizia coisas geniais. Creio que ele tem razão, pois a palavra é caminho. Se somos cegos a ela, não encontramos o caminho - e nos perdemos da alma.

Sinésio Dioliveira — Esse fingimento de que fala o poeta Fernando Pessoa no poema Autopsicografia, você acha que ele está presente em todos os poemas que o poeta faz?

Ruy Espinheira Filho — Esse fingimento pessoano deve ser considerado com cuidado, porque é um fingimento de uma dor que o poeta “deveras sente”. Acontece que a arte não é uma confissão direta, não tem compromisso nem com sinceridade nem com verdade, consideradas moralmente. A verdade da arte é meramente estética. Se a arte é autêntica, ela é verdadeira, é sincera, não importa que “finja” para atingir seus fins. Mesmo porque esse fingimento é apenas um “meio” para o artista expressar sua verdade, sua sinceridade. Enfim, é um falso fingimento, porque, como está dito, a dor que ele finge - “deveras sente”. O problema é que o pessoal costuma citar apenas o primeiro verso do poema - que tem doze. Como já disse, esse “fingimento” é algo especial, não o fingimento da mentira, da adulteração. É o “fingimento” que produz a obra de arte - e, como obra de arte, é verdade pura.

João Aquino Batista — O discurso poético engajado e ideológico tem algum valor literário ou depende muito de quem o faz, aliás, como todo discurso?

Ruy Espinheira Filho — O engajamento pode, sim, produzir obras de valor artístico, como vários poemas políticos de Drummond. Agora, o dado ideológico por si não tem nenhum valor estético. O valor ético não produz valor estético. Como dizia o mesmo Drummond, “de boas intenções não nascem necessariamente bons versos”.

Sinésio Dioliveira — Entre os dois ingredientes razão e emoção, qual deles você acha que ajuda mais na lapidação estética do poema?

Ruy Espinheira Filho — Não há poesia sem emoção. Palavras de Borges: “É sobretudo a emoção que importa”. Mas é claro que poesia é também uma construção, por isso a razão é chamada a participar com seu trabalho de artesanato. Para se fazer um poema, dois fatores têm que atuar: o sopro lírico (a emoção) e a técnica (a razão). Com apenas um desses fatores não se consegue nada.

Carlos Willian Leite — Para quem daria um Nobel de poesia, se ele existisse?

Ruy Espinheira Filho — A quem daria um Nobel de poesia? Confesso não estar agora preparado para tão alta tarefa.

João Aquino Batista — A morte, como a síntese das perdas, o amedronta ou encanta?

Ruy Espinheira Filho — A morte não me encanta nada, não vou gostar de morrer. Mas, como terei de morrer, sou obrigado a conviver com ela, a idéia da morte. Que, aliás, está presente em muitos dos meus poemas - e cada vez mais... Mas também não chego a viver amedrontado com o inevitável: os assombros da vida já tomam quase todo o meu tempo.

Sinésio Dioliveira — A poesia está nas coisas ou no modo de reparar para elas?

Ruy Espinheira Filho — Não houvesse o ser humano, não haveria poesia. Porque os animais, que ainda vivem no paraíso que perdemos, não precisam de arte para enfrentar a vida: eles vivem, apenas. Não precisam de arte, nem de filosofia, nem de deuses, são animais superiores. E, segundo Borges, que citei há pouco, são eternos, pois não têm consciência do tempo sucessivo. Voltando ao princípio: somos nós que pomos poesia no mundo, na vida. E não só os poetas, pois a poesia é um dom de toda a humanidade. Não fosse assim, não haveria poetas - a não ser para escrever para outros poetas. Os poetas são os operários da poesia, os construtores de poemas, mas a sensibilidade poética é da espécie humana.


Imagem retirada da Internet: Ruy Espinheira

Jordanna Duarte - Poema


A música que me toca






Vibra em mim uma música que ecoa desde muito cedo
Que ressoa desde antes, muito antes do caminho aberto

Vibra em mim uma música que preenchia aquelas manhãs
De sol calmo, de jardim amplo, de pés de mangueira

Vibra em mim uma música que aprendeu desde cedo
Como andar pelo caminho pautado
A subir e descer entre espaços e linhas

Vibra.
Como não haveria de vibrar?
Se está em mim
Se não consigo caminhar senão por sons e silêncios.

Vibra em mim uma música
De acordes despontando, abrindo trincheiras de para sempre
Para sempre em mim
Acordando

Ressoa, ecoa, reverbera nos meus cantos
Nos meus silêncios partidos de pausas
Mínimas
Às vezes, agitato, tempo giusto
Mas sempre em mim
Vibrando

Naquele quintal, onde o vento se fazia música
Onde era possível, mesmo antes de conhecer o caminho,
Girar num tempo que já existia desde antes

Naquelas manhãs, descobrindo a feitura da escrita entre as mangueiras
Nas tardes que sonorizavam a solidão
De se descobrir entre intervalos, o preto e o branco do marfim

No prédio de tijolinhos à vista que guardava os segredos
Os medos do vir-a-ser
Naquela cauda imensa que se apresentava para a criança

Nos fins de frases, na necessidade das respirações que incitavam o encontro
O terno reencontro
Entre o que vibrava fora e dentro
Um caminho ondulado, simultâneo, independente de mãos
Que uniam o dentro e o fora de mim
Para sempre em mim
Ressoando
Ecoando o encontro de mim

Como não haveria de vibrar?
Se vibra dentro
Se toca a alma
Se já está desde antes, muito antes do caminho aberto

Hoje, um caminho que me trilha
Que me presenteia
Que vive em mim
Para mim
Dentro de mim


Imagem retirada da Internet: Piano

Sinésio Dioliveira - Crônica



Peixe, perna e poeta



Por Sinésio Dioliveira


Por pouco não me engasguei no sábado passado. E talvez até coisa pior! Não foram as pernas bem lapidadas de uma moça a causa. Ela estava no restaurante onde eu me encontrava acompanhado de dois amigos, nos deliciando com um tucunaré assado. A beleza estonteante da moça não se limitava às pernas, que se destacavam e assim magnetizando muitos olhares (até femininos). Beleza nela era algo abundante. Sua boca, puro abismo de volúpia. Não vi seus olhos, estavam escondidos atrás de um Ray Ban Aviador; talvez fossem “oblíquos e dissimulados”. Vestia uma bata branca e uma bermuda jeans curta com as barras desfiadas, o que lhe dava um ar de rebelde. Interessante que os detalhes dos pés me escaparam... Foi a reação do namorado dessa moça que quase me fez engasgar. Mas, por favor, caro leitor, não se adiante na história e vá tirando conclusões precipitadas quanto a essa reação do namorado.

As pernas da moça me trouxeram o “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade, mais precisamente a parte em que o poeta diz:



"O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.


Elas (que não eram das cores das pernas do poema, mas morenas) me levaram a fazer uma construção diferente: em vez de perguntar, justificá-las: “Ainda bem tantas pernas, meu Deus!” E há também os Perna, sobretudo o filho (o nosso querido Chico Perna), cuja pena traz ao mundo poemas de inundar noss´alma de alegria.

Tomara que Drummond não se revire no caixão. E não é tão-somente pelo aspecto sexual delas que meti bedelho no poema. É muito por isso (e o ministro José Gomes Temporão que o diga após seu conselho medicinal ao combate à hipertensão), mas também pela importância física das pernas, pelo fato de serem nosso meio de locomoção. E há também o lado profissional das pernas. Mas esqueçamos as garotas de programa e pensemos nos garotos da seleção brasileira, que afinal, no jogo de domingo, nos proporcionaram uma alegria de mais qualidade no jogo contra a Costa do Marfim. Foi uma alegria reles a vitória de 2 a 1 sobre norte-coreanos, que perderam de balaiada para os portugueses: 7 a 0.

Já que estamos falando em pernas e o ministro Temporão entrou no assunto, cabe dizer que o presidente Lula, o “garanhão de Garanhuns”, disse sábado último, em Festa Junina na Granja do Torto, que está seguindo a receita do ministro, proporcionando cinco dias picantes à primeira-dama. Uma mentirinha a mais do presidente não faz mal. Ainda mais que ele (certamente torto) estava numa festa onde rola muito quentão e outros birinaites, e tais coisas, conforme o poema, “botam a gente comovido como o diabo.” Essa “alegria carnal” de dona Marisa agora também poderá se estender a outras mulheres, haja vista que a patente do viagra caiu, e isso vai levantar o ânimo de muitos homens que não andam sem pólvora na espoleta e assim fazendo as mulheres roerem unhas ou outra coisa...

Voltando à moça. Ela e o namorado, que bebiam com amigos numa mesa ao lado da minha, iam ao banheiro juntos. Na segunda vez em que foram, aconteceu o sururu: cinco caras, já entupidos de cerveja e assim diabolicamente comovidos, mexeram com ela, que veio do banheiro na frente do namorado. Vendo a investida “sexotroglodítica” dos caras, o namorado apenas encarou-os colericamente. Não se dirigiu à mesa em que estava, mas ao seu carro e voltou ao restaurante com um trabuco debaixo da camiseta. Então pensei: “vai rolar paletó de madeira nesta confusão”. Só que ele (ainda bem) não foi à mesa dos caras, (que engoliram a língua), ficou na calçada chamando-os para briga e dizendo-lhes palavrões de deixar a finada Dercy Gonçalves com vergonha.

Como as caras não reagiram, ele ordenou à namorada se levantasse da mesa (o que ela obedeceu rapidamente) e fosse embora com ele. Minutos depois, quase todas as viaturas da Polícia Militar apareceram no local.


Sinésio Dioliveira é jornalista, professor de português e fotógrafo (oliveirasinesio@gmail.com - http://www.flickr.com/photos/sinesiodioliveira)

CULTURA - DEU NA FOLHA DE SÃO PAULO

Brasília esconde coleção de obras raras de Goethe




Acervo com mais de 6.000 volumes é mantido em ambiente inapropriado



Não há acesso público aos livros, cuja maioria foi editada entre 1780 e 1860; falta climatização e sistema anti-incêndio


LUCAS FERRAZ
DE BRASÍLIA



Em um lugar que faria tremer bibliófilos, uma sala inapropriada e sem acesso público escondida em Brasília, repousa um tesouro. Trata-se de uma rara coleção, talvez a mais importante e completa da América Latina, de obras de e sobre Johann Wolfgang Goethe (1749-1832).

O conjunto de livros, 6.000 volumes ligados ao maior nome da literatura alemã, foi comprado pelo governo brasileiro há quase 40 anos e, desde então, foi pouco ou nada pesquisado.

Análise recente feita por um especialista a pedido do governo alemão atesta que seu estado de conservação é "sofrível". Documentos manuseados pela reportagem, elaborados há quase 30 anos, já relatavam o descaso com a obra.

Repletos de mofo e empilhados de forma desorganizada em uma sala da biblioteca do Ministério da Justiça, os 4.183 títulos da coleção jamais foram tratados.
Os livros, mantidos em ambiente sem climatização e sistemas apropriados contra roubo e incêndio, não estão disponíveis para consulta, segundo a própria responsável pelo acervo.
Autor de obras-primas como "Fausto", Goethe também enveredou por temas díspares como botânica, mineralogia e direito. Suspeita-se que haja na coleção trabalhos sobre essas áreas.
Pouco se sabe sobre os livros -Ministério da Justiça, Instituto Goethe e embaixada alemã em Brasília não souberam responder.

"IMPRESSIONANTE"


O adido cultural da Alemanha, Holger Klitzing, conheceu o acervo, que ele considera "impressionante", após análise feita em 2006 pelo professor Willi Bolle, da USP (Universidade de São Paulo).


"É possivelmente a mais importante biblioteca goethiana na América Latina. Há uma série de edições originais e de capricho estético especial", disse Bolle.


Marcus Mazzari, professor de teoria literária da USP e membro da Associação Goethe do Brasil, diz desconhecer outro acervo tão completo no país.


A maior parte da coleção é formada por livros em alemão gótico seiscentista, além do contemporâneo, e ainda em inglês, francês, italiano, espanhol e português.


Há obras do final do século 17, algumas artesanais e ilustradas a ouro. A maioria, editada entre 1780 e 1860.
"A direção da biblioteca admitiu que as condições para a conservação não eram ideais", relatou Bolle.
Em nota, o Ministério da Justiça contradiz a versão da chefe da biblioteca e afirma que os livros, disponíveis ao público, são submetidos a "técnicas de conservação" e estão em "local adequado".

GERMANÓFILO


A coleção goethiana foi organizada pelo médico e professor carioca Fernando Rodrigues da Silveira, morto em 1970. Germanófilo, ele adquiriu parte dos livros diretamente na Alemanha.


Após a morte de Silveira, sua filha pôs a coleção à venda. A livreira Margarete Cardoso, 69, que atua com obras raras desde 1960, participou da negociação, em 1971, feita pela livraria Kosmus, no Rio.


"O então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, frequentava a livraria e gostou muito dos livros", conta Margarete. O ministério pagou pelos mais de 6.000 volumes Cr$ 80.000, valor que hoje equivaleria a quase R$ 70 mil -o preço real, estimam livreiros, seria muito maior.


Segundo documento interno do ministério, a coleção está subutilizada pelo menos desde 1981. O governo, agora, afirma que vai restaurar tudo até o final de 2011 -talvez fazendo justiça à frase de Goethe: "Também os livros têm sua vivência, que não lhes pode ser subtraída".


Fonte: Folha de São Paulo
Imagem retirada da Internet
Goethe

Joaquim Cardozo - Poema


Elegia para os que ficaram
na sombra do Mar




Noite avançada, muita chuva no mar,
Uivos, latidos de ventos soltos, desesperados,
Vozes rezando de naufragados.
Ouço que estão batendo à minha porta.
São aqueles que vivem na escuridão do mar
São aqueles que moram com a noite no fundo do mar
E com a noite e com a chuva estão batendo à minha porta:
São piratas, são guerreiros,
São soldados que voltavam das Índias,
São frades que iam para o Japão,
São soldados, são guerreiros,
São marinheiros.
São eles que passam levados pelo vento
Ao longo dos mocambos dos pescadores;
São eles que giram como grandes e estranhas mariposas
Em torno do farol.
Sim, são eles que vão a estas horas, voando
Nas asas da chuva e da noite e das ondas do mar.
São soldados, são guerreiros
São marinheiros.

Praia do Farol, Olinda, 1937

In. Página do poeta Joaquim Cardozo
Imagem retirada da Internet: Mar

José Nêumanne Pinto - Crônica


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Do alto do pódio da paz ao baixo calão na guerra




Dunga abre luta contra pronomes e críticos de métodos que adota para treinar seleção nacional


Por José Nêumanne Pinto



É difícil encontrar expressão mais calhorda que a tal da “pátria em chuteiras”. Mesmo nas primícias do profissionalismo do futebol (até os últimos anos do reinado de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, nos anos 1970), os Campeonatos Mundiais nunca refletiram mais que habilidades específicas para uma prática esportiva em cujo resultado a sorte tem influência similar ou até superior ao desempenho. E este em nada depende da qualidade média de vida dos países cujos selecionados vencem amiúde.

No século 18, o escritor Samuel Johnson escreveu que “o patriotismo é o último refúgio de um canalha”. Na aparência, a afirmação refletia o despojamento de um povo que nunca se levou a sério, apesar de seu país, ou seja, a “pérfida Albion” (denominação da Inglaterra quando era colônia romana), ter conquistado o mundo e a glória na guerra e na literatura . Mas uma leitura fria dos fatos mostra que – em guerra, gestão pública, política e diplomacia – há mais cinismo na exploração cínica do amor do homem comum por sua terra que na crítica do amigo do historiador da decadência do Império Romano, Edward Gibbon. No esporte em geral e, em particular, no futebol, que, em seus moldes atuais, começou a ser jogado pelos ingleses um século depois de Johnson ter cunhado suas frases, ela é até mais válida que nas outras atividades humanas acima citadas.

Não passa de hipocrisia a adoção da lição do barão de Coubertin tentando dar às competições esportivas um falso condão de nobreza, que não condiz com a acirrada disputa em arenas, campos e tatames. O triunfo do velocista negro americano Jesse Owens, presenciado pelo ditador nazista Adolf Hitler na Olimpíada de Berlim em 1936, mesmo tendo negado na prática a teoria absurda da superioridade da raça ariana sobre as outras, em nada aliviou as agruras dos descendentes de escravos nos Estados Unidos. As disputas pela liderança nos quadros de medalhas dos Jogos Olímpicos na segunda metade do século 20 não refletiram a igualdade de condições entre o imperialismo ianque, de um lado, e o império soviético, do outro. O ouro distribuído nos pódios a ginastas e atletas russos ou das Repúblicas ocupadas pelos comunistas não bastou para impedir a derrocada do regime de Lenin, Stalin e seguidores. As vitórias de pugilistas, atletas e atacantes de ponta de rede de vôlei de Cuba não refletiam as condições de vida da população da ilha caribenha sob a tirania dos irmãos Castro.

No mundo contemporâneo, modalidades olímpicas são mais um comércio que mobiliza fortunas do que nobres manifestações de saúde do corpo e da mente. No caso do futebol, a exploração da paixão popular por negociantes inescrupulosos é ainda mais gritante. Numa competição cujo apreço pela ética negocial pode ser medido pela proibição de acesso ao estádio de torcedoras holandesas porque a organizadora da Copa, a Fifa, suspeitou que faziam propaganda de uma empresa que não participou de seu rateio milionário de marketing, cobrar da excessiva cobertura dos meios de comunicação cumplicidade patriótica é de uma desfaçatez de assustar o próprio Johnson.

Mas já que o jogo é esse, meus amigos, vamos jogá-lo dentro da regra que nos foi imposta pelos donos do espetáculo, a Fifa e sua afiliada brasileira, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Tendo a Pátria vestido uma camiseta amarela para sair por aí, é de todo conveniente exigir de quem cobra patriotismo dos críticos um mínimo de compostura. O futebol, hoje menos uma atividade profissional que uma fonte de renda ainda mais fabulosa que os gols marcados pelo artilheiro da seleção Luis Fabiano, paga fortunas mirabolantes aos astros do espetáculo exibido a um público de bilhões de pagantes. Chegou, então, o momento de lembrar que privilégios pressupõem obrigações. Por exemplo: na Pátria que eles imaginam representar se fala uma língua, no caso do Brasil, a portuguesa, enobrecida pelo estro fundador do poeta e soldado caolho luso Luís de Camões e por cultores como o amanuense mulato epiléptico carioca Joaquim Maria Machado de Assis. Vencer o jogo, como fez a equipe brasileira domingo em Johannesburgo, principal sede da Copa africana, anima a torcida brasileira. Mas honrar a Pátria é mais que isso: é, por exemplo, não esmurrar o vernáculo como se este fosse um inimigo figadal.

Com o salário que recebe da “pátria em chuteiras” e tendo a obrigação de falar em público pelo menos duas vezes por semana, o gaúcho de Ijuí Carlos Caetano Bledorn Verri devia ter recebido de seus empregadores a missão de não agredir os pronomes oblíquos, substituindo-os por retos em suas frases anômalas. Da mesma forma, além de selecionar seus pupilos e dirigi-los nos treinos, o treinador deveria ter aprendido na infância o hábito de não insultar adversários e críticos com palavras de calão rasteiro, incompatível com seu sucesso profissional.

Ao disputar uma luta livre particular contra a língua e profissionais encarregados de transmitir e avaliar o desempenho de sua seleção, o técnico brasileiro tem um comportamento à altura do anão da Branca de Neve do qual seu tio Cláudio tirou o apelido que passou a usar como nome de guerra. E não do capitão que do alto do pódio da paz nos EUA ergueu a Copa Fifa, hoje disputada na África, e reafirmou a superioridade técnica do jogador de futebol brasileiro nos gramados. Ao deixar de puni-lo, a Fifa tornou-se cúmplice dele. Esse caso execrável deveria ter alertado os maiorais do futebol para a necessidade de adotarem um código de conduta em respeito aos bilhões de torcedores que enchem sua bolsa de ouro e sua alma de glória. A truculência impune de Dunga, como a brusca retirada do eslovaco Vladimir Weiss da entrevista coletiva e a recusa do francês Raymond Domenech de cumprimentar o colega Carlos Alberto Parreira após derrotas, expõe quão hipócrita é o tal “fairplay” alardeado pela Fifa.

In. © O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 23 de junho de 2010, p. A2.

Casimiro de Abreu (1837 - 1860) - Poema


Minh'alma é triste



I

Minh'alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o albor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.

E, como a rola que perdeu o esposo,
Minh'alma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas.

E como notas de chorosa endecha
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.

Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minh'alma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.

Dizem que há gozos nas mundanas galas,
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
- Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei porque - mas a minh'alma é triste!

II

Minh'alma é triste como a voz do sino
Carpindo o morto sobre a laje fria;
E doce e grave qual no templo um hino,
Ou como a prece ao desmaiar do dia.

Se passa um bote com as velas soltas,
Minh'alma o segue n'amplidão dos mares;
E longas horas acompanha as voltas
Das andorinhas recortando os ares.

Às vezes, louca, num cismar perdida,
Minh'alma triste vai vagando à toa,
Bem como a folha que do sul batida
Bóia nas águas de gentil lagoa!

E como a rola que em sentida queixa
O bosque acorda desde o albor da aurora,
Minh'alma em notas de chorosa endecha
Lamenta os sonhos que já tive outrora.

Dizem que há gozos no correr dos anos!...
Só eu não sei em que o prazer consiste.
- Pobre ludíbrio de cruéis enganos,
Perdi os risos - a minh'alma é triste!

III

Minh'alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato;
Nem beijos dá-lhe a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!

E como a flor que solitária pende
Sem ter carícias no voar da brisa,
Minh'alma murcha, mas ninguém entende
Que a pobrezinha só de amor precisa!

Amei outrora com amor bem santo
Os negros olhos de gentil donzela,
Mas dessa fronte de sublime encanto
Outro tirou a virginal capela.

Oh! quantas vezes a prendi nos braços!
Que o diga e fale o laranjal florido!
Se mão de ferro espedaçou dois laços
Ambos choramos mas num só gemido!

Dizem que há gozos no viver d'amores,
Só eu não sei em que o prazer consiste!
- Eu vejo o mundo na estação das flores...
Tudo sorri - mas a minh'alma é triste!

IV

Minh'alma é triste como o grito agudo
Das arapongas no sertão deserto;
E como o nauta sobre o mar sanhudo,
Longe da praia que julgou tão perto!

A mocidade no sonhar florida
Em mim foi beijo de lasciva virgem:
- Pulava o sangue e me fervia a vida,
Ardendo a fronte em bacanal vertigem.

De tanto fogo tinha a mente cheia!...
No afã da glória me atirei com ânsia...
E, perto ou longe, quis beijar a s'reia
Que em doce canto me atraiu na infância.

Ai! Loucos sonhos de mancebo ardente!
Esp'ranças altas... Ei-las já tão rasas!...
- Pombo selvagem, quis voar contente...
Feriu-me a bala no bater das asas!

Dizem que há gozos no correr da vida...
Só eu não sei em que o prazer consiste!
- No amor, na glória, na mundana lida,
Foram-se as flores - a minh'alma é triste!

Março 12. - 1858.



Imagem retirada da Internet: mulher

Casimiro de Abreu (1837 - 1860) - Poema



















MEUS OITO ANOS



Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar - é lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d'amor!

Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
- Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!



In. Antologia de Antologias,Magaly Trindade/Zélia Thomaz de Aquino/Zina Bellodi Silva. São Paulo: Musa Editora, 1995, p.222-223.
Imagem retirada da Internet: Meus oito anos

Manoel de Barros - Poema






Mundo Pequeno



I
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

II
Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas
de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas.

IV
Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. "Sonora voz de uma concha",
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: "Aromas de tomilhos dementam
cigarras." Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Iíngua-pássaro: "Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer".
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
"Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos." Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.

VI
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.

VI
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.



In. O Livro das Ignorãças - ed. Civilização Brasileira.
Imagem retirada da Internet: Mundo infantil

Flávio Carneiro - Conto

Flávio Carneiro nasceu em Goiânia, em 1962, e mudou-se para o Rio de Janeiro no início dos anos 80. Desde 2003, mora em Teresópolis, região serrana do estado. Escritor, crítico literário, roteirista e professor de literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), publicou doze livros e escreveu dois roteiros para cinema. Como ficcionista, é autor de um livro de contos, três romances e cinco novelas para crianças e jovens. Participou também de algumas antologias, como Os cem menores contos brasileiros do século(São Paulo: Ateliê, 2004, org.: Marcelino Freire), com o mini-conto "Na sala de espelhos", e 22 contistas em campo (Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, org. Flávio Moreira da Costa), com o conto "Penalidade Máxima". Como ensaísta, é autor de dois livros e diversos artigos em revistas especializadas. De 2000 a 2007, foi colaborador regular dos suplementos literários do jornal O Globo (caderno Prosa & Verso) e Jornal do Brasil (caderno Idéias), com os quais ainda colabora esporadicamente. É co-roteirista, em parceria com Adriana Lisboa e André Sturm, do filme Bodas de Papel, vencedor do Prêmio Especial do Júri do Festival de Cinema de Pernambuco, em 2008 (mais informações sobre o filme na sessão OBRAS). Escreveu também, com Adolfo Lachtermacher, o roteiro do curta-metragem A noite do capitão, com lançamento previsto para 2010.



Aprendizagem



– Mãe, cabelo demora quanto tempo pra crescer?

– Hã?

– Se eu cortar meu cabelo hoje, quando é que ele vai crescer de novo?

– Cabelo está sempre crescendo, Beatriz. É que nem unha.

A comparação deixa a menina meio confusa. Ela não está preocupada com unhas.

– Todo dia, mãe?

– É, só que a gente não repara.

– Por quê?

– Porque as pessoas têm mais o que fazer, não acha?

A menina não sabe se essa é uma pergunta do tipo que precisa ser respondida ou é daquelas que a gente ouve e pronto. Prefere não responder.

– Você é muito ocupada, não é, mãe?

– Hã?

– Nada, não.

A mãe termina de passar a roupa e vai guardando tudo no armário.

Enquanto isso, Beatriz corre até o quartinho de costura, pega a fita métrica e mede novamente o cabelo da boneca. Ela tinha cortado aquele cabelo com todo o cuidado do mundo, pra ficar parecido com o da mãe, mas a verdade é que ficou meio torto.

"Nada, não cresceu nada", ela conclui, guardando a fita. E já tem uma semana!

Depois volta para onde está a mãe, que agora lustra os móveis.

– Mãe, existe alguma doença que faz o cabelo da gente não crescer?

– Mas de novo essa conversa de cabelo! Não tem outra coisa pra pensar não, criatura?

Sobre essa pergunta não há dúvida: é do tipo que você não deve responder.

A mãe continua trabalhando. Precisa se apressar. Dali a pouco a patroa chega da rua e o almoço nem está pronto ainda.

– Mãe!

– O que foi?

– É que eu estava aqui pensando.

– Pensando o quê?

Beatriz não responde. Espera um pouco, tentando achar as palavras certas.

– Vai, fala logo.

– Quando a gente faz uma coisa, sabe, e não dá mais para voltar atrás, entendeu?

– Não, não entendi.

Ela abaixa a cabeça, dá um tempinho e resolve arriscar:

– Então, se você não entendeu, posso continuar perguntando sobre cabelo?

– Ai, meu Deus!

Beatriz deixa a mãe trabalhando e vai procurar de novo sua boneca.

Pega a boneca no colo e diz no ouvido dela:

– Não liga, não. Cabelo de boneca é assim mesmo, cresce devagar, viu?

E com um carinho:

– Foi minha mãe que me ensinou.



Fonte Revista Nova Escola
Foto by Adriana Lisboa

Célio Pedreira - Poema


ARRANCHO


Dia que a gente precisa ser ipueira
lavar as minúcias
depor as margens
esconjurar estreitos.

Dia que precisa vir sem divulgar
perder tempo em nada
esbarrar nos derradeiros
encontrar nós.

Dia de bestagens
alargar os efeitos
malinar nas gasturas
judiar sem doer
precisa.


Imagem retirada da Internet: sertanejo

Cecília Meireles - Crônica


Se eu fosse pintor


Cecília Meireles



Se eu fosse pintor começaria a delinear este primeiro plano de trepadeiras entrelaçadas, com pequenos jasmins e grandes campânulas roxas, por onde flutua uma borboleta cor de marfim, com um pouco de ouro nas pontas das asas.

Mas logo depois, entre o primeiro plano e a casa fechada, há pombos de cintilante alvura, e pássaros azuis tão rápidos e certeiros que seria impossível deixar de fixá-los, para dar alegria aos olhos dos que jamais os viram ou verão.

Mas o quintal da casa abandonada ostenta uma delicada mangueira, ainda com moles folhas cor de bronze sobre a cerrada fronde sombria, uma delicada mangueira, repleta de pequenos frutos, de um verde tenro, que se destacam do verde-escuro como se estivessem ali apenas para tornar a árvore um ornamento vivo, entre os muros brancos, os pisos vermelhos, o jogo das escadas e dos telhados em redor.

E que faria eu, pintor, dos inúmeros pardais que pousam nesses muros e nesses telhados, e aí conversam, namoram-se, amam-se, e dizem adeus, cada um com seu destino, entre a floresta e os jardins, o vento e a névoa?

Mas por detrás estão as velhas casas, pequenas e tortas, pintadas de cores vivas, como desenhos infantis, com seus varais carregados de toalhas de mesa, saias floridas, panos vermelhos e amarelos, combinados harmoniosamente pela lavadeira que ali os colocou. Se eu fosse pintor, como poderia perder esse arranjo, tão simples e natural, e ao mesmo tempo de tão admirável efeito?

Mas, depois disso, aparecem várias fachadas, que se vão sobrepondo umas às outras, dispostas entre palmeiras e arbustos vários, pelas encostas do morro. Aparecem mesmo dois ou três castelos, azuis e brancos, e um deles tem até, na ponta da torre, um galo de metal verde. Eu, pintor, como deixaria de pintar tão graciosos motivos?

Sinto, porém, que tudo isso por onde vão meus olhos, ao subirem do vale à montanha, possui uma riqueza invisível, que a distância abafa e desfaz: por detrás dessas paredes, desses muros, dentro dessas casas pobres e desses castelinhos de brinquedo, há criaturas que falam, discutem, entendem-se e não se entendem, amam, odeiam, desejam, acordam todos os dias com mil perguntas e não sei se chegam à noite com alguma resposta.

Se eu fosse pintor, gostaria de pintar esse último plano, esse último recesso da paisagem. Mas houve jamais algum pintor que pudesse fixar esse móvel oceano, inquieto, incerto, constantemente variável que é o pensamento humano?



Imagem retirada da Internet By Bill Designer

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